A PEC da blindagem e o PL da anistia: O Parlamento contra a Democracia
Se aprovadas, a PEC da blindagem e o PL da anistia institucionalizarão a autoproteção parlamentar, corroerão a democracia e enfraquecerão o dever de accountability.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
Atualizado às 10:48
A recente aprovação da chamada PEC da blindagem pela Câmara dos Deputados, agora em tramitação no Senado, escancara o estágio avançado da crise de representação que corrói o Parlamento brasileiro. Ao prever que processos penais contra parlamentares só possam prosseguir mediante autorização prévia das respectivas Casas Legislativas, a proposta não fortalece o Estado de Direito: ao contrário, subordina o exercício da jurisdição à vontade política dos próprios acusados, instaurando um filtro corporativo que afronta a separação dos Poderes e o princípio republicano de responsabilização.
Diferentemente do presidente da República, que por razões de estabilidade institucional depende de autorização da Câmara para ser processado, os parlamentares passariam a gozar de privilégio idêntico, mas sem qualquer previsão de afastamento do cargo. O resultado é uma blindagem sem contrapartidas, que ameaça converter a imunidade parlamentar em impunidade institucionalizada.
Mais grave do que eventuais vícios formais e materiais a serem futuramente apreciados é o vício moral que impregna a PEC da blindagem. Ao transferir às próprias Casas o poder de decidir se seus membros podem ou não responder judicialmente, a proposta inverte o sentido republicano da função pública e insere um mecanismo de autoproteção corporativa no núcleo da Constituição.
A ideia de que os representantes do povo possam erigir para si mesmos uma barreira contra a aplicação da lei revela uma ruptura ética: quem deveria submeter-se com maior rigor ao controle social passa a se blindar contra ele. Esse vício moral se torna ainda mais evidente diante do contexto em que a proposta foi votada: há investigações em curso envolvendo parlamentares, de modo que a criação da blindagem não se apresenta como medida abstrata de proteção institucional, mas como instrumento concreto de autopreservação imediata dos próprios votantes.
O ato de legislar deixa de ser expressão de responsabilidade institucional e se converte em mecanismo de autopreservação pessoal e coletiva. Trata-se de atentado à moralidade pública, princípio basilar consagrado no art. 37, caput, da Constituição, cuja violação fragiliza os alicerces de confiança que sustentam a representação democrática.
A atual atuação do Legislativo brasileiro revela, assim, um preocupante distanciamento do ideal que fundamenta a democracia representativa. Como sustentam Norberto Bobbio (2023), a representação política moderna assenta-se na premissa de que os representantes devem atuar em nome de toda a sociedade, formulando normas que respondam a necessidades concretas do povo e assegurem a coerência do projeto constitucional.
A metáfora do "romance em cadeia" de Ronald Dworkin (1986), se aplicada ao poder legislativo (vez que foi idealizada para aplicação ao judiciário), sintetiza essa exigência: cada nova lei deve funcionar como um capítulo que dá continuidade coerente à história normativa, respeitando a integridade do enredo institucional.
Entretanto, como já denunciado em artigo anterior, publicado no jornal "Estadão", os dados e exemplos recentes revelam que o Parlamento brasileiro tem se afastado desse papel. Segundo levantamento do IEPS, mais de um terço das proposições sobre saúde em 2024 contrariavam normas vigentes, enquanto outro quarto apenas repetia comandos já existentes, sem inovação e sem utilidade.
A insistência em pautas declaradas inconstitucionais, como o voto impresso (ADI 5889), e o endosso a agendas externas divorciadas do interesse nacional revelam a decadência epistemológica e a desarticulação funcional do Legislativo. Em vez de espaço de deliberação qualificada, o Parlamento tornou-se arena de proposições redundantes, simbólicas ou autointeressadas, esvaziando sua função representativa e comprometendo a confiança pública.
Se a PEC da blindagem já representa uma ruptura na lógica de responsabilização republicana, o projeto de lei da Anistia aprofunda ainda mais esse desvio institucional. Pretende perdoar condutas que atentaram contra o próprio Estado Democrático de Direito, inclusive os atos golpistas de 8 de janeiro.
A anistia não pode abranger atos de ruptura da ordem constitucional, sob pena de legitimar a destruição da Constituição por meio de seu próprio texto. Na ADPF 153, que discutiu a lei de anistia de 1979, o STF, embora tenha, naquele contexto específico de transição democrática, mantido a lei, reconheceu que a decisão não poderia servir de precedente para novos perdões de crimes contra a democracia. Naquele contexto, a anistia era produto de uma negociação política de redemocratização e não autorizaria a legitimação da impunidade de violações futuras.
Assim, uma anistia destinada a perdoar crimes que atentaram contra o próprio Estado Democrático de Direito (tendo como titulares do poder, o povo, razão pela qual a vontade da maioria, e as regras do jogo, devem prevalecer) configura um uso disfuncional da função legislativa e afronta direta à autodefesa constitucional, sendo que a Constituição não pode criar mecanismos que legitimem sua própria destruição.
Nem a PEC da blindagem e tampouco o PL da anistia apresentam relevância social ou alinhamento ao interesse público. Elas não melhoram a vida da população, não enfrentam desigualdades, não fortalecem direitos, nem aperfeiçoam o ordenamento jurídico. São sintomas agudos da crise de representação já diagnosticada: um Parlamento que abandona sua missão de guardião do bem comum para converter-se em escudo dos próprios parlamentares.
Ao deslocarem o centro da atividade legislativa do interesse público para a autoproteção dos representantes, e de aliados políticos, tais propostas não apenas confirmam o estado de decadência do Legislativo brasileiro, elas o radicalizam. Se aprovadas, consolidarão a ruptura do "romance em cadeia" institucional: não como novos capítulos de uma história constitucional coerente, mas como páginas rasgadas que corroem a integridade do texto democrático e esvaziam a confiança popular no sistema representativo.
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Referências
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 19. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.
DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153, Rel. Min. Eros Grau, j. 29 abr. 2010. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2643874.
O ESTADO DE S. PAULO. 1/3 dos projetos de lei sobre saúde contraria ou repele políticas. São Paulo, 14 ago. 2025, Caderno A, p. A20.
_______________________. A atual decadência do poder legislativo e a erosão da democracia representativa. São Paulo, 20 ago. 2025, Opinião Espaço Aberto on line. Disponível em: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/a-atual-decadencia-do-legislativo-e-a-erosao-da-democracia-representativa/?srsltid=AfmBOoohUu7zTDN42719csPXoWTNvkg6P6qHgQN-ghZZbKxGgO5A-Prv


