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Direito à desconexão e os desafios da ultraconectividade

Análise do direito à desconexão e sua efetivação por meio da ação sindical e normas coletivas.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Atualizado em 19 de setembro de 2025 15:16

Introdução

O avanço da tecnologia da informação e comunicação transformou profundamente as relações de trabalho, introduzindo o fenômeno da "ultraconectividade" ou "hiperconectividade" que consiste na prática de o trabalhador manter-se conectado e acessível ao empregador ou às demandas profissionais, mesmo fora do horário de expediente. Essa situação, tão comum nos dias de hoje nas relações de trabalho, pode comprometer o direito ao descanso, à vida da privada e familiar, prejudicando a saúde mental e física do trabalhador.

É nesse contexto que surge, como resposta às indagações de correção de rumo da sociedade o chamado "direito à desconexão".

O direito à desconexão tem origem na doutrina francesa e vem sendo reconhecido como um direito fundamental relacionado à dignidade da pessoa humana, ao lazer e à saúde. Surgiu em 2016 com a promulgação de uma lei francesa - a chamada lei "El Khomri" - que introduziu o direito à desconexão como uma pauta de negociação compulsória em empresas com mais de cinquenta empregados. Referida lei inspirou-se em uma decisão de 2001 da Suprema Corte da França ao estabelecer que empregados não tem obrigação de trabalhar de seu domicílio ou de levar para casa arquivos e ferramentas de trabalho, assim como numa decisão judicial de 2004, do mesmo órgão, que estabeleceu que empregados não podem sofrer punição disciplinar por estarem inacessíveis quando fora do seu horário de trabalho.

No Brasil, embora ainda não haja legislação específica, a doutrina jurídica tem debatido amplamente o tema, destacando sua importância para a efetivação dos direitos sociais e trabalhistas consagrados na Constituição Federal de 1988.

Segundo Rafael Neves Harff, o direito à desconexão pode ser compreendido como: "a prerrogativa do trabalhador de não ser acionado por meios tecnológicos (como e-mails, mensagens, ligações) fora do seu horário de expediente, assegurando o respeito aos seus períodos de descanso e à sua saúde física e mental".

A doutrina também destaca que o direito à desconexão é uma resposta à intensificação do trabalho promovida pelas tecnologias digitais, que borram os limites entre tempo de trabalho e tempo livre. É nesta linha que Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas e Mirelle Stéfani da Silva transitam ao afirmarem que: "o direito à desconexão é o direito ao resgate da subjetividade que se perde devido à conexão do indivíduo ao trabalho reificado".

No nosso entender, o direito à desconexão pode ser definido como o conjunto de regras que visa garantir ao empregado o respeito aos seus períodos de intervalo, descanso, lazer e vida pessoal, especialmente diante do avanço dos meios telemáticos de comunicação, mormente quando estes são utilizados, de forma consciente ou não, para manter a subordinação do trabalhador às obrigações decorrentes do contrato de trabalho.

Quanto à fundamentação legal, embora não haja uma lei específica no Brasil que regulamente expressamente o direito à desconexão, ele pode ser extraído de dispositivos constitucionais e da CLT - Consolidação das Leis do Trabalho, especialmente os que tratam da limitação da jornada de trabalho (art. 7º, XIII e XIV da CF) e da proteção à saúde e segurança do trabalhador (art. 7º, XXII da CF).

Jurisprudência

Já na esfera da jurisprudência nacional, não são raras as decisões judiciais que tratam do tema na Justiça do Trabalho. Em destaque, apontamos os seguintes julgados, dentre inúmeros que abordam a questão do direito à desconexão:

TRT-3 - RECURSO ORDINARIO TRABALHISTA: ROT 102857920215030043 MG 0010285-79.2021.5.03.0043

Acórdão publicado em 4/7/2022

"Ementa: DANO MORAL. DIREITO À DESCONEXÃO. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS À SAÚDE E AO LAZER. BENS JURÍDICOS TUTELADOS INERENTES AO EMPREGADO. ART. 223-C DA CLT. Nos termos do art. 223-B da CLT, o dano extrapatrimonial se configura quando há ofensa de ordem moral ou existencial à pessoa física ou jurídica, decorrente de ação ou omissão, sendo que a saúde e o lazer se encontram elencados no rol dos bens juridicamente tutelados inerentes ao empregado (art. 223-C, CLT). Nesse aspecto, o direito à desconexão do trabalho se insere no âmbito das garantias fundamentais à saúde e ao lazer (art. 6º , caput, e art. 7º , IV , da Constituição da Republica ), consectárias do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º , III , CR ), pelas quais o labor não pode ser um fim em si mesmo, mas sim o meio para o trabalhador promover sua subsistência e satisfazer suas necessidades e anseios pessoais, sem prejuízo ao repouso e ao convívio familiar e social. Violado o direito do empregado de se desconectar do trabalho, privando-lhe do devido descanso e do lazer, é cabível a reparação civil, consoante arts. 186 e 927 do CC."

