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Parte 2: A responsabilidade do administrador societário: Continuação da parte 1

Uma análise crítica à luz da jurisprudência do STJ e da doutrina moderna sobre os limites da responsabilidade dos administradores nas sociedades empresárias.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Atualizado às 09:43

1. Introdução

A responsabilidade do administrador societário tem ganhado cada vez mais destaque em tempos de intensa judicialização das relações empresariais, fiscalizações mais rigorosas por órgãos reguladores e amadurecimento do ambiente de governança corporativa no Brasil.

Ao lado da figura clássica do "bom administrador", ergue-se a necessidade de se delimitar com clareza os contornos jurídicos de sua responsabilidade - especialmente diante da dúvida que ainda persiste na doutrina e na jurisprudência: trata-se de uma obrigação de meio ou de resultado?

A distinção, como vimos na parte 1, não é meramente teórica. Ela tem impacto direto na forma como o Poder Judiciário julga ações de responsabilização contra administradores por atos de gestão que resultam em prejuízos às sociedades ou a terceiros. Em tempos em que o risco empresarial é inerente à atividade, é imperativo separar o erro de gestão do abuso de poder, a má sorte da má-fé, o insucesso do ilícito.

Este artigo propõe uma análise doutrinária, jurisprudencial e prática dessa temática, com foco especial na aplicação da business judgment rule no Brasil e nas recentes decisões do STJ que têm influenciado esse debate.

2. Obrigação de meio vs. obrigação de resultado: Conceito e aplicação no Direito Empresarial

A distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado é um clássico do direito obrigacional. Vamos relembrar o que falamos na parte I do artigo. Enquanto na obrigação de meio o devedor se compromete a empregar diligência e esforço, sem garantir um desfecho específico (ex: advogados, médicos), na obrigação de resultado há o dever de atingir um resultado específico (ex: construtor, transportador).

Quando transposta para o universo da administração societária, essa distinção adquire contornos práticos relevantes: o administrador deve assegurar o êxito da sociedade, ou apenas agir com diligência, lealdade e boa-fé?

A doutrina majoritária, apoiada na tradição do direito societário brasileiro, entende que a responsabilidade do administrador é, via de regra, de meio, e não de resultado. O art. 153 da lei das sociedades por ações (lei 6.404/1976) e o art. 1.011, §1º do CC impõem o dever de diligência, mas não exigem sucesso empresarial:

  • "O administrador da sociedade deverá empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios." (art. 153, LSA)
  • "O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios." (art. 1.011, CC)

3. A Business Judgment Rule: O escudo do administrador diligente e um paradigma em construção

Corolário direto da obrigação de meio, a Business Judgment Rule é uma construção do direito norte-americano absorvida por nossa doutrina e jurisprudência. Segundo essa regra, o Poder Judiciário não deve substituir a discricionariedade do administrador e reavaliar o mérito de uma decisão de negócios, desde que esta tenha sido tomada:

  1. De boa-fé;
  2. Com base em informações razoáveis;
  3. Sem interesse pessoal (ausência de conflito de interesses).

Nas palavras de Nelson Eizirik, a regra cria uma "presunção de que os administradores agiram de forma diligente e leal". Cabe a quem alega o prejuízo o pesado ônus de desconstituir essa presunção, provando que um dos requisitos acima foi violado. A Business Judgment Rule não protege o administrador fraudulento, desleal ou patentemente negligente, mas sim aquele que, mesmo agindo corretamente, viu sua decisão levar a um resultado negativo.

business judgment rule, consolidada no direito norte-americano (precedente paradigma da Corte Estadual de Delaware), funciona como uma presunção de boa-fé e de correção das decisões dos administradores, blindando-os de responsabilização judicial quando atuam com base em critérios racionais, informados e leais aos interesses da empresa - mesmo que o resultado seja negativo.

No Brasil, esse conceito vem ganhando força, ainda que de forma embrionária, como ferramenta para frear a banalização da responsabilização dos administradores por simples insucessos. O STJ vem, aos poucos, firmando entendimento importante:

