A penhorabilidade do bem de família de alto valor na reforma do CC
Discute-se a proposta de mudança legislativa para a admissão da penhora de bem de família de alto valor, a partir de exclusivo critério quantitativo, uma inovação a ser interpretada sistematicamente.
sexta-feira, 26 de setembro de 2025
Atualizado em 29 de setembro de 2025 09:38
A tutela do bem de família contra a execução de dívidas titularizadas pelo seu proprietário comporta uma tensão entre, de um lado, a garantia creditícia e, de outro, a proteção do imóvel residencial familiar. Questão complexa se coloca quando o imóvel em pauta é dotado de suntuosidade, gerando posicionamentos diversos na doutrina e na jurisprudência brasileira. Com o intento de "resolver esse dilema com a alteração do texto da lei"1, o PL 4/252 propõe a inclusão do art. 391-A, §3º, ao CC3.
De autoria do senador Rodrigo Pacheco, então presidente do Senado Federal, tal proposta legislativa foi elaborada pela comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do CC. A prioridade atribuída à matéria não era esperada pela comunidade jurídica, especialmente na velocidade em que a reforma de tão significativa codificação foi produzida, visto o curto prazo de 180 dias. Nesse contexto, relevantes críticas têm sido dirigidas ao texto final do projeto de reforma do CC, que deve ser submetido a debate substancial e possíveis emendas no processo legislativo.4
A previsão legislativa de penhora do bem de família luxuoso é uma das inovações pretendidas pela reforma, que elege uma posição no debate acerca do assunto. Por isso, o presente ensaio perpassa a análise do panorama existente quanto à excussão do bem de família de alto valor e dedica-se ao exame crítico da proposta e de sua conformação no sistema jurídico.
O instituto do bem de família remonta à figura do homestead, previsto no Homestead Exemption Act, de 1839, na República do Texas, criado a fim de proteger a pequena propriedade rural familiar. No Brasil, previu-se primeiro o bem de família voluntário, presente nos arts. 70 a 73 do CC de 1916. Posteriormente, o decreto-lei 3.200/1941 estatuiu um limite de valor para o imóvel familiar, restrição revogada com a lei 6.742/1979.5
A Constituição Federal de 1988 operou uma transformação axiológica no ordenamento jurídico, erigindo cruciais princípios de matriz social e alçando a dignidade da pessoa humana à posição central do sistema. As relações jurídicas privadas são impactadas direta e indiretamente pelo novo modelo constitucional, iniciando-se o processo de despatrimonialização do Direito Civil, visto que o centro do ordenamento é a pessoa, à qual devem estar funcionalizadas as situações jurídicas patrimoniais.6
Com o advento da lei 8.009, em 1990, fica instituído o bem de família legal e involuntário, em coexistência com o voluntário, preexistente e, também, incorporado ao CC de 2002 nos arts. 1.711 a 1.722. Assim, estatuiu-se o regime infraconstitucional de tutela material do bem imóvel em que a pessoa ou a entidade familiar constitui sua residência, ficando o bem isento de indicação à penhora e de excussão para satisfação de dívida do proprietário.
A proteção jurídica do bem de família fundamenta-se nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade (arts. 1º, III, e 3º, I, CF), aliados ao direito fundamental à moradia (art. 6º, CF) e à função social da propriedade (art. 5º, inciso XXIII, CF). Como se sabe, a habitação representa o espaço em que o ser humano se desenvolve e encontra abrigo e segurança, sendo substrato material para a promoção da dignidade, de modo que a sociedade deve proteger a moradia, ainda que limitando certos interesses jurídicos patrimoniais7. Desse modo, o bem de família coaduna-se com o princípio do patrimônio mínimo, corolário da dignidade humana segundo o qual se deve garantir à pessoa uma parcela patrimonial capaz de assegurar as condições básicas ou mínimas para a sua existência digna, constituindo patrimônio do qual não possa ser expropriada.8
Vale destacar que a evolução da citada figura culminou no entendimento de que a impenhorabilidade do bem de família alberga a entidade familiar em toda a sua amplitude, bem como pessoas solteiras, separadas e viúvas, conforme o verbete sumular 364 do STJ9. Na verdade, para além da proteção familiar, verifica-se que a impenhorabilidade do bem de família tem a função de proteger a existência digna e a moradia da pessoa humana, sendo destinatária de tutela independentemente de integrar uma entidade familiar.
