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Trancamento penal e mídia: O dever de atualizar notícias

O artigo analisa o caso Daurio Speranzini e discute o dever da imprensa de atualizar notícias após o trancamento de ações penais, à luz da LGPD, dignidade humana e responsabilidade jornalística.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Atualizado às 09:22

Prisões espetaculares, trancamentos silenciosos

Nos últimos anos, operações de combate à corrupção renderam manchetes diárias. A prisão preventiva, muitas vezes temporária, transforma-se em condenação social imediata. Já quando a Justiça reconhece que a ação penal jamais deveria ter existido, raramente a decisão recebe o mesmo destaque.

O caso de Daurio Speranzini Jr., ex-presidente da GE Healthcare na América Latina, é paradigmático. Preso em 2018 na chamada Operação Ressonância, teve sua imagem amplamente associada a crimes como fraude a licitação e organização criminosa.

Em dezembro de 2024, porém, o STF (HC 239.998/RJ) determinou o trancamento da ação penal, reconhecendo a inépcia da denúncia e a ausência de justa causa. Isso significa que o processo jamais deveria ter avançado - não havia elementos mínimos sequer para que ele fosse réu.

A prisão foi manchete nacional e internacional; o trancamento, ao contrário, passou em silêncio na maioria dos grandes veículos.

Trancamento não é absolvição: A diferença importa

É preciso sublinhar:

Trancamento da ação penal não é o mesmo que absolvição.

  • Absolvição ocorre ao final de um processo, quando o juiz analisa as provas e reconhece a inocência ou a falta de provas para condenar (art. 386, CPP).
  • Trancamento é mais grave sob o ponto de vista processual: significa que o processo nunca deveria ter existido, pois a denúncia não tinha base fática ou jurídica suficiente.

No plano da imagem, porém, ambos os institutos convergem: em nenhum dos dois casos há condenação, e a pessoa não pode permanecer estigmatizada como culpada.

Colisão de direitos fundamentais

A CF/88 consagra a liberdade de imprensa e o direito à informação, mas também assegura os direitos da personalidade, como honra, imagem e privacidade.

LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, por sua vez, exclui de sua aplicação os dados tratados para fins exclusivamente jornalísticos (art. 4º, II, "a") - argumento usado por veículos como Veja para negar pedidos de atualização.

Entretanto, a própria LGPD impõe os princípios da veracidade e da atualização dos dados pessoais, fundamento que pode ser invocado para exigir a correção de reportagens que perpetuam um contexto superado.

A repercussão no caso Speranzini

Após a decisão do STF, a assessoria jurídica de Speranzini notificou diversos veículos:

  • Band, Agência Brasil e El País atualizaram ou publicaram notas sobre o trancamento.
  • Exame retirou matérias do ar em caráter excepcional.
  • Veja (Grupo Abril), entretanto, recusou o pedido, alegando que a matéria refletiam os fatos da época e que a LGPD não se aplicaria.

Ou seja, enquanto a prisão de 2018 ecoa até hoje na internet, a decisão do STF de 2024 quase não aparece no espaço público.

A imprensa e sua responsabilidade social

Não se trata de censurar ou apagar fatos históricos. O que se propõe é que a imprensa exerça sua função social de informar de forma completa, garantindo que o leitor conheça não apenas a acusação, mas também o desfecho judicial.

O STF já ressaltou que denúncias genéricas e acusações sem lastro probatório violam o devido processo legal e impõem danos graves à dignidade da pessoa. Se o Estado reconhece que a ação penal jamais deveria ter existido, não é razoável que a imprensa permaneça inerte.

Conclusão: A pena da opinião pública

O episódio Speranzini expõe uma realidade dura: a pena da opinião pública é mais duradoura que qualquer processo judicial. Prisões viram manchetes; trancamentos, notas de rodapé.

A liberdade de imprensa é essencial à democracia, mas precisa conviver com a responsabilidade de não perpetuar condenações sociais sem fundamento.

Se a Justiça já declarou que a denúncia era inepta e sem justa causa, a pergunta que fica é: pode a imprensa se omitir, mantendo vivo um estigma que nunca deveria ter existido?

Meire de Andrade Alves

VIP Meire de Andrade Alves

Advogada formada pela FMU com mais de 20 anos de experiência, sendo 10 anos na iniciativa privada e 10 anos no serviço público. Pós Graduada.

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