Multipropriedade: Você pode alugar livremente ou só pelo pool?
Entenda os limites legais das convenções que obrigam proprietários a usar apenas o sistema centralizado de locações e como contestar restrições abusivas.
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Atualizado às 11:13
Introdução
Marina investiu R$ 120.000 em duas semanas anuais de multipropriedade em um resort cinco estrelas em Olímpia. Quando decidiu alugar uma de suas semanas pelo Airbnb por R$ 3.500, descobriu uma cláusula na convenção que a obriga a usar exclusivamente o pool de locações do empreendimento, onde receberá cerca de R$ 1.800 pela mesma semana. A diferença de R$ 1.700 representa uma perda de quase 49% da rentabilidade em relação ao valor de mercado. Em outras palavras, o pool remunera pouco mais da metade do que Marina poderia obter em locação direta, reduzindo significativamente o retorno sobre seu investimento, em caso de não uso da semana. Além disso, é importante destacar como ponto sensível do mercado o fato de que a comercialização de frações de multipropriedade frequentemente é conduzida sob o argumento de rentabilidade e potencial de retorno pela locação, quando, na realidade, a natureza jurídica do instituto é distinta. A própria ADIT Brasil, em posicionamento público, tem advertido que a multipropriedade é um produto essencialmente de lazer e uso, não devendo ser vendida como investimento imobiliário. Para a entidade, prometer ganhos financeiros ou rentabilidade desvirtua a função do modelo e pode, inclusive, caracterizar infração regulatória.1
Essa divergência entre a promessa comercial e a essência jurídica do instituto aprofunda o debate sobre a legitimidade de convenções que tentam restringir a locação individual, revelando a tensão entre a expectativa de retorno econômico e a finalidade originária da multipropriedade. E o caso de Marina não é isolado, já que centenas de milhares de proprietários de multipropriedade no Brasil enfrentam dilema similar: podem ser obrigados a aceitar a rentabilidade menor do pool oficial ou têm o direito de alugar livremente suas frações de tempo? A resposta envolve uma complexa análise entre direitos de propriedade, regulamentação condominial e princípios constitucionais que pode determinar o futuro de um mercado que movimenta bilhões no país.
O que é multipropriedade e como funciona o pool de locações
A multipropriedade, regulamentada pela lei 13.777/182, permite que diferentes pessoas sejam proprietárias do mesmo imóvel em períodos distintos. É como se você comprasse "uma semana por ano para sempre" em um apartamento de resort, por exemplo. Durante sua semana, você pode usar, alugar ou até vender sua fração, como qualquer proprietário normal.
Como explica o jurista Melhim Chalhub, "a multipropriedade não desnatura as faculdades dominiais, apenas as limita temporalmente"3.
Já o pool de locações é um sistema centralizado onde o empreendimento administra todas as locações, padronizando preços, serviços e rateando as despesas e distribuindo as receitas entre os proprietários. Normalmente organizado em forma de SCP - Sociedade por conta de participação onde o sócio ostensivo é a administradora e os sócios ocultos são os multiproprietários.
Três cenários reais: Quando o pool se torna um problema
Cenário 1: A diferença de rentabilidade
Carlos adquiriu uma semana em Gramado por R$ 80.000. Ao tentar rentabilizar sua fração, descobriu que o pool oficial do resort lhe paga apenas R$ 1.200 por semana, enquanto no mercado livre conseguiria R$ 2.000. A diferença é de R$ 800 por locação, ou seja, o pool oferece cerca de 40% menos rentabilidade. Em dez anos, isso representa pelo menos R$ 8.000 de receita perdida, sem considerar reajustes ou valorização. A questão que se impõe é: pode a convenção obrigá-lo a aceitar menos da metade do valor que o mercado pagaria?
Cenário 2: O controle sobre quem ocupa o imóvel
Ana gostaria de alugar sua semana apenas para famílias com crianças, mas o pool não faz distinção de perfis de hóspedes, aceitando reservas de qualquer natureza. A consequência é a perda de controle sobre quem utiliza sua propriedade, com risco de desgaste acelerado do imóvel ou de situações de convivência indesejadas. O problema aqui não é apenas econômico, mas de autonomia na escolha do locatário, inerente ao direito de propriedade.
