Duas uniões estáveis ao mesmo tempo? Quando o Direito diz "sim"
O artigo analisa a jurisprudência do STJ, a boa-fé objetiva e subjetiva e os desafios da monogamia frente às famílias simultâneas.
quarta-feira, 15 de outubro de 2025
Atualizado às 14:54
Para muitos, a ideia de ter mais de uma união estável ao mesmo tempo soa como um tabu ou até mesmo como algo proibido pelo Direito. A monogamia é, afinal, um dos pilares históricos do nosso sistema jurídico de família, ao lado da publicidade, da continuidade e da durabilidade da relação. No imaginário social, pensar em duas uniões estáveis simultâneas seria como desafiar as bases do casamento e da própria ordem pública.
Entretanto, a realidade é mais complexa do que o ideal normativo. No Brasil, relações afetivas paralelas são um fato social, e não raro resultam em disputas por herança, pensão ou partilha de bens. Surge então a grande questão: o Estado deve fechar os olhos para essas relações ou reconhecê-las quando estão revestidas de boa-fé e constituíram famílias de fato?
O constituinte de 1988 equiparou o casamento e a união estável como entidades familiares (art. 226, §3º, CF), ampliando a proteção estatal para além do vínculo formal. O CC, ao regular a união estável no art. 1.723, não menciona a exclusividade como requisito, mas a doutrina tradicional e a jurisprudência majoritária a inferem do princípio da monogamia.
Ocorre que, nos últimos anos, o STJ tem sido provocado a decidir casos de famílias paralelas, especialmente em matéria previdenciária e sucessória, e a resposta, em algumas situações, tem sido surpreendente: sim, é possível reconhecer duas uniões estáveis ao mesmo tempo, desde que haja boa-fé e comprovação do vínculo familiar.
O presente artigo busca discutir essa evolução jurisprudencial, seus fundamentos constitucionais e seus limites. Mais do que um debate sobre Direito de Família, trata-se de uma reflexão sobre como o Judiciário deve responder à complexidade das relações humanas no século XXI, equilibrando o princípio da monogamia com a proteção da dignidade da pessoa humana e o dever de não deixar ninguém sem amparo jurídico.
O conceito jurídico de união estável
O art. 1.723 do CC define a união estável como a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família Não há no texto legal menção à exclusividade. A doutrina e a jurisprudência, entretanto, entendem que ela está implícita, mesmo assim, casos concretos chegam ao Judiciário demonstrando que a vida não é linear: pessoas mantêm relações paralelas de boa-fé, ou mesmo por longos períodos sem conflito aparente, e a Justiça é chamada a decidir sobre efeitos patrimoniais e previdenciários.
Diversos doutrinadores trazem definições que enriquecem o conceito legal:
- Maria Berenice Dias afirma que a união estável é:
"Uma situação de fato, juridicamente qualificada, que se caracteriza pela convivência pública, contínua e duradoura de duas pessoas, com aparência de casamento e intenção de constituir família."
- Carlos Roberto Gonçalves define:
"Relação afetiva entre o homem e a mulher, duradoura, pública e contínua, sem impedimentos para o casamento, e estabelecida com o objetivo de constituir família."
- Silvio de Salvo Venosa acrescenta:
"É a convivência more uxorio, ou seja, como se casados fossem, com intuito de vida em comum, com notoriedade e estabilidade."
- Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona destacam:
"A união estável é uma entidade familiar que não depende de formalidades para se constituir, bastando a convivência fática, pública, contínua, duradoura e com intuito de constituir família.
Monogamia, boa-fé e famílias simultâneas
O princípio da monogamia sempre foi tratado como cláusula quase pétrea do Direito de Família brasileiro. O casamento é, por definição, monogâmico, tanto que a bigamia é crime tipificado no art. 235 do CP. Porém, a união estável, por sua natureza fática e desburocratizada, desafia esse paradigma.
O ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp 1.306.538/RS, afirmou que "o reconhecimento de uniões estáveis paralelas, sem a observância da boa-fé, importaria em subversão do sistema jurídico de família, baseado na monogamia". Ainda assim, o mesmo STJ tem adotado posição protetiva quando há boa-fé objetiva e elementos que indiquem a constituição de uma verdadeira entidade familiar.
A doutrina, por sua vez, evolui para reconhecer que a proteção estatal à família deve se dar independentemente da forma, desde que presentes seus elementos essenciais. Maria Berenice Dias, referência em Direito das Famílias, destaca que "o afeto é o verdadeiro elemento formador da família contemporânea" e que o Judiciário deve priorizar a proteção de vínculos afetivos reais, mesmo que simultâneos, quando a boa-fé dos envolvidos ficar evidenciada.
Jurisprudência que afirma o "sim"
A jurisprudência brasileira tem construído um mosaico interessante sobre o tema.
O Tema 529 do STJ consolidou o entendimento de que é possível a divisão de pensão por morte entre esposa e companheira, desde que demonstrada boa-fé e convivência duradoura. O voto do ministro Herman Benjamin foi enfático: "o que se busca não é premiar a simultaneidade, mas impedir o desamparo previdenciário de quem efetivamente constituiu uma família".
Em outros casos, como o REsp 1.711.294/RS, o STJ também reconheceu a possibilidade de efeitos patrimoniais para relações concomitantes de longa duração, adotando uma visão mais pragmática e protetiva, priorizando o princípio da dignidade da pessoa humana.
Esses precedentes indicam que o Judiciário não legitima a bigamia, mas protege a realidade fática, sobretudo quando uma das partes não tinha ciência da outra relação ou quando, apesar de saber, construiu um núcleo familiar com respaldo social e afetivo.
Reflexão necessária
A discussão coloca em xeque se o Direito deve ser prescritivo, impondo um modelo ideal de família, ou descritivo, reconhecendo os arranjos familiares que já existem na sociedade.
O professor Gustavo Tepedino argumenta que o Direito de Família brasileiro vive um processo de "despatrimonialização", em que o afeto e a dignidade da pessoa humana ganham centralidade, superando a rigidez de modelos clássicos.
Michel Rosenfeld, ao falar sobre identidade constitucional, lembra que a CF é também um projeto de comunidade, e que esse projeto deve dialogar com a realidade social. No Brasil, onde a pluralidade afetiva é cada vez mais visível, ignorar a existência de famílias simultâneas é fechar os olhos para uma parte da sociedade.
A pergunta que fica é: o Direito deve continuar exigindo exclusividade absoluta ou deve admitir, ao menos para fins de proteção de direitos, que mais de uma entidade familiar possa coexistir legitimamente?
Conclusão
A resposta é clara: sim, é possível haver mais de uma união estável ao mesmo tempo, desde que observados critérios de boa-fé e proteção da dignidade da pessoa humana.
Pessoalmente, considero justo que o Judiciário avalie, caso a caso, a boa-fé objetiva e subjetiva dos envolvidos, evitando decisões automáticas que premiem má-fé ou punam injustamente quem construiu, de forma legítima, uma segunda entidade familiar.
O tema segue controverso, mas o Judiciário brasileiro vem dando sinais de que prefere não deixar desamparado quem construiu uma família paralela legítima. O desafio é equilibrar o respeito ao princípio da monogamia com a necessidade de proteção jurídica à realidade das relações afetivas contemporâneas.
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