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Wittgenstein: Jogos de linguagem e formas na imputação penal objetiva

Neste artigo trato da crítica à linguagem privada à reconstrução da ação significativa como prática pública.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Atualizado às 14:03

A imputação penal, enquanto construção jurídica, exige mais do que enunciados doutrinários e categorias tradicionais. Exige um modelo epistemológico que se sustente racionalmente diante dos princípios constitucionais e dos desafios de um Direito Penal garantista. É nesse contexto que as contribuições do segundo Wittgenstein se mostram decisivas. A filosofia da linguagem, em sua vertente analítica, oferece os instrumentos para superar a arbitrariedade dos modelos subjetivistas e para reconstruir a imputação penal a partir da ação significativa, e não de ficções psicológicas.

Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein abandona as pretensões de seu primeiro grande trabalho, o Tractatus Logico-Philosophicus, e reformula de modo radical o papel da linguagem na filosofia e na vida social. Ao contrário do que se sustentava anteriormente, a ideia de que a linguagem funciona como uma representação pictórica do mundo, Wittgenstein passa a defender que o significado não é uma essência que reside nas palavras, mas o uso que se faz delas nos jogos de linguagem que compõem nossas formas de vida.

Esse giro filosófico é decisivo. A linguagem deixa de ser um espelho da realidade para se tornar prática. E essa prática é normada, compartilhada, social. Assim, falar de "dolo", "imprudência", "culpabilidade" ou "injusto penal" só faz sentido se essas expressões estiverem inseridas em contextos práticos que lhes conferem significado. A ação humana, nesse sentido, não é um "ato de vontade" que se dá em uma esfera mental isolada, ela é, antes, uma conduta dotada de sentido público, passível de descrição normativa. É por isso que, conforme desenvolvo em minha teoria, a imputação penal deve basear-se nos caracteres significativos e nos quesitos significativos da ação, jamais em suposições psicológicas.

A crítica de Wittgenstein à definição ostensiva da linguagem, tal como formulada por Santo Agostinho, revela exatamente isso. Para Wittgenstein, aprender uma linguagem não é apenas associar palavras a objetos. É participar de uma forma de vida, de um jogo normativo no qual as palavras adquirem sentido apenas por meio de seu uso. A imputação penal, enquanto operação jurídica, é precisamente isso: um jogo de linguagem. Um jogo que deve seguir regras públicas, racionais, verificáveis, jamais presunções intuitivas sobre a interioridade dos sujeitos.

Essa concepção exige uma mudança de paradigma na teoria do delito. É necessário abandonar a busca por elementos volitivos ocultos (a clássica vontade dolosa presumida, por exemplo) e substituí-la por uma análise das manifestações objetivas da ação do agente. Não se trata de ignorar o elemento subjetivo, mas de reformulá-lo. A subjetividade jurídica não pode mais ser entendida como um dado psicológico, mas como um sentido atribuído a uma conduta, conforme sua inserção em um contexto normativo.

Ao adotar essa abordagem, eliminamos o espaço para categorias fictícias como o "dolo eventual". Essa figura, construída a partir da tentativa de classificar gradações da vontade, não resiste à análise filosófica rigorosa. Se a vontade é o critério do dolo, e se a vontade não admite gradações internas (ou se tem, ou não se tem), então a noção de dolo eventual é logicamente inconsistente. Mais do que isso: ela é dogmaticamente insustentável, pois viola os critérios normativos do próprio jogo de linguagem jurídico.

Wittgenstein nos ensina que não há linguagem privada, e que a significação nasce do uso público. Isso significa que não há "dolo invisível" que o juiz possa presumir com base em sentimentos ou "intuições jurídicas". A imputação dolosa exige manifestação da vontade de alcançar o resultado típico. Aquilo que for meramente previsto, tolerado ou aceito sem finalidade dirigida, deve ser tratado como imprudência, com a devida classificação normativa, como proponho: imprudência consciente gravíssima, grave ou leve, conforme os critérios da Teoria Significativa da Imputação.

Os jogos de linguagem, portanto, são mais do que uma metáfora. Eles nos oferecem o modelo epistemológico adequado para pensar o Direito Penal como prática normativa. Para cada tipo penal, há um jogo específico: com suas regras, sua forma de vida, seus critérios interpretativos. O jurista, nesse contexto, é aquele que compreende e aplica corretamente as regras desses jogos, reconstruindo os sentidos das ações humanas com base no uso social da linguagem.

Por essa razão, é equivocada qualquer tentativa de extrair do dolo categorias psicológicas, graduáveis ou subjetivamente complexas. Dolo não é um estado mental, é um sentido normativo atribuído a uma conduta. E esse sentido só pode ser reconhecido se houver manifestação clara da vontade típica, dentro do jogo de linguagem jurídico em que a ação se insere.

Wittgenstein, ao afirmar que "seguir uma regra não é acreditar que se está seguindo uma regra", antecipa um dos maiores problemas do Direito Penal contemporâneo: a confusão entre crença subjetiva e prova objetiva. É exatamente isso que ocorre quando se admite o dolo eventual: presume-se que o agente "assumiu o risco", mesmo sem manifestação objetiva da vontade. Isso contraria o próprio conceito de seguir uma regra, e compromete a legitimidade da imputação.

Por fim, cabe destacar que a filosofia da linguagem, tal como concebida por Wittgenstein, não serve apenas como fundamento teórico da Teoria Significativa da Imputação. Ela é também um instrumento de resistência ao arbítrio, à opacidade dos discursos jurídicos e à colonização moral da dogmática penal. Substituir a especulação pela descrição, a crença pela norma, a ficção pela linguagem, esse é o caminho que propomos para reconstruir a imputação penal a partir de bases filosóficas sólidas e constitucionalmente legítimas.

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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá

VIP Antonio Sanches Sólon Rudá

Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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