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Erro material ou dolo processual?

A IA é irreversível no Direito, mas a responsabilidade é sempre do advogado: revisar, conferir e assumir integralmente o que assina é dever ético indelegável.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Atualizado às 10:36

A recente decisão do TJ/TO, que inadmitiu recurso especial e ainda reconheceu a litigância de má-fé do recorrente, reacende uma discussão delicada: até onde vai o erro material e a partir de que ponto se pode falar em dolo processual.

De um lado, o CPC é claro ao admitir a existência do erro material, passível de correção de ofício (art. 494, I). Trata-se de falhas que não carregam intencionalidade: lapsos de digitação, equívocos de numeração de artigo ou mesmo transcrição incompleta que não altera substancialmente o sentido da norma. A jurisprudência do STJ, em mais de uma oportunidade, já reconheceu que tais equívocos não configuram má-fé, exatamente porque não há elemento volitivo de enganar o juízo.

De outro lado, a má-fé processual - prevista no art. 80, V, do CPC - pressupõe um comportamento temerário e deliberado, apto a manipular o processo e induzir o julgador a erro. Foi esse o raciocínio seguido pela Presidência do TJ/TO no REsp 0019743-80.2024.8.27.2700, rel.ª des.ª Maysa Vendramini Rosal, j. 4/9/2025, ao identificar que o recorrente suprimiu trecho essencial do art. 95 do CPC, alterando o seu conteúdo normativo, o que configuraria tentativa de "reescrever a lei" e, portanto, dolo processual.

O problema está justamente na zona cinzenta entre o lapso técnico e a fraude. Se a cada equívoco formal se presume má-fé, o risco é de banalizar o dolo processual e transformar a advocacia em uma atividade paralisada pelo medo de punições severas. Multas, ofícios à OAB e imputações éticas não podem ser impostas diante de simples erros de citação, sob pena de cercear o direito de defesa e comprometer a confiança na própria função jurisdicional.

É evidente que não se pode tolerar adulterações conscientes da lei ou a invenção de fundamentos inexistentes. Contudo, também é indispensável que o Judiciário trace com precisão a fronteira entre o erro material corrigível e a conduta dolosa passível de sanção. Somente assim será possível equilibrar a necessária moralidade processual com a preservação das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Se já é difícil distinguir, na prática forense, o que configura mero erro material e o que se enquadra como dolo processual, a situação torna-se ainda mais complexa com a ascensão da inteligência artificial generativa no meio jurídico.

Essas ferramentas são capazes de redigir textos com aparência de rigor técnico, mas partem de bases estatísticas e preditivas, não de uma compreensão semântica da norma ou da jurisprudência. Por isso, podem inventar citações de artigos, deturpar dispositivos legais e criar precedentes inexistentes, fenômeno já conhecido como alucinação.

O risco é evidente: uma petição elaborada com o auxílio de IA, mas sem revisão humana adequada, pode conter transcrições equivocadas ou até mesmo jurisprudência fictícia. O juiz, ao se deparar com o conteúdo, dificilmente conseguirá identificar de imediato se houve erro involuntário ou tentativa deliberada de induzi-lo a erro. Nessa zona nebulosa, há grande chance de que falhas automatizadas sejam interpretadas como litigância de má-fé, mesmo quando o advogado não teve a intenção de falsear dados.

Foi exatamente essa preocupação que levou o ministro Cristiano Zanin, do STF, a rejeitar a Rcl 78.890/BA, em decisão de 2025, aplicando multa e oficiando à OAB diante da utilização de precedentes inexistentes em peça processual. No voto, o ministro advertiu para os riscos do uso irresponsável da IA, frisando que a advocacia não pode delegar às máquinas a tarefa de conferir a autenticidade de seus argumentos - sob pena de comprometer a boa-fé processual e a própria credibilidade do Judiciário.

Esse alerta é valioso: não existe erro "da máquina". A responsabilidade pela assinatura da petição é sempre do advogado, que deve verificar minuciosamente cada citação, cada artigo de lei e cada julgado. A IA pode ser um recurso auxiliar, mas jamais substitui a análise crítica e a prudência do profissional. Usá-la indiscriminadamente, sem controle e sem filtros, é abrir espaço para que um equívoco técnico seja interpretado como dolo processual, com todas as graves consequências éticas e processuais que isso acarreta.

A inteligência artificial já é uma realidade irreversível no Direito. Gostemos ou não, ela se consolidou como ferramenta de apoio, capaz de acelerar pesquisas, redigir minutas e organizar dados com eficiência inédita. No entanto, essa modernidade tecnológica não exonera - nem pode exonerar - a responsabilidade pessoal do advogado sobre cada peça que assina.

O erro técnico produzido por uma IA não é "erro da máquina": é falha de quem não conferiu, não revisou e não exerceu o controle que o dever profissional impõe. A ética da advocacia não se compatibiliza com o uso automático e acrítico de instrumentos tecnológicos. A assinatura do advogado, prevista em lei como requisito de validade da petição, é também a chancela de que todos os argumentos, artigos e jurisprudências foram checados, confirmados e assumidos como verdadeiros.

Portanto, a discussão não pode ser reduzida a proteger ou relativizar erros. O que se exige, na prática, é uma mudança de postura: advogados podem - e devem - usar a IA, mas precisam fazê-lo com responsabilidade e senso crítico. A ferramenta é irreversível; o compromisso com a boa-fé processual e com a exatidão técnica, no entanto, continua sendo indelegável e intransferível.

Daniela Poli Vlavianos

VIP Daniela Poli Vlavianos

Advogada civilista com 20 anos de experiência. Pós-graduada em Execução. Atuação em execução cível e proteção patrimonial. Atualmente, integra a equipe do escritório Arman Advocacia

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