TRT-5 - RECURSO ORDINÁRIO TRABALHISTA: ROT 8357920225050251

Acórdão publicado em 13/6/2024

"Ementa: DANO MORAL. TRABALHADOR SUBMETIDO A CONSTANTES DEMANDAS E COBRANÇAS APÓS A SUA JORNADA DE TRABALHO. DESRESPEITO AO DIREITO À DESCONEXÃO DO TRABALHO. Uma vez demonstrado que o empregador cotidianamente enviava demandas, cobranças e metas após o horário do expediente, inclusive tarde da noite, impedindo, assim, a desconexão do trabalhador das suas responsabilidades laborais, conduta capaz, por si só, de causar repercussões deletérias à saúde mental e psicológica, fica configurado o ato ilícito apto a ensejar a reparação por dano moral."

Ação legislativa

Embora o tema possa ser bem compreendido sob a ótica do interesse social, é imprescindível que se ultrapasse o plano teórico e se avance para soluções práticas e imediatas, em auxílio aos profissionais da área de recursos humanos. Tais soluções devem ser capazes de responder, ainda que minimamente e em curto prazo, aos desafios concretos impostos pelos modernos mecanismos tecnológicos que vêm transformando o mundo do trabalho

É óbvio que a solução mais eficaz seria a inserção da matéria no arcabouço legal do país a partir do processo legislativo. Nesse sentido, há alguns projetos de lei voltados para esse tema, dentre eles destacamos o PL 4579/23, de autoria do deputado Fábio Teruel (MDB/SP), que altera a CLT - Consolidação das Leis do Trabalho para instituir o direito à desconexão do trabalho dos empregados que realizam atividades à distância ou em regime de teletrabalho. Referido projeto de lei dispõe que a Consolidação das Leis do Trabalho passa a estabelecer:

"Art. 75-G - Entende-se por direito de desconexão do trabalho a prerrogativa do empregado de não ser obrigado a responder comunicações profissionais, como mensagens eletrônicas, chamadas ou qualquer outro meio de comunicação relacionado ao trabalho, fora da jornada de trabalho pactuada no contrato de trabalho ou durante seus períodos de descanso e férias.

§ 1º - É vedado ao empregador aplicar qualquer espécie de punição ao empregado que exercer seu direito de desconexão ao trabalho exercido na forma do disposto no caput.

§ 2º - Em caso de descumprimento do disposto no caput, o empregador estará sujeito, cumulativamente, a:

I - Multa de até 5 (cinco) vezes o salário do empregado afetado, a ser revertida em favor do próprio empregado;

II - Sanções adicionais previstas na legislação trabalhista e em contratos coletivos aplicáveis ao caso.

§ 3º - Os empregadores que contarem com mais de 50 empregados poderão firmar acordo coletivo com a entidade sindical representante da categoria profissional, para estabelecer protocolos sobre o exercício do direito à desconexão ao trabalho, definindo os horários em que os empregados poderão ser obrigados a responder a comunicações profissionais.

Art. 2º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação."

O texto nos parece adequado apenas para iniciar uma discussão mais ampla e adequada sobre o tema no Congresso Nacional, pois a formatação proposta não observa todos os lados da questão.  Além disso, o processo legislativo no Brasil é moroso e nem sempre acompanha a urgência que a matéria tratada impõe.

Cláusulas normativas

A lentidão de soluções legislativas para um problema que já afeta de forma real o tecido social, pode ser substituída, ainda que temporariamente, pela agilidade que marca os instrumentos de autocomposição oriundos da negociação coletiva de trabalho, especificamente, acordos e convenções coletivas de trabalho.

Serve como exemplo singelo a iniciativa da categoria econômica dos Bancos (FENABAM) por exemplo, que firmou com a respectiva categoria profissional cláusula normativa em convenção coletiva de trabalho para os anos de 2024-2026, versando sobre a jornada no teletrabalho ou no trabalho e que, em dois parágrafos, procura disciplinar o tema relativo ao direito à desconexão, conforme trechos agora transcritos:

"CLÁUSULA 70 -JORNADA NO TELETRABALHO OU TRABALHO REMOTO

...

Parágrafo terceiro - O empregado em regime de teletrabalho ou trabalho remoto tem direito à desconexão e deverá compatibilizar o exercício de suas atividades profissionais com os intervalos para refeição e os demais períodos de descanso, de forma que os desfrute por inteiro.