Cenário 3: A taxa abusiva do pool
Roberto descobriu que o pool do seu empreendimento cobra uma comissão de cerca de 35% sobre o valor da locação, percentual muito acima das práticas mais comuns no mercado de aluguel por temporada, em que administradoras costumam cobrar entre 15% e 30%. A título de comparação, plataformas digitais como o Airbnb cobram no Brasil apenas 3% do anfitrião4 (além de uma taxa separada do hóspede), enquanto a Booking aplica, em média, 15% a 20% de comissão5. Em uma semana alugada por R$ 2.000, o pool retém R$ 700, enquanto no Airbnb a retenção seria de apenas R$ 60, e na Booking em torno de R$ 300. Isso significa que, além de receber menos do que o mercado pagaria em termos de preço, o multiproprietário que é obrigado a usar exclusivamente o pool também arca com taxas muito superiores às praticadas por administradores e plataformas concorrentes.
Além disso, observa-se que, em regra, não há prestação de contas clara nem transparência adequada na gestão financeira dos pools. Os multiproprietários aderentes muitas vezes não conseguem identificar com precisão quais despesas estão sendo debitadas da receita bruta pela administradora, tampouco avaliar se tais custos são efetivamente necessários, proporcionais ou convenientes. Nessa ausência de informações detalhadas, a própria aferição do resultado líquido devido ao multiproprietário fica comprometida. Em alguns casos, registram-se ainda deduções expressivas, como taxas de marketing e de administração, lançadas diretamente sobre a receita bruta sem justificativas consistentes. Essas taxas fazem grande diferença no montante líquido recebido, sobretudo quando comparadas às condições oferecidas por plataformas digitais como Airbnb ou Booking, que praticam percentuais significativamente inferiores.
Cenário 4: E a tributação?
A esse quadro soma-se a tributação decorrente da utilização de SCP - Sociedades em Conta de Participação para gerir o pool. O imposto é retido diretamente sobre a receita bruta, sem considerar a situação individual de cada multiproprietário. Isso gera distorções, pois alguns titulares que, em condições normais, estariam isentos do Imposto de Renda sobre essas receitas acabam arcando com uma carga fiscal que não lhes seria aplicável. O resultado é um prejuízo adicional para uma gama de multiproprietários, que vêem sua rentabilidade corroída não apenas por taxas administrativas elevadas, mas também por uma tributação padronizada que desconsidera sua condição pessoal.
O que diz a lei: Direito Garantido vs. Poder Regulamentar
A lei 13.777/18 é cristalina ao garantir o direito de locação. O art. 1.358-I, inciso II6, do CC estabelece expressamente que são direitos do multiproprietário "ceder a fração de tempo em locação ou comodato"7. Não há margem para interpretação: a lei federal garante o direito de alugar.
Por outro lado, o parágrafo único do Art. 1358-S cita a possibilidade de haver uma administração centralizada e obrigatória das locações, como um verdadeiro jabuti legislativo8, inserido no meio de um parágrafo de um artigo que trata das formas de combater a inadimplência nos condomínios de multipropriedade. Analisando o texto da 13777/18, não há em nenhum outro art. um regramento específico sobre a locação centralizada em pool exclusivo, e uma oração solta no meio do texto "(...),sejam obrigados a locar suas frações de tempo exclusivamente por meio de uma administração única,(...) cria uma possibilidade de cerceamento de direitos legais e constitucionais.
A partir daí, a própria lei remete à convenção de condomínio a tarefa de regulamentar o exercício das locações. É nesse espaço que surgem cláusulas que, na prática, acabam por restringir o direito assegurado no art. 1.358-I do CC. E aqui reside o ponto central da discussão: a convenção pode regular, disciplinar a forma de exercício do direito de locar, mas jamais poderia suprimi-lo por inteiro. Qualquer tentativa de eliminar completamente a locação individual revela-se, ao nosso ver, materialmente inconstitucional, pois afronta o núcleo essencial do direito de propriedade e esvazia a garantia conferida pela própria lei federal.
