MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica por débitos trabalhistas de sociedades em recuperação judicial: Uma análise da jurisprudência dos Tribunais Superiores

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica por débitos trabalhistas de sociedades em recuperação judicial: Uma análise da jurisprudência dos Tribunais Superiores

STF reforça que só o juízo universal pode instaurar IDPJ em recuperações, afastando decisões trabalhistas e garantindo igualdade entre credores.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Atualizado às 14:14

No final de 2024 a SDI-1 - Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do TST acolheu o IRR - Incidente de Recurso de Revista Repetitivos no que se refere a possibilidade de prosseguimento da execução perante sócios de sociedades que se encontram em Recuperação Judicial, suspendendo todos os casos análogos em sede de Recursos de Revista e Embargos no TST.

Para entender a discussão sob o tema, inicialmente é necessário compreender que existem duas correntes jurídicas que versam sobre a desconsideração da personalidade jurídica. A teoria maior, prevista no art. 50 do CC, e a teoria menor, disposta no parágrafo 5º do art. 28 do CDC.

A teoria maior (art. 50 do CC) prevê que somente ocorrerá a desconsideração da personalidade jurídica com a responsabilização do(s) sócio(s) e/ou administrador(es) da pessoa jurídica quando comprovada a ocorrência de abuso da personalidade jurídica caracterizada pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial:

"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

- cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante;

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

Nos casos supracitados, é necessário que o autor do pedido de instauração de IDPJ - Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica comprove que houve negligência ou má-fé na condução das atividades empresariais com o intuito de obter vantagem ou dificultar o acesso de informações e/ou valores por meio de esvaziamento do patrimônio da pessoa jurídica devedora.

Por outro lado, a teoria menor, prevista no art. 28, §5º do CDC, se baseia na aplicação da "Teoria do homem médio" sendo que, em uma relação de consumo, o consumidor (ou reclamante, na seara trabalhista), se encontra em maior vulnerabilidade e hipossuficiência, motivo pelo qual as normas vigentes visam "equilibrar" o ônus probatório e a produção de provas entre as partes.

A segunda teoria prevê que não há a necessidade de comprovação, pelo autor, de eventual negligência ou má-fé dos gestores bastando, neste caso, apenas e tão somente o inadimplemento da pessoa jurídica executada.

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1º (Vetado).

§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4º As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Tal determinação contida na teoria menor traz insegurança jurídica e incertezas em relação ao cumprimento do devido processo legal, bem como conflita diretamente com o art. 6º, inciso III da lei 14.112/20, que alterou a lei de recuperação e falências (lei 11.101/05) para determinar que as execuções perante sociedade empresárias em processo de recuperação judicial fossem realizadas apenas pelo juízo universal, isto é, o responsável pela condução do processo recuperacional.

Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:

III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.

Necessário pontuar que a adoção da teoria menor pela Justiça do Trabalho pode comprometer sociedades empresárias em recuperação judicial no momento mais sensível da sua reestruturação. Decisões nesse sentido podem, inclusive, interferir na aprovação do plano de recuperação judicial ou comprometer o andamento processual por meio de execuções fora do juízo competente.

Cumpre salientar o art. 82-A, parágrafo único da lei 11.101/05, alterada pela lei 14.112, de 2020, no qual há manifestação expressa sobre a competência da instauração de IDPJ em situações de sociedades em processo de falência, sendo tal entendimento utilizado analogamente para sociedade em recuperação judicial, causando mais divergências e questionamentos em relação a competência da Justiça do Trabalho:

Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.

Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (CC) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (CPC), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (CPC).

Assim, diante da importância do referido assunto, bem como da necessidade de uniformização do TST e dos TRTs, foram instaurados os Incidentes de Julgamento de Recurso de Revista e de embargos repetitivos 0024462-27.2023.5.24.0000 e 0000761-72.2022.5.06.0000, sendo estes os processos representantes da eventual uniformização pleiteada no "Tema 26" perante a SDI-1 - Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho.

Contudo, em que pese a pendência de julgamento do Tema 26 no TST, o STF, por meio da relatoria do ministro Gilmar Mendes e em decisão proferida em julgamento da reclamação constitucional 83.535/SP publicada em 2/9/2025, reconheceu a ilegalidade e impossibilidade de prosseguimento da execução em qualquer momento, na Justiça Laboral, perante sócios de sociedade em recuperação judicial.

