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Entre direitos e fiscalização: A revista invertida nas unidades penais

O procedimento de inspeção visa redefinir a fiscalização prisional, protegendo indivíduos vulneráveis e assegurando a segurança à luz do Tema 998/STF e dos direitos fundamentais.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Atualizado às 14:04

O STF, ao julgar o Tema 998 (ARE 959.620/RS), fixou balizas para revistas em visitantes de estabelecimentos prisionais, vedando a revista íntima vexatória e reconhecendo parâmetros estritos para hipóteses excepcionais, além de impor prazo de 24 meses para a instalação de tecnologia (scanners corporais, raio-X e detectores) em todo o país. No mesmo movimento, consolidou-se a noção de revista invertida.

No léxico das políticas prisionais brasileiras, a revista invertida consiste em procedimento que, especialmente quando se trata de crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência que não possam emitir consentimento válido, desloca o foco da inspeção para o custodiado, reduzindo significativamente os riscos de violação da dignidade do visitante.

Procede-se, a seguir, à transcrição literal da tese fixada, in verbis:

 "1. Em visitas sociais nos presídios ou estabelecimentos de segregação é inadmissível a revista íntima vexatória com o desnudamento de visitantes ou exames invasivos com finalidade de causar humilhação. A prova obtida por esse tipo de revista é ilícita, salvo decisões judiciais em cada caso concreto. A presente decisão tem efeitos prospectivos a partir da publicação da ata do julgamento. 2. A autoridade administrativa, de forma fundamentada e por escrito, tem o poder de não permitir a visita diante da presença de indício robusto de ser a pessoa visitante portadora de qualquer item corporal oculto ou sonegado, especialmente de material proibido, como produtos ilegais, drogas ou objetos perigosos. São considerados robustos indícios embasados em elementos tangíveis e verificáveis, como informações prévias de inteligência, denúncias, e comportamentos suspeitos. 3. Confere-se o prazo de 24 meses, a contar da data deste julgamento, para aquisição e instalação de equipamentos como scanners corporais, esteiras de raio-x e portais detectores de metais em todos os estabelecimentos penais. 4. Fica determinado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública e aos Estados que, por meio dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional e do Fundo Nacional de Segurança Pública, promovam a aquisição ou locação, e distribuição de scanners corporais para as unidades prisionais, em conformidade com sua atribuição de coordenação nacional da política penitenciária, assegurando a proteção dos servidores, a integridade dos detentos e a dignidade dos visitantes, prevenindo práticas abusivas e ilícitas, sem interferir na autonomia dos entes federativos, e garantindo a aplicação uniforme das diretrizes de segurança penitenciária no país. 5. Devem os entes federados, no âmbito de suas atribuições, garantir que a aquisição ou locação de scanners corporais para as unidades prisionais, esteja contemplada no respectivo planejamento administrativo e orçamento, com total prioridade na aplicação dos recursos. 6. Excepcionalmente, na impossibilidade ou inefetividade de utilização do scanner corporal, esteira de raio-x, portais detectores de metais, a revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais, diante de indícios robustos de suspeitas, tangíveis e verificáveis, deverá ser motivada para cada caso específico e dependerá da plena concordância do visitante, vedada, em qualquer circunstância, a execução da revista como forma de humilhação e de exposição vexatória; deve ser realizada em local adequado, exclusivo para tal verificação, e apenas em pessoas maiores e que possam emitir consentimento válido por si ou por meio de seu representante legal, de acordo com protocolos gerais e nacionais preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero do visitante, preferencialmente por profissionais de saúde, nas hipóteses de desnudamento e exames invasivos. (i) O excesso ou o abuso da realização da revista íntima acarretarão responsabilidade do agente público ou do profissional de saúde habilitado e ilicitude de eventual prova obtida. (ii) Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá, de forma fundamentada e por escrito, impedir a realização da visita. (iii) O procedimento de revista em criança, adolescente ou pessoa com deficiência intelectual que não possa emitir consentimento válido será substituído pela revista invertida, direcionada à pessoa a ser visitada". (ARE 959620, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 2/4/2025, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-s/nDIVULG 1/7/2025 PUBLIC 2/7/2025)

A orientação do Tribunal Constitucional pela substituição de métodos invasivos por alternativas menos gravosas dialoga com os direcionamentos do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, especialmente a resolução 28/22, que estabeleceu a prioridade de uso de equipamentos eletrônicos na revista pessoal, vedando desnudamento, toque ou introdução de objetos em cavidades, uso de cães ou outros animais farejadores, bem como solicitação de agachamentos ou saltos, e atribuindo a competência à Polícia Penal. A norma prevê, inclusive, a possibilidade de revista do preso ao término da visita, operacionalizando, na prática, os arranjos conhecidos como revista invertida.

Há, na prática, inversão do foco da inspeção para aqueles citados no decisum: em vez de submeter o visitante a uma revista íntima, realiza-se um procedimento sobre o custodiado, que pode incluir inspeção do corpo, dos pertences ou da cela.

Do ponto de vista das políticas públicas penitenciárias, a revista invertida configura-se como técnica subsidiária, concebida para minimizar os impactos invasivos sobre indivíduos que, por sua condição, se encontram em situação de vulnerabilidade. A metodologia prioriza a dignidade do visitante, preservando sua intimidade e integridade física, sem prejuízo da segurança do estabelecimento prisional. Nesse sentido, a prática traduz uma racionalidade normativa que pretende conciliar a proteção de direitos fundamentais e necessidade de fiscalização institucional.