Regular significa estabelecer regras (cadastro de hóspedes, padrões de limpeza, taxas administrativas). Suprimir significa eliminar totalmente o direito. A primeira é legal; a segunda, inconstitucional e contrária a própria lei federal.
A multipropriedade, por sua própria natureza, exige uma convivência organizada e regrada, sob pena de inviabilizar a alternância de posses entre diferentes titulares. Como observa a doutrina, a convivência entre os multiproprietários é complexa e demanda disciplina administrativa adequada para garantir o uso ordenado e a efetividade do instituto9. Regras são, portanto, necessárias, mas elas devem ser proporcionais e jamais podem anular um direito expressamente garantido pela lei federal, como o de locar a fração de tempo.
Análise constitucional: Por que entendemos os pools obrigatórios como inconstitucionais
Antes mesmo de chegar à análise constitucional, é relevante notar que convenções que vedam totalmente a locação individual já entram em tensão com a própria lei 13.777/18. O art. 1.358-I, II, do CC assegura expressamente ao multiproprietário o direito de "ceder a fração de tempo em locação ou comodato", reconhecendo a locação como faculdade inerente ao domínio.
Veremos que a mesma lei que garante o direito de locar, admite que a convenção discipline a forma de seu exercício. No entanto, quando a convenção ultrapassa esse limite e, sob o rótulo de regulamentação, elimina por completo a possibilidade de locação individual, entendemos que acaba por afrontar o núcleo essencial do direito assegurado no art. 1.358-I, II.
Passando pela análise dos direitos e obrigações dos multiproprietários previstos dos arts. 1358-J e 1358-I10, neles e em nenhuma outra parte da lei 13.777/18 localizamos algo referente às regras de locações centralizada em pool. É nesse espaço normativo que surge, do nada, inserto em um parágrafo, a redação sobre a obrigatoriedade de um pool centralizado e exclusivo, levando para as convenções concebidas pelas incorporadoras e inseridas na dinâmica contratual do mercado todo o poder de regular estas locações.
É no parágrafo único do art. 1.358-S11 da lei 13.777/18 onde encontramos a hipótese de empreendimentos em que os multiproprietários "sejam obrigados" a locar suas frações exclusivamente por meio de administração única, repartindo as receitas. Essa previsão, embora formalmente inserida no CC, revela-se materialmente inconstitucional, ao nosso entender. Ao esvaziar a faculdade de locar, integrante do núcleo essencial da propriedade, cria um monopólio privado que restringe a autonomia individual, compromete o direito de propriedade, viola a livre iniciativa e distorce a função social do imóvel. O verdadeiro desafio hermenêutico, portanto, é interpretar a lei 13.777/18 conforme à Constituição, preservando a possibilidade de regulamentação razoável, mas afastando a legitimidade de qualquer proibição absoluta da locação individual.
Violação ao Direito de Propriedade (Art. 5º, XXII, CF)
O art. 1.228 do CC12 dispõe que "o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha". A lei 13.777/18, no art. 1.358-I, II, assegura ao multiproprietário a faculdade de ceder sua fração em locação ou comodato, reconhecendo a locação como expressão legítima do gozo econômico do bem. Todavia, o art. 1.358-S, parágrafo único, admite a imposição da obrigatoriedade de uma administração única para todas as locações. Entendemos que essa previsão, embora formalmente válida, é materialmente inconstitucional, pois esvazia o núcleo essencial do direito de propriedade consagrado no art. 5º, XXII, da Constituição, reduzindo a multipropriedade a uma mera participação societária e retirando do titular a autonomia sobre sua própria fração.
Ofensa à livre iniciativa e à livre concorrência (Art. 170, caput e IV, CF)
A Constituição estabelece, no art. 170, caput, que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna". O inciso II traz o princípio da propriedade privada enquanto o inciso IV reforça a livre concorrência como princípio fundamental13. Obrigar todos os multiproprietários a utilizar exclusivamente o pool oficial cria um monopólio privado, que elimina a liberdade de contratar e impede que o proprietário explore seu bem de forma autônoma. A doutrina de Eros Roberto Grau enfatiza justamente que a livre iniciativa envolve dimensões como a liberdade de comércio, de contratar e de concorrência, elementos essenciais para a configuração da ordem econômica constitucional14. A imposição legal do pool compromete todas essas dimensões, instaurando um regime de dependência econômica incompatível com os princípios constitucionais da ordem econômica.