Enquanto a impenhorabilidade do bem de família encontra-se consolidada em termos gerais, verifica-se atual e candente a discussão referente à extensão da tutela quando o bem imóvel em questão possui alto valor. Isso porque a satisfação do crédito seria restringida em prol da manutenção do padrão luxuoso de vida do devedor, ainda que a constrição judicial de seu patrimônio fosse uma consequência do inadimplemento obrigacional por ele perpetrado.
Tendo em vista a legislação infraconstitucional que trata da matéria, com a ausência de expressa exceção à impenhorabilidade do bem imóvel de família por sua luxuosidade, argumenta-se que o sistema jurídico brasileiro inadmite a penhora de bem de família - ainda que - de alto padrão. A jurisprudência do STJ vem se pautando nesse sentido, bastando que o imóvel seja a residência familiar do devedor para que a penhora seja proibida.10
Essa ótica, porém, fere desarrazoadamente o interesse creditício, que resta vulnerado enquanto o bem imóvel luxuoso do devedor é resguardado integralmente. Como mitigação desse entendimento, o STJ tem admitido a possibilidade excepcional de penhora de fração ideal do bem de família de alto padrão nos casos em que for possível o desmembramento do imóvel sem a sua descaracterização enquanto bem imóvel residencial11. A partir da análise da fattispecie concreta, seria identificável a possibilidade ou não de penhora de parte do imóvel. Caso aferida a indivisibilidade do bem imóvel, afastar-se-ia a penhora.
A análise funcional do bem de família propicia a correta compreensão do instituto, voltando-se às suas finalidades e efeitos. Nessa perspectiva, notadamente adotada pelo direito civil-constitucional, parcela da doutrina reconhece que, mesmo sem previsão legal expressa, o perfil funcional do bem de família no ordenamento jurídico brasileiro admite a penhorabilidade do bem de família de alto valor, desde que mantida uma existência digna e uma moradia proporcional aos interesses existenciais do devedor e sua família. Assegura-se, assim, a proporcionalidade dos interesses jurídicos em jogo e a efetividade da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF), considerando que o interesse legítimo de o credor ter a garantia do crédito e receber o benefício patrimonial devido é merecedor de tutela, não devendo ser inócuo quando a penhora não violar o patrimônio mínimo do devedor.
A ordem constitucional não tutela irrestritamente o interesse do devedor de manter moradia permanente em imóvel de alto valor, com extensa metragem, edificação opulenta, arquitetura requintada, dentre outros. O teor da proteção jurídica do bem de família engloba a moradia digna da pessoa, o que se faz possível fora de um imóvel luxuoso. Assim, a penhorabilidade do bem de família demanda cuidadosa avaliação concreta de sua suntuosidade, por meio de análise casuística que considere aspectos como as necessidades do devedor e de sua família, o número de residentes no imóvel, o padrão regular de vida na localização geográfica do imóvel, além da averiguação da inexistência de caráter irrisório da dívida para a possibilidade de penhora.
Portanto, a ausência de limite do valor do imóvel para o seu reconhecimento como bem de família e de critério quantitativo para a parcela a ser excutida não configura uma inadequação legislativa. Ao revés, incentiva a incursão do intérprete nos fatores fáticos de cada caso, proporcionando uma solução jurídica à luz dos elementos concretos, e não fundada genericamente em critérios predeterminados por eventual normativa.12
Além disso, a ausência de previsão expressa da penhorabilidade do bem de família de alto valor não afasta tal possibilidade se, excepcionalmente, for identificada em concreto a viabilidade de o devedor e sua família manterem uma vida digna residindo em outro imóvel. Nesse caso, parcela da verba decorrente da expropriação deve permanecer com o devedor, marcada por impenhorabilidade, em montante suficiente para a aquisição de outro imóvel que proporcione uma habitação digna a ele e sua família.
O projeto de reforma do CC prevê, em seu art. 391-A, a impenhorabilidade do patrimônio mínimo existencial da pessoa, estabelecendo no §3º a penhorabilidade da casa de morada de alto padrão. O limite para a penhora seria a metade do valor de mercado do bem, considerado em favor do devedor executado, ao qual restaria a outra metade (ou mais, a depender do percentual da excussão) em regime de impenhorabilidade.