Historicamente, o sistema penitenciário brasileiro registrou diversos episódios de revista vexatória, muitas vezes acompanhados de constrangimento e humilhação para familiares da pessoa custodiada pelo Estado, especialmente crianças, adolescentes e pessoas com deficiência. O estudo "Revista vexatória: uma prática constante" (2021), conduzido por sete organizações da sociedade civil, trouxe dados relevantes sobre a realidade das revistas íntimas nas prisões brasileiras. No que se refere a crianças e adolescentes - hoje submetidos ao procedimento da revista invertida -, à época ainda passavam pela revista pessoal. Conforme síntese apresentada pelo portal Conectas Direitos Humanos (2022):

"A presença de crianças também faz parte da realidade das visitas nos presídios, pois parentes as levam para se encontrarem com pais, mães e avós que estão presos, mantendo os vínculos afetivos. Grande parte dos familiares (54,1%) afirmou que seus filhos já foram submetidos a procedimentos vexatórios e chama a atenção o fato de que, em 23,1% dos casos, não foi dado o direito do responsável estar presente. Assim, a revista foi realizada por agentes prisionais sem acompanhamento."

A adoção da revista invertida surge como resposta a essas práticas, funcionando como instrumento de prevenção de abusos. Ao deslocar o foco da inspeção para o custodiado, reduz-se a incidência de procedimentos que violam padrões constitucionais de dignidade e respeito à pessoa humana.

Além de proteger visitantes vulneráveis, a revista invertida redefine o ônus da fiscalização, concentrando-o sobre aquele que permanece sob custódia do Estado. Tal rearranjo não apenas atende a princípios de proporcionalidade e razoabilidade, mas também reforça a lógica de responsabilidade institucional, ao submeter à inspeção direta o sujeito que está sob a tutela estatal, em vez de terceiros alheios e vulneráveis à execução penal. Essa técnica evidencia um alinhamento entre segurança pública e direitos fundamentais, na medida em que harmoniza controle institucional com limites éticos e legais.

A moldura normativa do instituto apoia-se na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), proteção aos direitos fundamentais, como à intimidade, honra e imagem (art. 5º, X), vedação de provas ilícitas (art. 5º, LVI), e nos parâmetros da lei de execução penal (vigilância e disciplina compatíveis com respeito à pessoa). O Tema 998 reforça a leitura de que segurança e direitos fundamentais não são termos excludentes, mas exigem necessidade, adequação e proporcionalidade na escolha do meio de revista pelo agente.

Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o PL 405/25, que aguarda a designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Ainda em fase inicial, o projeto visa regulamentar o procedimento de revista pessoal em estabelecimentos prisionais e assemelhados, devendo, presumivelmente, dispor expressamente sobre a chamada revista invertida em relação a crianças, adolescentes e pessoas com deficiência incapazes de manifestar sua vontade.

Isto porque, sob a perspectiva de políticas públicas, a revista invertida configura-se como técnica subsidiária, com três objetivos centrais: (i) reduzir o contato invasivo com visitantes vulneráveis; (ii) desincentivar práticas humilhantes historicamente documentadas durante as visitas; e (iii) realinhar o ônus da fiscalização para aqueles que permanecem sob custódia estatal.

Em síntese, a revista invertida emerge como instrumento imprescindível para a modernização do sistema prisional, promovendo segurança e eficiência sem violar princípios constitucionais. Ao estabelecer balizas claras para a fiscalização de visitantes e custodiados, o STF e os órgãos de política penitenciária consolidam a compreensão de que respeito à dignidade humana, à intimidade e à legalidade não se opõe à proteção institucional, mas constitui alicerce de uma execução penal compatível com os valores democráticos e a salvaguarda de direitos fundamentais.

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Referências bibliográficas

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 405, de 12 de fevereiro de 2025. Dispõe sobre o procedimento de revista pessoal em estabelecimentos prisionais e assemelhados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2483805. Acesso em: 22 set. 2025.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2025.

BRASIL. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Resolução nº 28, de 6 de outubro de 2022. Estabelece diretrizes para a realização de revista pessoal em estabelecimentos prisionais e veda a utilização de práticas vexatórias para o controle de ingresso aos locais de privação de liberdade; revoga a Resolução nº 5, de 28 de agosto de 2014; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 06 de outubro de 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 959620. Relator: Min. Edson Fachin. Tribunal Pleno. Julgado em 2 abr. 2025. Processo eletrônico. Repercussão geral - mérito. DJe s/n, divulgado em 1 jul. 2025, publicado em 2 jul. 2025.

CONECTAS. "Pagamos um preço muito alto por ser familiar de preso": a realidade das revistas íntimas nas prisões. Conectas Direitos Humanos, 18 fev. 2022. Disponível em: https://conectas.org/noticias/pagamos-um-preco-muito-alto-por-ser-familiar-de-preso-a-realidade-das-revistas-intimas-nas-prisoes/. Acesso em: 22 set. 2025.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF proíbe revista humilhante em presídio e admite inspeção íntima em casos excepcionais. Notícias STF, 4 abr. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-proibe-revista-humilhante-em-presidio-e-admite-inspecao-intima-em-casos-excepcionais/. Acesso em: 15 set. 2025.

Isis Mayra Mascarenhas Guimarães Ferreira

Isis Mayra Mascarenhas Guimarães Ferreira

Advogada e Parecerista Jurídica. Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP/Brasília).

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