Desrespeito à função social (Art. 5º, XXIII, CF)
A Constituição determina, em seu art. 5º, XXIII, que a propriedade deve atender à sua função social, princípio reforçado pelo art. 170, III. O CC, no art. 1.228, § 1º, estabelece que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais. Na multipropriedade, essa função social manifesta-se no aproveitamento integral do imóvel ao longo do ano, evitando períodos de ociosidade e permitindo a geração de renda quando o titular não utiliza sua fração. José Afonso da Silva explica que a função social integra a própria estrutura do direito de propriedade e não se confunde com meras limitações externas ao exercício do domínio15. Impedir a locação individual, ao impor a exclusividade do pool, reduz artificialmente o aproveitamento econômico e social do imóvel, contrariando o mandamento constitucional de que a propriedade deve servir a finalidades econômicas e coletivas legítimas.
Análise ética: Conflitos de interesse no pool obrigatório
A imposição da exclusividade do pool de locações não suscita apenas discussões de ordem legal ou constitucional, mas também relevantes questões éticas. Na maioria dos empreendimentos, a administração do pool é realizada pela própria incorporadora ou por empresas a ela vinculadas, o que gera um evidente conflito de interesses. A mesma entidade que comercializou as frações passa a deter poder para impor condições de exploração econômica, frequentemente menos vantajosas do que as disponíveis no mercado aberto.
A ausência de transparência agrava esse cenário. Proprietários muitas vezes desconhecem os critérios de precificação, as comissões efetivamente praticadas ou a política de distribuição de receitas. Além disso, a participação dos multiproprietários na gestão do pool é limitada, quando não inexistente, o que reforça a sensação de cativeiro econômico. Em vez de se configurar como serviço de conveniência, o pool transforma-se em mecanismo de controle que retira do titular a autonomia sobre sua própria fração.
Para que o pool fosse percebido como instrumento legítimo de gestão coletiva, seria indispensável observar padrões éticos mínimos: transparência integral nas taxas e critérios utilizados; prestação de contas regular e verificável aos multiproprietários; possibilidade de questionamento e revisão das decisões administrativas; e, sobretudo, comparação periódica com os valores de mercado, garantindo que a remuneração oferecida não se afaste da realidade competitiva.
Sem essas salvaguardas, o pool obrigatório deixa de ser uma ferramenta de eficiência e passa a representar uma restrição abusiva, que viola não apenas direitos legais, mas também princípios éticos de boa-fé, equilíbrio e confiança, indispensáveis à solidez do mercado de multipropriedade.
Pool oficial, pool paralelo e locação avulsa: Distinções necessárias
Quando se discute a locação em multipropriedade, é essencial diferenciar três modalidades distintas: o pool oficial, o pool paralelo e a locação avulsa. Cada uma delas possui características próprias, com implicações jurídicas e práticas relevantes.
O pool oficial é aquele previsto na convenção do condomínio em multipropriedade e administrado pela incorporadora ou por empresa por ela indicada. Tem caráter centralizado e obrigatório em muitos empreendimentos, funcionando como o canal exclusivo de intermediação. Seus defensores alegam que garante padronização, segurança e controle da experiência do usuário. Seus críticos, contudo, apontam para a baixa rentabilidade e para o conflito de interesses na administração.
Já o pool paralelo surge como alternativa organizada por grupos de multiproprietários, normalmente insatisfeitos com as condições impostas pelo pool oficial. Nessa modalidade, os titulares se reúnem para criar um sistema próprio de gestão compartilhada de locações, estabelecendo regras internas, valores de repasse e critérios de admissão de hóspedes. É diferente da locação individual, pois não se trata de cada multiproprietário agindo isoladamente, mas de um esforço coletivo, estruturado à margem da convenção. Embora juridicamente mais vulnerável a questionamentos, o pool paralelo representa reação prática ao monopólio do pool oficial e busca recuperar rentabilidade e autonomia.