Parágrafo quarto - O empregado em regime de teletrabalho ou trabalho remoto não está obrigado a atender demanda do empregador, e o empregador não poderá obrigar o empregado a fazê-lo, independentemente do meio utilizado (ex. : ligações de áudio/vídeo, mensagens escritas etc.) ou a realizar atividade laboral durante os intervalos para refeição e os períodos de descanso ou férias."

Conscientização pela ação sindical

Embora se reconheça o mérito dessas iniciativas nacionais que representam alguns avanços na busca por soluções adequadas ao problema da ultraconectividade ou hiperconectividade - há um aspecto relevante que tem sido negligenciado, inclusive nas manifestações doutrinárias nacionais: a responsabilidade das entidades sindicais de trabalhadores em promover a conscientização de seus representados quanto à importância da prática efetiva da desconexão.

Com efeito, o hábito de o empregado manter-se vinculado ao espaço telemático, muitas vezes escapa ao controle direto do empregador. É comum que trabalhadores, independentemente da hierarquia funcional, permaneçam espontaneamente conectados em horários inadequados, tratando de assuntos profissionais sem qualquer ingerência da empresa ou de suas chefias ou prepostos. Em que pese a não ingerência do empregador nessa prática em muitas dessas situações, ainda assim, tais condutas, quando levadas ao Judiciário Trabalhista acabam sendo interpretadas como tempo de trabalho em prol da produção e dos resultados do empreendimento, gerando, por consequência, uma responsabilização indevida do tomador de serviços.

Nesse sentido, a personalidade 'workaholic' - ou seja, a compulsão pelo trabalho - é um fator psicológico relevante que precisa ser considerado no debate sobre o direito à desconexão. Embora muitas vezes romantizada como sinônimo de dedicação ou produtividade e por isso tolerada pelo empregador, essa característica de compulsão ao trabalho pode representar um quadro de comportamento associado à ansiedade, perfeccionismo e dificuldade em estabelecer limites saudáveis entre vida pessoal e profissional. Trabalhadores com esse perfil tendem a se manter conectados com o sistema de produção fora do horário de expediente e de trabalho, mesmo sem exigência do empregador, o que pode criar uma "cultura de disponibilidade" constante e prejudicial, já que tolerada.

Assim, é fundamental que as entidades sindicais representativas dos empregados ao promoverem campanhas de conscientização sobre saúde mental, realizem treinamentos sobre gestão do tempo e ofereçam serviços de apoio psicológico aos seus representados nesse campo. Afinal, promover o direito à desconexão não é apenas uma obrigação do empregador, mas também um dever do empregado em preservar sua saúde mental, daí a responsabilidade dos sindicatos de trabalhadores junto aos seus representados.

A doutrina internacional, especialmente aquela influenciada pela OIT - Organização Internacional do Trabalho, enfatiza a corresponsabilidade entre empregadores, trabalhadores e sindicatos na promoção de ambientes de trabalho saudáveis. Essa corresponsabilidade é mais ética e pedagógica do que jurídica, cabendo às cláusulas de convenções e acordos coletivos dar vida aos aspectos jurídicos de responsabilização.

A OIT recomenda que os sindicatos atuem na educação e formação dos trabalhadores sobre seus direitos, inclusive o direito à desconexão. Embora esses princípios não sejam vinculativos, têm servido de base para legislações e acordos coletivos em diversos países europeus. Não há dúvida, assim, que o papel dos sindicatos de trabalhadores vai além da negociação: eles devem atuar como agentes de mudança cultural, promovendo campanhas internas, treinamentos e políticas de uso consciente de tecnologias fora do expediente.

Conclusão

Poucos são os avanços legislativos e doutrinários no Brasil quanto ao reconhecimento do direito à desconexão. A atuação dos empregadores, sindicatos de trabalhadores, e dos próprios empregados representados em termos preventivos, ainda é um campo em construção. A tendência é que, com o amadurecimento do debate, surjam normas coletivas mais equilibradas, que reconheçam a importância dos limites patronais, da autogestão do tempo pelo trabalhador e o papel educativo dos sindicatos em relação aos seus representados. A efetivação do direito à desconexão exige um esforço conjunto desses atores, promovendo uma cultura de respeito aos limites entre vida profissional e pessoal.

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Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

FRANÇA. Lei El Khomri, 2016.

HARFF, Rafael Neves. Direito à desconexão e os desafios da era digital. Revista Jurídica, 2022.

VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo; SILVA, Mirelle Stéfani da. O direito à desconexão e a subjetividade do trabalhador. Revista de Direito do Trabalho, 2021.

JusBrasil (ementas transcritas): TRT-3 - ROT 102857920215030043; TRT-5 - ROT 8357920225050251.

INSTITUTO IASC. Estudo sobre hiperconectividade e saúde mental no trabalho - 2024.

Marco Antonio Aparecido de Lima

Marco Antonio Aparecido de Lima

Advogado do escritório Lima & Londero Advogados.

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