Alguns aspectos da normativa proposta pelo PL 4/25 para a penhorabilidade do bem de família luxuoso merecem destaque. Primeiramente, a localização topográfica da disposição relativa à proteção do patrimônio mínimo no art. 391-A, em título que cuida do inadimplemento das obrigações, demonstra-se desajustada ao se levar em conta que o artigo visa, primordialmente, ao estabelecimento da tutela de interesse existencial, que não é o foco do título em que foi inserido.13
Em relação ao §3º do art. 391-A, é controversa a adoção de limite quantitativo aparentemente exclusivo para a penhora do bem imóvel. A previsão de um valor limite para a excussão indicaria que, uma vez respeitada a fronteira quantitativa, o referido bem comportaria a penhora. Isso revela a tentativa de matematizar o que constituiria uma moradia digna para o devedor, estabelecendo um patamar sem fundamentação econômica ou jurídica.
A teoria do patrimônio mínimo não propugna, porém, a preservação apenas de quantidade diminuta do patrimônio para a sobrevivência da pessoa, mas considera um mínimo qualitativo, que envolve um exame concreto que vise à dignidade da pessoa14. Desse modo, ainda que o §3º referencie tão somente um critério quantitativo, a análise funcional e qualitativa seria inafastável da proteção do bem de família. Ou seja, mesmo diante de bens de família de alto valor, a aplicação da penhorabilidade deverá subordinar-se a uma interpretação sistemática e axiológica, que leve em conta os fundamentos e a função do bem de família, ainda que seja aprovada a proposta legislativa.
Hipóteses fáticas podem, em concreto, afastar a penhorabilidade do bem de família luxuoso em qualquer percentual, caso a existência digna da pessoa seja colocada em risco com potencial penhora. Por exemplo, o devedor pode residir em imóvel de luxo localizado próximo a centro de tratamento especializado em doença rara que o acometa, situação em que o interesse existencial de permanência da moradia no mesmo endereço afastaria a penhorabilidade do bem15. Pode ocorrer, ainda, de a parcela correspondente à metade do valor de mercado do bem não ser apta a proporcionar ao devedor e sua família a realocação da residência na cidade de morada, por exemplo, no caso em que o devedor compõe uma família numerosa, com pessoas dependentes de infraestrutura especial ou com muitos animais de estimação, com residência em cidade pequena e com pouca oferta imobiliária, sendo demonstrada a inexistência de imóvel correspondente às necessidades familiares.
Dessa forma, é possível concluir que a proposta legislativa, em vez de resolver os dilemas, inaugura novos debates sobre o tema. Destaca-se que a inovação pode ser certeira em afastar a proteção disfuncional do luxo do devedor, mas é necessário se atentar para o risco de se produzir a penhora ampla e geral do bem de família de alto padrão, ferindo a tutela de uma existência digna para o devedor e sua família.
Portanto, o caminho encontra-se na interpretação sistemática e teleológica do instituto, a fim de se observar não apenas e literalmente o critério quantitativo que a reforma legislativa propõe, mas de realizar uma análise funcional e qualitativa do bem de família. Caso aprovada a proposta com a redação atual, o intérprete terá incrementado o ônus argumentativo para reconhecer eventual impenhorabilidade de bem luxuoso, mas deve, ainda assim, pautar-se pela finalidade existencial e pela função do bem de família no sistema jurídico, sob pena de ruptura da axiologia que norteia a matéria.
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1 TARTUCE, Flávio. A reforma do Código Civil e algumas propostas quanto ao inadimplemento das obrigações. Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/reforma-do-codigo-civil/417285/a-reforma-do-cc-e-propostas-sobre-inadimplemento-das-obrigacoes. Acesso em 24 mar. 2025.
2 BRASIL. Projeto de Lei n. 04, de 31 de janeiro de 2025. Dispõe sobre a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e da legislação correlata. Brasília: Senado Federal, 2025. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/hpsenado. Acesso em: 04 fev. 2025.
3 "Art. 391-A. Salvo para cumprimento de obrigação alimentar, o patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar é intangível por ato de excussão do credor. (...) § 3º A casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade, considerado o valor do preço de mercado do bem, a favor do devedor executado e de sua família."