Por fim, a locação avulsa ou individual corresponde ao exercício direto, por cada multiproprietário, do seu direito de locar a fração de tempo. Aqui não há intermediação coletiva: o proprietário anuncia, negocia e administra o contrato por conta própria, utilizando plataformas digitais ou contatos pessoais. É a modalidade que mais evidencia o núcleo essencial do direito de propriedade, mas que também exige maior empenho e envolve riscos de inadimplência ou problemas de gestão.
Distinguir essas três formas de exploração econômica é fundamental para a análise jurídica. Enquanto o pool oficial encontra respaldo na convenção, o pool paralelo desafia o monopólio e a locação avulsa resguarda a liberdade individual. O ponto central é reconhecer que, ainda que a convenção possa organizar e até fomentar a existência de um pool oficial, ela não pode anular nem criminalizar a locação avulsa ou a busca por alternativas paralelas. O equilíbrio deve estar em permitir a coexistência, com regras claras que assegurem tanto a padronização quanto a autonomia do multiproprietário.
A possibilidade de alteração da convenção pelos multiproprietários
A convenção de condomínio em multipropriedade é o instrumento que disciplina o uso do imóvel, define poderes e deveres dos multiproprietários e estabelece as regras sobre cessões e locações. Elaborada, em regra, pela incorporadora no momento da constituição do empreendimento, a convenção muitas vezes reflete predominantemente os interesses do empreendedor, incluindo cláusulas que impõem a exclusividade do pool de locações.
Entretanto, como em qualquer condomínio edilício, a convenção não é imutável. O art. 1.351 do CC16 prevê que ela pode ser modificada pela assembleia de condôminos, respeitado o quórum qualificado de dois terços dos votos dos titulares. No contexto da multipropriedade, isso significa que os próprios multiproprietários podem, reunidos em assembleia, deliberar por alterar ou revogar a cláusula que obriga o uso exclusivo do pool, restabelecendo a liberdade de locação individual ou mesmo criando alternativas intermediárias (como pools paralelos formalizados ou sistemas híbridos de gestão).
Essa possibilidade democrática de revisão da convenção é especialmente relevante diante do fato de que muitas vezes a obrigatoriedade do pool não decorre de exigência legal, mas de cláusulas redigidas unilateralmente pelo incorporador. A assembleia, como instância de vontade coletiva dos multiproprietários, tem a legitimidade de reequilibrar essas disposições, aproximando-as da função social do direito de propriedade e da realidade econômica dos adquirentes.
Nesse sentido, a alteração da convenção pode se tornar uma via prática para a superação de cláusulas abusivas ou desproporcionais. Embora não elimine a discussão sobre a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 1.358-S, demonstra que a própria coletividade de multiproprietários dispõe de um instrumento interno para restabelecer a autonomia e o equilíbrio entre padronização e liberdade contratual.
Não é, contudo, do desconhecimento deste autor a dificuldade prática de realizar esse intento. Diferentemente de um condomínio edilício tradicional, em que é possível literalmente bater de porta em porta para colher votos, os multiproprietários estão espalhados pelo Brasil e pelo mundo, chegando a milhares, ou mesmo dezenas de milhares, em um único empreendimento. Essa dispersão geográfica torna quase inviável, por meios tradicionais, a obtenção do quórum qualificado exigido por lei.
Nesse cenário, as associações de multiproprietários despontam como instrumentos fundamentais de organização e representação. Por meio delas, é possível centralizar demandas, articular estratégias coletivas e buscar objetivos mais ambiciosos, como a alteração de convenções que restrinjam indevidamente direitos. As associações, ao funcionarem como porta-voz dos interesses difusos da coletividade, podem pavimentar o caminho para que os multiproprietários efetivamente exerçam seus direitos de forma organizada e eficiente, equilibrando o poder antes concentrado nas mãos das incorporadoras.
Conclusão
O regime da multipropriedade requer organização e padronização, mas não pode consentir a supressão do núcleo essencial do domínio. A lei 13.777/18 garante, no art. 1.358-I, II, a faculdade de locar a fração de tempo; já o art. 1.358-S, parágrafo único, ao admitir a administração única obrigatória, não autoriza, sob pena de inconstitucionalidade material, a extinção da locação individual. Interpretar o sistema de forma conforme à Constituição implica aceitar a regulamentação razoável (cadastros, padrões mínimos, taxas proporcionais, segurança), rejeitando a proibição absoluta que transforma o multiproprietário em mero cotista de um negócio hoteleiro.
Na prática, a exclusividade do pool costuma reduzir rentabilidade, concentrar poder decisório e criar conflitos de interesse, além de impor custos e uma tributação padronizada que nem sempre refletem a situação do titular. O caminho jurídico adequado combina três frentes: (i) controle de constitucionalidade de cláusulas e interpretações que vedem a locação individual; (ii) alteração convencional por assembleia, quando viável, com mobilização por meio de associações de multiproprietários; e (iii) governança e transparência na administração de pools, com prestação de contas e comparação periódica com o mercado.
É igualmente importante distinguir as figuras: locação avulsa (exercício direto e individual do direito), pool oficial (mecanismo coletivo previsto em convenção) e pool paralelo (arranjo associativo alternativo). Em muitos casos, o que se quer evitar é, de fato, o pool paralelo que concorre com o oficial e não a locação individual. Confundir os institutos leva a restrições indevidas ao direito fundamental de locar, punindo quem apenas pretende exercer, durante seu período, as faculdades inerentes à propriedade.
Em síntese: regular, sim; suprimir, não. O mercado brasileiro de multipropriedade só será sustentável, econômica e juridicamente, se conciliar a necessária organização coletiva com a preservação da liberdade de locação individual, garantindo ao multiproprietário autonomia real, rentabilidade compatível e respeito ao desenho constitucional da propriedade privada.
Perguntas Frequentes (FAQ)
1. Posso ser obrigado a usar apenas o pool do empreendimento?
Sim, se estiver previsto na concepção do empreendimento, expresso na convenção de condomínio, a vedação de locação fora do sistema de pool centralizado e organizado pela administradora do condomínio.
2. Qual a diferença típica de rentabilidade entre pool e locação individual?
Varia entre 20% a 50% a mais na locação individual, dependendo da localização e época do ano.
3. Posso vender minha multipropriedade se não concordo com o pool?
Sim, mas o valor pode estar depreciado justamente pela restrição de locação, criando um ciclo vicioso.
4. Existe alguma lei específica sobre pools em multipropriedade?
Não. A Lei 13.777/2018 é genérica, deixando a regulamentação para as convenções, o que gera os conflitos atuais.
5. O que acontece se eu alugar individualmente mesmo com a proibição?
Pode sofrer multa prevista na convenção, mas se a cláusula for declarada inconstitucional, a multa também será inválida.
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1 ADIT BRASIL - Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil. Posicionamento sobre a venda de frações imobiliárias (cotas ou frações de tempo) em empreendimentos turísticos em multipropriedade. 2023. Disponível em: https://adit.com.br/posicionamento-sobre-a-venda-de-fracoes-imobiliarias-cotas-ou-fracoes-de-tempo-em-empreendimentos-turisticos-em-multipropriedade/. Acesso em: 26 set. 2025.
2 BRASIL. Lei nº 13.777, de 20 de dezembro de 2018. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para dispor sobre o regime jurídico da multipropriedade e seu registro. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 21 dez. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13777.htm. Acesso em: 26 set. 2025.
3 CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária e Multipropriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2019.
4 AIRBNB. Taxa de serviço para anfitriões. Disponível em: https://www.airbnb.com.br/help/article/1857. Acesso em: 26 set. 2025.
5 BOOKING.COM. Como funciona nossa comissão. Disponível em: https://partner.booking.com/pt/ajuda/comiss%C3%A3o-fatura%C3%A7%C3%A3o-e-impostos/comissao/como-funciona-nossa-comiss%C3%A3o. Acesso em: 26 set. 2025.