Mencionado entendimento fixou a competência exclusiva ao juízo universal da recuperação/ falência para apreciar requerimento de Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, sendo vedada às outras esferas do Poder Judiciário, que não seja o Juízo Universal, a afastarem a incidência da norma sem observância da cláusula de reserva de plenário (súmula vinculante 10 do STF).

Tal posicionamento decorre dos princípios da universalidade do juízo falimentar e da par conditio creditorum (igualdade de tratamento entre os credores), os quais impedem que determinados credores - no caso, os trabalhistas - obtenham vantagem indevida mediante constrição direta sobre o patrimônio dos sócios, em detrimento da ordem legal de pagamento prevista no art. 83, inciso I da lei 11.101/05:

"Ressalte-se que a referida exigência visa a resguardar o princípio da igualdade também entre credores da mesma classe, considerando a possibilidade de habilitação de tais créditos no juízo universal. A continuidade de execuções individuais no juízo laboral, com desconsideração da personalidade jurídica e constrição de bens dos sócios, gestores ou administradores, pode resultar em tratamento desigual entre créditos de mesma natureza, em prejuízo da paridade que deve nortear o processo concursal".

Desta forma, para o ministro, adotar critérios distintos, como aplicar a "teoria menor" da desconsideração no âmbito trabalhista e, a "teoria maior", na Justiça Comum, geraria desigualdade entre credores:

"Admitir que outros juízos instaurem incidente de desconsideração de personalidade jurídica poderia gerar a diferenciação de tratamento entre credores, com a satisfação do crédito de alguns em momento e por critérios diferenciados em relação aos demais, o que não encontra respaldo no ordenamento constitucional vigente."

Com a decisão, Gilmar Mendes cassou acórdão do TRT da 2ª região e determinou que o processo fosse remetido à 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, Juízo competente para analisar o pedido de desconsideração da personalidade jurídica.

Pontua-se, outrossim, que o STF, ao julgar o Tema 90 da repercussão geral (RE 583.955/PR, rel. min. Ricardo Lewandowski), fixou a tese de que "compete ao juízo comum falimentar processar e julgar a execução dos créditos trabalhistas no caso de empresa em fase de recuperação judicial". Assim, atribui-se à Justiça do Trabalho apenas a apuração e liquidação do crédito, enquanto a execução deve prosseguir exclusivamente perante o juízo recuperacional.

Nesse exato sentido, a reclamação constitucional 83.614/SP, julgada em 26/8/2025 pelo ministro Alexandre de Moraes, reafirmou que é inviável instaurar IDPJ na Justiça do Trabalho para responsabilizar sócios de sociedade em recuperação judicial.

Na oportunidade, a Suprema Corte ressaltou que o crédito trabalhista em questão já havia sido devidamente habilitado no juízo da recuperação judicial, estando sujeito ao deságio aprovado em Assembleia de Credores.

Ou seja, para o STF não haveria o impedimento absoluto de instauração de Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica para o recebimento do crédito trabalhistas de sociedade em recuperação judicial, mas, sim, que o procedimento fosse requerido e instaurado no órgão exclusivamente competente para tanto!

"Por fim, registre-se que não se trata de reconhecer a impossibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da Justiça trabalhista, mas de assegurar tratamento paritário a todos os credores de uma mesma categoria na percepção daquilo que lhes é devido, no âmbito do processo falimentar".

Como conclusão, frisa-se que, embora não tenha ocorrido qualquer deliberação sob o tema até o presente momento pelo TST, trata-se de assunto controverso, sendo considerado um dos maiores pontos de divergência entre as Varas do Trabalho e a Varas de Falências e Recuperações Judiciais, e que certamente continuará a gerar debates, inclusive após prolação do entendimento definitivo. Espera-se, com a uniformização do tema, uma maior segurança jurídica para as sociedades empresárias em situação recuperacional, visando uma efetiva reestruturação financeira sem riscos não provisionados.

Renato Rossetti Vallim de Castro

Renato Rossetti Vallim de Castro

Advogado, Mediador, Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca