Da legalidade à juridicidade: Limites à atuação sancionadora da Administração Pública
O artigo analisa a transição da legalidade à juridicidade no Direito Administrativo Sancionador, destacando princípios constitucionais como limites ao poder punitivo estatal
quarta-feira, 24 de setembro de 2025
Atualizado às 13:56
Introdução
O Direito Administrativo Sancionador ocupa importante posição na dinâmica de funcionamento do Estado brasileiro, revelando-se como instrumento de concretização de tutela de interesses coletivos em áreas sensíveis como meio ambiente, ordem econômica, sistema financeiro e demais temas caros ao interesse público.
Desde a Constituição Federal de 1988 observa-se uma ampliação expressiva da atuação sancionatória da Administração Pública, fruto da constitucionalização do Direito Administrativo e da progressiva expansão da intervenção estatal em diferentes domínios da vida social.
Tal fenômeno, entretanto, suscita debates relevantes sobre os limites e fundamentos da prerrogativa estatal de punir. Se, por um lado, a legalidade estrita, inspirada no modelo penal clássico, serviu de pilar inicial para conferir legitimidade à imposição de sanções, por outro, mostra-se insuficiente diante da crescente complexidade regulatória e da multiplicidade de normas infralegais que conformam a atividade sancionadora.
Nesse contexto, emerge a necessidade de se repensar a base principiológica que legitima a atuação punitiva da Administração, deslocando-se do paradigma da legalidade formal para o da juridicidade. Esse movimento, consagrado pela doutrina constitucional contemporânea, significa reconhecer que a Administração não se vincula apenas à lei em sentido estrito, mas também à Constituição e ao conjunto de princípios jurídicos que dela irradiam.
A ideia de juridicidade, portanto, amplia o espectro de controle da atividade sancionatória, permitindo que a legalidade seja compreendida em harmonia com princípios como proporcionalidade, razoabilidade, segurança jurídica e motivação. Além disso, pode ser enriquecida pela leitura dos princípios formulados pelo filósofo Lon Fuller em sua obra "The Morality of Law", que enfatizam requisitos como clareza, publicidade, congruência e estabilidade das normas como condições mínimas para a legitimidade do sistema jurídico.
Assim, o presente estudo tem por objetivo analisar a transição da legalidade estrita para a juridicidade no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, com destaque para as balizas principiológicas que devem orientar a atuação punitiva da Administração Pública no Estado Democrático de Direito.
O princípio da legalidade no Direito Administrativo Sancionador
A legalidade, em sua formulação clássica, constitui o fundamento central do Estado de Direito e da limitação do poder punitivo estatal.
No campo penal, consagra-se pelo princípio da reserva legal, da taxatividade e da anterioridade, traduzido do brocado latim nullum crimen, nulla poena sine lege, funcionando como barreira contra arbitrariedades. Da mesma forma foi calcado o âmbito administrativo sancionador, com matriz constitucional no art. 5º, II, da Constituição de 1988, que estabelece que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Contudo, a evolução do constitucionalismo contemporâneo e a complexidade do regime regulatório revelaram a insuficiência de uma legalidade estrita, reduzida à lei formal. Diversos setores sociais passaram a ser regulados por normas infralegais editadas por agências, conselhos e órgãos administrativos, fazendo emergir tensões entre o princípio da reserva legal e a necessidade de regulação dinâmica de condutas.
À vista disso, foi necessária a criação de uma concepção mais ampla de legalidade, vinculada ao princípio da juridicidade.
A legalidade em sentido estrito traduz-se na exigência de lei formal como fundamento da atuação administrativa. Já em sentido amplo, abrange não apenas a lei, mas também a moralidade, a probidade, a razoabilidade e outros princípios constitucionais que integram a noção de Direito.
Assim, a Constituição de 1988, ao positivá-los em seu art. 37, caput, transformou a legalidade em categoria que absorve os princípios administrativos e exige do agente público não apenas a conformidade formal com a lei, mas também a observância da ética, da lealdade e da boa-fé.
Essa leitura alargada se conecta diretamente com o princípio da moralidade administrativa, historicamente desenvolvido na doutrina de Hauriou e trazido ao Brasil por Hely Lopes Meirelles, e incorporado expressamente à Constituição de 1988.
A moralidade e a probidade administrativas, ainda que semanticamente próximas, têm distinções no plano sancionatório.
Se por um lado a moralidade surge como princípio de conteúdo axiológico indeterminado, a improbidade, por outro, configura ilícito jurídico definido em lei, com tipicidade própria.
A inserção da moralidade na Constituição simbolizou a exigência de que a Administração se pautasse não apenas pela legalidade formal, mas também por padrões éticos e de correção substancial.
Os princípios são normas dotadas de força cogente, que irradiam efeitos sobre todo o sistema jurídico e exigem conformidade positiva e negativa dos atos administrativos. Assim, qualquer conduta que desborde da moralidade, probidade, eficiência ou proporcionalidade resulta em vício de juridicidade e, portanto, em invalidade. Essa perspectiva pós-positivista reforça a função dos princípios como limites e, ao mesmo tempo, fundamentos normativos da atividade sancionadora.
Portanto, o princípio da legalidade no Direito Administrativo Sancionador deve ser compreendido em dupla acepção, em seu sentido formal e substancial. No sentido formal, compreende-se como reserva legal necessária para a criação de sanções e definição de infrações; e no sentido substancial, como exigência de observância de valores constitucionais mais amplos, tais como a moralidade, probidade, razoabilidade, proporcionalidade e eficiência que garantem a legitimidade democrática da atuação punitiva da Administração.
Da legalidade à juridicidade: evolução conceitual
A compreensão da atuação sancionadora da Administração Pública sofreu um processo de transformação paradigmática. Se, inicialmente, prevalecia a ideia de que bastava a observância da lei formal, legalidade estrita, a Constituição de 1988 impôs um modelo de juridicidade que amplia os limites da atuação estatal para além do texto legal, alcançando também os princípios e valores constitucionais.
Nesse novo cenário, juridicidade significa submeter a Administração não apenas às leis editadas pelo legislador, mas a todo o sistema normativo, incluindo os princípios expressos e implícitos da Constituição. Trata-se de uma legalidade material, que exige não só a conformidade formal dos atos com a lei, mas também sua adequação a valores principiológicos.
Esse deslocamento da legalidade para a juridicidade responde às insuficiências da legalidade formal diante da complexidade das relações sociais contemporâneas e do pluralismo normativo gerado pelo Estado regulador. Órgãos administrativos, agências e entidades de fiscalização passaram a exercer intensa atividade normativa e sancionadora, muitas vezes mediante regulamentos, portarias ou resoluções, cuja legitimidade depende da conexão não apenas com a lei, mas com os princípios constitucionais.
A moralidade e a probidade administrativas desempenham aqui um papel central. Enquanto a legalidade estrita se limita a exigir lei prévia para a imposição de sanções, a juridicidade demanda que o exercício sancionador também se paute por critérios éticos, de correção funcional e de lealdade institucional. Os princípios constitucionais não são meros postulados axiológicos, mas normas jurídicas dotadas de força vinculante, cuja violação compromete a própria juridicidade do ato sancionador.
Nesse sentido, Lon Fuller em sua obra "The Morality of Law", destaca requisitos como clareza, publicidade, congruência e estabilidade normativa como condições para um sistema jurídico legítimo. Aplicados ao Direito Administrativo Sancionador, tais requisitos impõem que as sanções não sejam apenas legais, mas também compreensíveis, estáveis e justificadas, de forma a preservar a confiança dos administrados e limitar a arbitrariedade estatal.
Portanto, a passagem da legalidade à juridicidade representa a superação do formalismo restrito da lei em favor de um modelo de atuação administrativa ancorado em normas e princípios constitucionais. Essa evolução não elimina a legalidade, mas a projeta para um plano mais amplo e substancial, no qual a validade e a legitimidade das sanções administrativas dependem de sua conformidade não apenas com a lei, mas com todo o ordenamento constitucional.
Balizas principiológicas da atuação sancionadora
A Constituição Federal de 1988, calcada na lógica garantista, deve ser a pedra angular do Direito Administrativo Sancionador, tal como é no Direito Penal. Com isso, o exercício do poder punitivo deve ser reconduzido sob o sistema garantístico, sob pena de comprometer sua legitimidade.
Com a expansão do Direito Administrativo Sancionador após a Constituição e a superação da legalidade formal com a adoção da juridicidade sancionadora, tornou-se necessário encontrar balizas que garantam tanto a eficácia da repressão administrativa quanto a proteção dos direitos fundamentais dos administrados.