6 Art. 1.358-I. São direitos do multiproprietário, além daqueles previstos no instrumento de instituição e na convenção de condomínio em multipropriedade: II - ceder a fração de tempo em locação ou comodato;
7 BRASIL. Lei nº 13.777/2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13777.htm.
8 No processo legislativo brasileiro, jabuti designa a inserção de norma alheia ao tema principal em um projeto de lei ou medida provisória enviada ao Legislativo pelo Executivo. Este termo surgiu por analogia ao ditado popular "jabuti não sobe em árvore" usado para expressar fatos que não acontecem de forma natural.
9 SILVA, André Helisson. A multipropriedade imobiliária e os desafios de sua administração. 2021. 152 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), Fortaleza, 2021. Disponível em: https://www.uni7.edu.br/wp-content/uploads/2021/06/Dissert_____o_fin_l_Andr___Helisson.pdf. Acesso em: 26 set. 2025.
10 Art. 1.358-I. São direitos do multiproprietário, além daqueles previstos no instrumento de instituição e na convenção de condomínio em multipropriedade:
I - usar e gozar, durante o período correspondente à sua fração de tempo, do imóvel e de suas instalações, equipamentos e mobiliário;
II - ceder a fração de tempo em locação ou comodato;
III - alienar a fração de tempo, por ato entre vivos ou por causa de morte, a título oneroso ou gratuito, ou onerá-la, devendo a alienação e a qualificação do sucessor, ou a oneração, ser informadas ao administrador;
IV - participar e votar, pessoalmente ou por intermédio de representante ou procurador, desde que esteja quite com as obrigações condominiais, em:
a) assembleia geral do condomínio em multipropriedade, e o voto do multiproprietário corresponderá à quota de sua fração de tempo no imóvel;
b) assembleia geral do condomínio edilício, quando for o caso, e o voto do multiproprietário corresponderá à quota de sua fração de tempo em relação à quota de poder político atribuído à unidade autônoma na respectiva convenção de condomínio edilício.
Art. 1.358-J. São obrigações do multiproprietário, além daquelas previstas no instrumento de instituição e na convenção de condomínio em multipropriedade:
I - pagar a contribuição condominial do condomínio em multipropriedade e, quando for o caso, do condomínio edilício, ainda que renuncie ao uso e gozo, total ou parcial, do imóvel, das áreas comuns ou das respectivas instalações, equipamentos e mobiliário;
II - responder por danos causados ao imóvel, às instalações, aos equipamentos e ao mobiliário por si, por qualquer de seus acompanhantes, convidados ou prepostos ou por pessoas por ele autorizadas;
III - comunicar imediatamente ao administrador os defeitos, avarias e vícios no imóvel dos quais tiver ciência durante a utilização;
IV - não modificar, alterar ou substituir o mobiliário, os equipamentos e as instalações do imóvel;
V - manter o imóvel em estado de conservação e limpeza condizente com os fins a que se destina e com a natureza da respectiva construção;
VI - usar o imóvel, bem como suas instalações, equipamentos e mobiliário, conforme seu destino e natureza;
VII - usar o imóvel exclusivamente durante o período correspondente à sua fração de tempo;
VIII - desocupar o imóvel, impreterivelmente, até o dia e hora fixados no instrumento de instituição ou na convenção de condomínio em multipropriedade, sob pena de multa diária, conforme convencionado no instrumento pertinente;
IX - permitir a realização de obras ou reparos urgentes.
11 Art. 1.358-S, parágrafo único: "Na hipótese de o imóvel objeto da multipropriedade ser parte integrante de empreendimento em que haja sistema de locação das frações de tempo no qual os titulares possam ou sejam obrigados a locar suas frações de tempo exclusivamente por meio de uma administração única, repartindo entre si as receitas das locações independentemente da efetiva ocupação de cada unidade autônoma, poderá a convenção do condomínio edilício regrar que em caso de inadimplência..." Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 27 set. 2025.
12 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
13 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II - propriedade privada; IV - livre concorrência;
14 Cf. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019.
15 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
16 Art. 1.351. Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção, bem como a mudança da destinação do edifício ou da unidade imobiliária. (Redação dada pela Lei nº 14.405, de 2022)


