PEC da malandragem: Blindando a impunidade
O Brasil é um país onde a malandragem virou carreira pública. Só falta a "emenda da vergonha". Mas essa, infelizmente, não tem relator.
quinta-feira, 25 de setembro de 2025
Atualizado às 10:58
A chamada "PEC da malandragem" é o apelido dado à PEC da Blindagem, uma proposta de emenda à Constituição que foi aprovada na Câmara dos Deputados e está sob análise no Senado.
Ela gerou forte reação popular. Movimentos populares e artistas organizaram protestos em mais de 30 cidades, com destaque para São Paulo, onde mais de 40 mil pessoas se reuniram com a bandeira do Brasil.
Aliás, na Praia de Copacabana estavam no palco estrelas como: Gil, Caetano, Djavan, Paulinho da Viola, Ivan Lins...
O que propõe a PEC da blindagem?
- Exige autorização prévia do Congresso (por votação secreta) para que o STF possa abrir processos criminais contra deputados e senadores;
- Restringe prisões de parlamentares;
- Amplia os privilégios parlamentares, dificultando investigações e punições;
- Amplia o foro privilegiado para presidentes de partidos.
Blindagem ou licença para o abuso?
Essas medidas representam um retrocesso institucional, pois criam obstáculos políticos à atuação do Judiciário e dificultam a responsabilização de parlamentares por atos ilícitos.
Em vez de fortalecer a democracia, a PEC parece institucionalizar a impunidade.
O Brasil na contramão. Em democracias consolidadas como Reino Unido e Alemanha, a imunidade parlamentar é limitada a atos relacionados ao exercício do mandato, como discursos e votos.
Investigações criminais e prisões seguem o baile, sem necessidade de aval político.
A PEC brasileira, ao contrário, coloca os parlamentares acima da lei, criando uma casta política blindada contra investigações.
Reação popular e o papel da sociedade
A resposta da sociedade civil foi imediata e contundente. Protestos tomaram as ruas de todas as capitais brasileiras.
A mobilização demonstra que a população não aceita retrocessos democráticos disfarçados de garantias institucionais.
A pressão popular já surtiu efeito: senadores de diversos partidos sinalizaram que a proposta não deve avançar no Senado.
Mas a vigilância precisa continuar. A democracia exige transparência, responsabilidade e igualdade perante a lei - valores que essa PEC ameaça corroer.
A PEC da malandragem não é apenas uma proposta legislativa; é um sintoma de uma cultura política que resiste à prestação de contas.
Rejeitá-la é um passo necessário para reafirmar que ninguém está acima da lei, nem mesmo aqueles que a escrevem.
Hermenêutica do privilégio
A PEC da Malandragem é mais do que uma proposta legislativa, é uma hermenêutica do privilégio.
Ela transforma o princípio republicano em um adereço retórico, invertendo a lógica constitucional: em vez de limitar o poder, ela o consagra.
Ela representa um desvio hermenêutico e institucional. Ao transformar o Parlamento em instância de autorização prévia para o exercício da jurisdição penal, ela compromete a igualdade perante a lei e fragiliza os mecanismos de controle democrático.
A PEC da Malandragem não é apenas um desvio ético: é uma ruptura ontológica com o pacto constitucional.
A Constituição, enquanto norma fundante, não pode ser instrumentalizada para fins de blindagem política.
A democracia exige responsabilidade. E a responsabilidade começa quando o poder se reconhece como limitado.
A votação secreta, o foro ampliado, a autorização prévia para investigar: tudo isso revela uma tentativa de capturar o Direito para fins não republicanos.
É o velho truque do "direito como estratégia de poder", onde a norma é moldada ao sabor das conveniências políticas.
Se essa PEC prosperar, não será apenas um golpe na democracia. Será a institucionalização da malandragem como método.
A democracia não sobrevive à hermenêutica da conveniência. E o Direito, quando se ajoelha diante do poder, deixa de ser Direito.
Se o Direito serve para proteger o poder contra o povo, então já não é mais Direito.
O malandro oficial
A figura do malandro ocupa lugar central na cultura brasileira. Desde o samba até a literatura, ele é retratado como aquele que "sabe das coisas", que escapa das regras sem romper com elas.
Na música "O Malandro", Chico Buarque desconstrói essa imagem romântica, revelando que o verdadeiro malandro não é o da Lapa, mas o que circula nos gabinetes, veste terno e domina os ritos do poder.
Um dos trechos mais emblemáticos diz:
"O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal"
O verso não é apenas irônico: é profético. A PEC da blindagem, apelidada de PEC da malandragem, parece escrita para esse personagem.
Ela não protege o mandato; protege o malandro oficial. Aquele que, como diz Chico, "não pisa na bola, não perde a linha, não perde a hora".
O que Chico denuncia poeticamente, a PEC da malandragem parece legitimar juridicamente: a esperteza como método, a blindagem como regra, e o poder como território de impunidade.
Enquanto o "malandro pra valer" se aposentou (o que sobrou foi o malandro oficial), "mora lá longe e chacoalha num trem da Central," talvez até tenha arranjado trabalho, o malandro oficial se instalou no plenário, com foro privilegiado, dinheiro público, mordomias e voto secreto.
Ele não precisa mais da navalha - tem a Constituição!
Conclusão
A PEC da Malandragem é um monumento à esperteza legislativa. Seus autores não querem acabar com a corrupção, querem torná-la um privilégio regulamentado.
Trata-se de uma jabuticaba institucional: em nenhum outro lugar do mundo se exige autorização política para investigar quem já deveria prestar contas ao povo.
Se aprovada, a emenda criará uma casta de cidadãos blindados, com foro privilegiado e voto secreto, tudo em nome da democracia.
É como se o Congresso dissesse:
"Somos todos iguais, mas alguns são mais iguais que os outros."
O Brasil já teve a "emenda da reeleição", a "emenda da bengala" e agora ensaia a "emenda da blindagem".
Falta só a "emenda da vergonha". Mas essa, infelizmente, não tem relator.


