Representação comercial: A cláusula que pode virar pesadelo
Antecipar a indenização na representação comercial parece vantajoso, mas esconde riscos que podem custar caro. Descubra por que a prática ameaça a segurança dos contratos.
sexta-feira, 26 de setembro de 2025
Atualizado às 13:38
1. Introdução
A indenização devida ao representante comercial pela rescisão sem justa causa do contrato, prevista no art. 27, j, da lei 4.886/1965, tem sido objeto de intensos debates doutrinários e jurisprudenciais. Não são raras as tentativas de estipular, por cláusula contratual, a possibilidade de pagamento antecipado ou anual da parcela correspondente a 1/12 do total das comissões recebidas.
À primeira vista, a antecipação poderia representar solução prática: evita o acúmulo de valores ao final da relação contratual e confere previsibilidade financeira tanto ao representado quanto ao representante. Entretanto, a questão central que se coloca é: essa prática está em consonância com a natureza da indenização prevista na lei? Ou, ao contrário, cria insegurança jurídica e expõe as partes ao risco de nulidade contratual e pagamento em duplicidade?
A partir dos estudos elaborados para respondermos a essa questão, submetida a nossa apreciação técnica, elaboramos a resposta que deu origem a este artigo.
2. A natureza jurídica da indenização de 1/12
A indenização prevista no art. 27, j, da lei 4.886/1965 não é mero acréscimo remuneratório. Trata-se de verba de natureza compensatória, destinada a recompor o patrimônio do representante quando o contrato é rescindido unilateralmente pelo representado, sem motivo justo. Vejamos:
Art. 27. Do contrato de representação comercial, além dos elementos comuns e outros a juízo dos interessados, constarão obrigatoriamente:
(...)
j) indenização devida ao representante pela rescisão do contrato fora dos casos previstos no art. 35, cujo montante não poderá ser inferior a 1/12 (um doze avos) do total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação.
Portanto, o evento que dá origem ao direito não é a execução cotidiana do contrato, mas a sua extinção por iniciativa imotivada do representado. É somente nesse momento que a obrigação de indenizar se aperfeiçoa. Antecipar o pagamento, seja em parcelas anuais ou mensais, significa transformar uma verba indenizatória em elemento de remuneração, desvirtuando sua finalidade.
3. A possibilidade de estipulação contratual que autoriza o pagamento
Não há, de fato, na lei 4.886/1965, proibição expressa de que as partes prevejam a antecipação da indenização. Esse silêncio, contudo, não pode ser interpretado como carta branca para o contratante. O Direito dos Contratos não se resume à autonomia privada. Ele é balizado por princípios e limites impostos pela ordem pública.
Quando a cláusula contratual altera a essência de uma verba legalmente estruturada, como é o caso da indenização de 1/12, há forte risco de nulidade. Ainda que formalmente lícita, a cláusula pode ser considerada inválida pelo Judiciário por desvirtuar a finalidade legal.
4. O entendimento jurisprudencial
A jurisprudência recente tem se mostrado firme na rejeição ao pagamento antecipado da indenização. O STJ, no julgamento do REsp 1.831.947/PR, deixou claro que "o pagamento antecipado, em conjunto com a remuneração mensal devida ao representante comercial, desvirtua a finalidade da indenização prevista no art. 27, j, da lei 4.886/1965":
RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE REPRESENTAÇÃO COMERCIAL. RESCISÃO UNILATERAL IMOTIVADA PELA REPRESENTADA. INDENIZAÇÃO. ART. 27, "J", DA LEI 4.886/65. CLÁUSULA CONTRATUAL QUE PREVÊ PAGAMENTO ANTECIPADO ACRESCIDO ÀS COMISSÕES MENSAIS. ILEGALIDADE. FORMA DE PAGAMENTO QUE NÃO SE COADUNA COM O CONCEITO DE INDENIZAÇÃO.1. Ação ajuizada em 4/12/2013. Recurso especial interposto em 5/9/2018. Conclusão ao Gabinete em 20/8/2019. 2. O propósito recursal é definir se o pagamento antecipado da indenização, devida ao representante comercial por ocasião da rescisão injustificada do contrato pelo representado, viola o art. 27, "j", da lei 4.886/1965. 3. A lei 4.886/1965, em seu art. 27, "j", estabelece que o representante deve ser indenizado caso o contrato de representação comercial seja rescindido sem justo motivo por iniciativa do representado. 4. O pagamento antecipado, em conjunto com a remuneração mensal devida ao representante comercial, desvirtua a finalidade da indenização prevista no art. 27, "j", da lei 4.886/1965, pois o evento, futuro e incerto, que autoriza sua incidência é a rescisão unilateral imotivada do contrato. 5. Essa forma de pagamento subverte o próprio conceito de indenização. Como é sabido, o dever de reparar somente se configura a partir da prática de um ato danoso. No particular, todavia, o evento que desencadeou tal dever não havia ocorrido - nem era possível saber se, de fato, viria a ocorrer - ao tempo em que efetuadas as antecipações mensais. 6. O princípio da boa-fé impede que as partes de uma relação contratual exercitem direitos, ainda que previstos na própria avença de maneira formalmente lícita, quando, em sua essência, esse exercício representar deslealdade ou gerar consequências danosas para a contraparte. 7. A cláusula que extrapola o que o ordenamento jurídico estabelece como padrão mínimo para garantia do equilíbrio entre as partes da relação contratual deve ser declarada inválida. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ - REsp 1.831.947/PR - Relatora: ministra Nancy Andrighi - Julgado em 13/12/2019)
O TJ/MG, em acórdão de 2024, seguiu a mesma linha, destacando que a indenização pressupõe evento futuro e incerto, qual seja, a rescisão sem justa causa. O pagamento antecipado comprometeria o equilíbrio contratual, podendo gerar duplicidade e comprometer a própria função protetiva da lei:
EMENTA: APELAÇÕES CÍVEIS - AÇÃO ORDINÁRIA REPARATÓRIA - CONTRATO DE REPRESENTAÇÃO COMERCIAL - CLÁUSULA DEL CREDERE - VEDAÇÃO LEGAL - ART. 43, LEI 4.886/1965 - COMPROVAÇÃO - RESSARCIMENTO - NECESSIDADE - RESCISÃO UNILATERAL PELA REPRESENTADA - AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA - INDENIZAÇÃO DEVIDA - ANTECIPAÇÃO DO PAGAMENTO - IMPOSSIBILIDADE - PRECEDENTE DO STJ - OBSERVÂNCIA NECESSÁRIA - ALEGAÇÃO DE REDUÇÃO DA ÁREA DE ATUAÇÃO - ÔNUS DA PROVA CONFORME ART. 373, I, CPC - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO - SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA.
- Consiste a cláusula del credere no ajuste de desconto, sobre as comissões das vendas intermediadas pelos representantes, mas inadimplidas pelos compradores dos produtos vendidos pelo representado. A lei 4.886/1965, que regula a representação comercial, possui dispositivo que veda, expressamente, a inclusão da cláusula del credere nos contratos de representação, conforme se extrai do art. 43 da referida lei.
- Tratando-se de contrato celebrado por tempo indeterminado e havendo a extinção sem justo motivo por iniciativa do representado, a lei assegura ao representante indenização específica, nos termos do art. 27, "j", da lei 4.886/1965.
- Em se tratando de adiantamento da indenização de 1/12, inafastável a observância do entendimento do e. STJ, no sentido de que "O pagamento antecipado, em conjunto com a remuneração mensal devida ao representante comercial, desvirtua a finalidade da indenização prevista no art. 27, "j", da lei 4.886/1965, pois o evento, futuro e incerto, que autoriza sua incidência é a rescisão unilateral imotivada do contrato". Precedente REsp 1.831.947/PR. Sentença parcialmente reformada neste tocante.
- É do representante comercial o ônus da prova quanto à alegação de redução da área de atuação e do prejuízo dela decorrente, de modo que, a ausência de provas da respectiva ocorrência implica na manutenção da sentença que indeferiu os pedidos de ressarcimento.
- Primeiro recurso desprovido e segundo recurso parcialmente provido.(TJ/MG - Apelação cível 1.0000.24.017283-3/001, Relator(a): des.(a) José Eustáquio Lucas Pereira, 21ª Câmara Cível Especializada, julgamento em 22/5/2024, publicação da súmula em 23/5/2024)
Essa posição não é isolada. Diversas decisões vêm reafirmando que a indenização não pode ser diluída ou "parcelada" ao longo da execução do contrato, pois isso equivale a modificar seu núcleo jurídico.
5. Riscos práticos da antecipação
Ainda que as partes busquem soluções criativas para flexibilizar o regime da indenização, os riscos superam de longe os eventuais benefícios:
- Insegurança jurídica: a cláusula pode ser declarada nula a qualquer momento, por desvirtuamento da finalidade da indenização, com base em precedentes firmes do STJ.
- Pagamento em duplicidade: o representado corre o risco de, além dos adiantamentos, ser condenado novamente ao pagamento integral da indenização.
- Impossibilidade de ressarcimento: se a rescisão ocorrer por justa causa, não há base legal para exigir devolução dos valores já pagos, resultando em enriquecimento sem causa do representante.
- Caráter protetivo da lei: a lei 4.886/1965 tem viés marcadamente protetivo em relação ao representante. Qualquer cláusula que imponha ônus excessivo ou reduza direitos tende a ser revista judicialmente.
- Aumento do valor final da indenização: caso o Poder Judiciário entenda que os pagamentos antecipados têm natureza remuneratória, esses valores podem integrar a base de cálculo da indenização, aumentando-a significativamente.
Em outras palavras, o adiantamento, longe de conferir previsibilidade, abre espaço para disputas judiciais complexas e onerosas.
6. Crítica à prática do adiantamento
Do ponto de vista crítico, a tentativa de transformar a indenização em parcela remuneratória esconde uma estratégia empresarial: reduzir riscos e diluir obrigações futuras. No entanto, a operação falha em um ponto essencial: a indenização não é um benefício do representante, mas uma sanção imposta ao representado que rescinde o contrato sem motivo justo, e tem duas finalidades básicas: a) dificultar o rompimento da relação contratual, tornando-a mais onerosa e b) assegurar ao representante uma compensação ao final do vínculo, que lhe permita manter-se até retomar suas atividades.
Transformar a sanção em remuneração periódica não apenas viola a lei, mas desnatura a lógica da responsabilidade contratual. O resultado é um contrato mais vulnerável, com maior potencial de litígio e insegurança para ambos os lados.
7. Conclusão
A antecipação da indenização de 1/12, prevista no art. 27, j, da lei 4.886/1965, não encontra respaldo sólido nem na lei, nem na jurisprudência, nem nos princípios contratuais.
Ainda que atraente sob a ótica da gestão empresarial, a prática se mostra arriscada e incompatível com a finalidade compensatória da verba. Os tribunais têm declarado a nulidade dessas cláusulas, reforçando que a indenização só é devida no momento da rescisão imotivada por ato do representado.
A recomendação jurídica é clara: não adotar o pagamento antecipado. O respeito à natureza da indenização assegura não apenas a conformidade legal, mas também a previsibilidade e a segurança das relações contratuais.
No atual cenário, a busca por flexibilidade pode esbarrar nos próprios limites da autonomia privada. A prudência recomenda, assim, que se preserve a essência da lei. A tentativa de "inovar" pela via contratual, nesse caso, pode se converter em um verdadeiro risco oculto - mais onerosa do que a obrigação que se tentou evitar.