  • REsp 1.349.233/SP (rel. min. Luis Felipe Salomão): Este é, de fato, um precedente importante. A citação é perfeita e vale a pena repeti-la com destaque: "Por atos praticados nos limites dos poderes estatutários, o administrador assume uma responsabilidade de meio e não de resultado, de modo que somente os prejuízos causados por culpa ou dolo devem ser suportados por ele." O voto vai além, afirmando que erros de avaliação, se não derivados de falta de diligência, não geram responsabilidade, vide outro trecho importante, "atos de que resultaram bom proveito para a companhia. Incidência do art. 159, § 6º, da lei 6.404/1976: "O juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia".
  • REsp 1.658.648/SP (rel. min. Moura Ribeiro): A responsabilização do administrador não sócio é possível, mas exige a comprovação de que agiu com excesso de poder ou desvio do objeto social, não bastando o simples inadimplemento da sociedade. Veja trecho da ementa em destaque a seguir: "É possível atribuir responsabilidade ao administrador não-sócio, por expressa previsão legal. Contudo, tal responsabilização decorre de atos praticados pelo administrador em relação as obrigações contraídas com excesso de poder ou desvio do objeto social. 5. A responsabilidade dos administradores, nestas hipóteses, é subjetiva, e depende da prática do ato abusivo ou fraudulento. No caso dos autos, não foi consignada nenhuma prática de ato irregular ou fraudulento do administrador".

Vale ressaltar que essa posição tem sido acolhida também por tribunais estaduais, como o TJ/SP, que em julgados recentes vem reconhecendo a impossibilidade de responsabilização automática do administrador por prejuízos societários, exigindo prova concreta de violação aos deveres legais ou estatutários.

4. Deveres fiduciários e a responsabilidade subjetiva do administrador

Como delineado acima, o arcabouço normativo brasileiro exige que o administrador observe três pilares essenciais:

  • Dever de diligência (art. 153, LSA)
  • Dever de lealdade (art. 154, LSA)
  • Dever de informar e evitar conflitos de interesse (art. 155, LSA)

A responsabilidade do administrador decorre, portanto, da violação a esses deveres, e não da mera ocorrência de prejuízo à sociedade. Em regra, a responsabilização demanda a comprovação de culpa grave ou dolo, como previsto no art. 158 da LSA.

Importante ressaltar que, tanto o CC quanto o CPC de 2015, ao tratar da desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do CC e arts. 133 a 137 do CPC), também reforçam essa lógica subjetiva ao exigir abuso da personalidade, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, como fundamentos para a responsabilização de sócios ou administradores:

  • "Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso." (Art. 50, CC)

5. Exemplos práticos: Onde está a linha da responsabilidade?

Caso 1 - Estratégia malsucedida:

Um administrador aprova a aquisição de uma startup promissora, com base em due diligence e pareceres técnicos. A operação fracassa meses depois. Neste cenário, ausente dolo, fraude ou violação de deveres, a business judgment rule protege o gestor. A responsabilidade é afastada por se tratar de risco natural da atividade empresarial.

Caso 2 - Omissão deliberada:

Administrador deixa de comunicar conflito de interesses em contrato firmado com empresa da qual também é sócio oculto. Há violação clara do dever de lealdade (art. 154, LSA). Neste caso, sua responsabilização é não apenas possível, mas recomendável.

Caso 3 - Falta de diligência formal:

Administrador deixa de convocar assembleia obrigatória para aprovação de contas, impedindo deliberação sobre matéria essencial. Mesmo sem má-fé, o descumprimento de formalidades legais pode ensejar responsabilização civil, pois há violação objetiva do dever legal.

5. Conclusão: Entre o Direito e a gestão, a responsabilidade deve ser equilibrada

O amadurecimento do ambiente empresarial exige uma visão equilibrada da responsabilidade dos administradores. A ideia de que qualquer prejuízo deve ser imputado ao gestor é perigosa, inibe a tomada de riscos e compromete a inovação. Por outro lado, não se pode permitir que a blindagem seja pretexto para arbitrariedades, fraudes ou omissões.

O reconhecimento da business judgment rule no Brasil é um avanço, mas ainda carece de consolidação jurisprudencial e maturação prática. Ela não é carta branca ao gestor, mas uma proteção legítima contra o que se convencionou chamar de "culpa empresarial presumida".

Assim, é fundamental que administradores estejam atentos à documentação dos processos decisórios, consultem regularmente assessorias jurídicas e mantenham registro das deliberações com base em critérios técnicos, não apenas por cautela, mas como mecanismo de governança.

Para advogados, empresários e estudantes, fica a lição: o administrador não responde por não acertar - responde, sim, por não agir com zelo, lealdade e diligência. E é nesse ponto que o Direito encontra a gestão.

Marcus Vinícius Marcondes Buzanelli

VIP Marcus Vinícius Marcondes Buzanelli

Sócio da área de Corporate & Litigation, em DB Advogados. É certificado pelo ESOL/FLDOE e FCAT/FLDOE, nos EUA. Possui LL.M em D. Empresarial pela Escola de Direito do RJ e especializado em D. Público.

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