4 Ilustrativamente, v. MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fabio Floriano Melo; CRAVEIRO, Mariana Conti; XAVIER, Rafael Branco. O que é um Código Civil? Canal Arbitragem. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/boletim-idip-iec/o-que-e-um-codigo-civil/. Acesso em 04 abr. 2025. Para a análise minuciosa de matérias alteradas no projeto de reforma do Código Civil, vide Revista do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo: Editora IASP, a. 27, v. 38.1, 2024.
5 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; MARÇAL, Thaís Boia Marçal. Penhorabilidade do bem de família "luxuoso" na perspectiva civil-constitucional. Revista Quaestio Iuris, v. 06, n. 02, 2013, p. 241-243.
6 MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista Estado, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, vol. I, 1991, p. 126-163; TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro: UERJ, n. 5, 1997, p. 23-40.
7 PEÇANHA, Danielle Tavares. A disciplina do bem de família em perspectiva funcional: (im)penhorabilidade do bem de família luxuoso. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, jan./mar. 2021, p. 98-99.
8 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 01-03.
9 Diz o enunciado da súmula n. 364 do STJ: O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.
10 "Segundo a orientação jurisprudencial desta Corte, para efeito da proteção do art. 1º da Lei n. 8.009/1990, basta que o imóvel sirva de residência para a família do devedor, sendo irrelevante o valor do bem. Isso porque as exceções à regra de impenhorabilidade dispostas no art. 3º do referido texto legal não trazem nenhuma indicação nesse sentido. Logo, é irrelevante, a esse propósito, que o imóvel seja considerado luxuoso ou de alto padrão." (STJ, AgInt no REsp n. 1.963.732/SP, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 23/9/2024, DJe de 25/9/2024.)
11 "De acordo com a jurisprudência desta Corte, se admite, excepcionalmente, 'a penhora de parte do imóvel quando for possível o seu desmembramento em unidades autônomas, sem descaracterizá-lo, levando em consideração, com razoabilidade, as circunstâncias e peculiaridades do caso' (AgRg no AREsp 531.614/SP, Relator Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 7/6/2016, DJe de 27/6/2016)." (STJ, AgInt no AREsp n. 1.689.408/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 17/10/2022, DJe de 21/10/2022.)
12 "Somente em cada caso concreto será possível inferir qual o é padrão médio de cada pessoa, de modo a reconhecer se os seus bens são, ou não, de padrão médio, ,56 tendo como norte o princípio da proporcionalidade sendo certo que a determinação de qualquer critério pré-determinado de valoração revela-se incompatível com a realidade brasileira, que possui como traço marcante a diversidade social de cada pessoa. Um exemplo que pode ser citado é o fato de que um imóvel de R$300.000,00 (trezentos mil reais) pode ser considerado como luxuoso em uma área de seca nordestina, mas, nos padrões do Sudeste do país atende aos padrões de vida média." (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; MARÇAL, Thaís Boia Marçal. Penhorabilidade do bem de família "luxuoso" na perspectiva civil-constitucional. Revista Quaestio Iuris, v. 06, n. 02, 2013, p. 252-253.)
13 Em comentário acerca da topografia da matéria na legislação especial, afirmava-se que "o verdadeiro sítio do bem de família, seu lugar próprio e abrigo lógico e natural é na Parte Especial, mais exatamente no Livro do Direito de Família, onde o colocou Orlando Gomes, em seu Projeto de Código Civil, de 1965, e onde o situa Couto e Silva, no atual Projeto de Código Civil" (VELOSO, Zeno. Bem de família. Revista de Direito Civil, a. 15, n. 55, jan./mar. 1991, p. 113). Ainda que lógica idêntica não subsista hoje, em que o instituto se volta à tutela da dignidade da pessoa humana, vislumbra-se a sua maior adesão às matérias de cunho existencial do que patrimonial.
14 "Tal mínimo é valor e não metrificação, conceito aberto cuja presença não viola a idéia de sistema jurídico axiológico. O mínimo não é menos nem é ínfimo. É um conceito apto à construção do razoável e do justo ao caso concreto, aberto, plural e poroso ao mundo contemporâneo". (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, 2ª ed., p. 301.)
15 PEÇANHA, Danielle Tavares. A disciplina do bem de família em perspectiva funcional: (im)penhorabilidade do bem de família luxuoso. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, jan./mar. 2021, p. 126.