Com isso, a proporcionalidade unida à razoabilidade constitui uma dessas balizas centrais, devendo operar como limite essencial contra as possíveis arbitrariedades do poder punitivo estatal.
Inspirada no devido processo substancial, exige que toda sanção administrativa observe critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, evitando medidas desarrazoadas ou desproporcionais à gravidade da infração.
A tipicidade formal, por vezes excessivamente aberta, como no caso de noções vagas previstas no ordenamento jurídico, tais como "probidade" ou "decoro", não pode justificar a aplicação automática de sanções. É necessário que a Administração demonstre a materialidade da lesão e a gravidade da conduta, sob pena de violar o núcleo garantista que protege os administrados contra excessos normativos.
De igual modo, a segurança jurídica deve ser utilizada como baliza fundamental para assegurar a legitimidade da atividade sancionadora estatal. Esse princípio assegura a previsibilidade e a estabilidade das relações jurídicas, conferindo ao administrado a confiança legítima de que não será surpreendido por mudanças abruptas ou pela aplicação retroativa de sanções.
Nesse ponto, juridicidade administrativa, ao se fundar diretamente na Constituição, deve preservar a confiança do cidadão e assegurar coerência às práticas sancionatórias.
Sabe-se que a Constituição Federal impõe ao administrador público a aderência ao princípio da motivação. A motivação revela a aderência da decisão administrativa não apenas à lei, mas também aos princípios constitucionais, permitindo ao administrado compreender a racionalidade do ato e impugná-lo de maneira efetiva. Desta forma, entende-se que o princípio da motivação também deve ser analisado como baliza constitucional do poder punitivo. Isso porque a exigência de que os atos sancionadores sejam devidamente fundamentados não se reduz a uma formalidade, mas é condição de legitimidade e controle.
Esses princípios dialogam com a teoria da moralidade interna do Direito de Fuller. A sanção administrativa, para ser legítima, não pode se reduzir a um comando obscuro ou instável, mas deve expressar um padrão normativo transparente, consistente e previsível, capaz de orientar a conduta dos cidadãos.
Assim, as balizas principiológicas da atuação sancionadora funcionam como filtros constitucionais que complementam a legalidade formal, projetando-a em direção a um modelo de juridicidade garantista. Trata-se de verdadeiro equilíbrio entre a necessidade de eficiência estatal e a proteção das liberdades individuais, assegurando que o poder punitivo da Administração não descambe em arbitrariedade nem se reduza a um formalismo vazio.
Conclusão
O Direito Administrativo Sancionador consolidou-se como instrumento indispensável para a tutela do interesse público, mas sua legitimidade depende da observância das balizas principiológicas que orientam a atuação estatal. A Constituição de 1988 marcou a transição da legalidade em sentido estrito para uma juridicidade substancial, vinculando a Administração não apenas à lei, mas também aos princípios e valores constitucionais.
Nesse cenário, o poder sancionador deve ser compreendido sob uma lógica garantista, em que a proteção de direitos fundamentais se sobrepõe à tentação autoritária de conferir amplitude irrestrita ao Estado.
A vagueza dos tipos sancionadores impõe ao intérprete a necessidade de construir uma fundamentação consistente, de modo a reconduzir a sanção ao núcleo essencial de proteção do Estado Democrático de Direito.
Os princípios constitucionais da moralidade, probidade, segurança e motivação assumem centralidade como fundamentos normativos da atividade administrativa, pois exigem que a conduta estatal não se restrinja à legalidade formal, mas se conforme a padrões de ética, boa-fé e lealdade. A inobservância desses valores compromete a legitimidade da atuação administrativa.
Normas obscuras, instáveis ou incongruentes, conforme advertiu Fuller, carecem de legitimidade. No campo sancionador, isso significa que o exercício do poder punitivo estatal só será válido quando pautado pela clareza, estabilidade e congruência com os valores constitucionais.
Conclui-se, portanto, que o Direito Administrativo Sancionador apenas alcançará plena legitimidade se aplicado em harmonia com os princípios constitucionais que o informam. A tensão entre a eficiência estatal e a proteção das liberdades individuais deve ser constantemente equilibrada, de modo a assegurar que o poder sancionador seja, ao mesmo tempo, eficaz na repressão de condutas lesivas e fiel aos fundamentos axiológicos do Estado Democrático de Direito.
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Referências bibliográfica
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