Reforma administrativa: O espelho torto do Estado
A reforma administrativa não é um projeto de Estado, mas um projeto de poder - com o desmonte silencioso da Constituição.
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
Atualizado às 09:57
A reforma administrativa em discussão no Brasil não é apenas uma reorganização burocrática. Ela coloca em jogo o futuro do serviço público, a qualidade dos serviços prestados à população e o equilíbrio entre eficiência e direitos constitucionais.
Por isso, muito cuidado: há perigo na esquina... O sinal está sempre fechado para os servidores.
Como diria Belchior, "o novo sempre vem", mas, na reforma administrativa, o novo é só para cortar de baixo e blindar de cima.
"O inferno são os outros", escreveu Sartre. No Brasil, o outro é o servidor público do andar de baixo: o professor, a merendeira, o policial, o técnico, o enfermeiro. Nunca o parlamentar.
Pois é. A reforma administrativa virou um espelho torto: cobra eficiência de quem já opera no limite e poupa quem legisla sobre ele.
A falácia do privilégio
A ideia de que servidores públicos acumulam privilégios é uma falácia que ignora a diversidade de carreiras e salários no setor público.
A maioria dos servidores - professores, policiais, técnicos, profissionais da saúde - recebe salários baixos e enfrenta jornadas exaustivas.
No entanto, o discurso reformista, por maldade, confunde deliberadamente esses trabalhadores com agentes políticos do andar de cima, como: magistrados e membros do Ministério Público, para justificar cortes e precarizações.
Tudo é colocado no mesmo saco, como se o salário de um técnico do Tribunal de Justiça fosse comparável ao de um desembargador ou ministro do STF.
Essa estratégia serve para atacar quem sustenta os serviços públicos essenciais, enquanto os verdadeiros privilégios - como verbas indenizatórias sem transparência - permanecem intocados.
Desconstrução do serviço público
A proposta representa uma inflexão ideológica profunda: a substituição do modelo constitucional de serviço público por uma lógica gerencial, marcada pela precarização, pela flexibilização de direitos e pela deslegitimação da função pública como expressão do pacto democrático de 1988.
A reforma administrativa não é neutra. Ela carrega um projeto de Estado. E esse projeto não é o da CF/88. É contra o cidadão.
É o da racionalidade gerencial, da flexibilização neoliberal e da blindagem institucional do topo.
A demonização do servidor
O servidor virou vilão. Lento, caro, resistente. Esquecem que ele trabalha em escola sem ventilador, hospital sem insumo, delegacia sem colete. O salário? Defasado. A jornada? Exaustiva. A culpa? Sempre dele.
A reforma usa essa caricatura para justificar cortes. Mas quem carrega o Estado nas costas é ele. Sem enfermeiro e médico, não há atendimento. Sem professor, não há futuro. Sem servidor nos cartórios, o processo não anda.
O fetiche da eficiência
A retórica da "eficiência" virou o novo nome da exceção. Sob o pretexto de modernizar o Estado, a reforma propõe cortes e flexibilizações que atingem diretamente os servidores da base, enquanto preserva os privilégios do alto escalão.
A eficiência, nesse contexto, não é um valor republicano. É um instrumento de desmonte.
A desconstitucionalização silenciosa
Ao pretender alterar mais de 40 dispositivos constitucionais, a reforma promove uma desconstitucionalização do serviço público.
Estabilidade, progressão, carreira e remuneração deixam de ser garantias institucionais e passam a depender de metas e critérios gerenciais. O servidor vira agente de um Estado-empresa.
O risco à democracia substantiva
O serviço público é a espinha dorsal da democracia substantiva. É por meio dele que se concretizam os direitos sociais previstos na CF: saúde, educação, segurança e assistência.
Ao precarizar o servidor, precariza-se o direito. Ao flexibilizar a carreira, flexibiliza-se o compromisso institucional. A reforma não fortalece o Estado. Ela o enfraquece.
A hipocrisia do parlamento
O servidor precisa ser avaliado. O deputado, não. O técnico e o analista têm metas. O senador tem foro. A "Excelência" não se submete à mesma régua.
Fala em modernização, mas não mexe nas verbas indenizatórias. Discursa sobre eficiência, mas não corta os cargos comissionados. Cobra sacrifício dos outros e escreve exceção para si.
A piscina de ratos
A frase de Cazuza ecoa como denúncia: "Tuas ideias não correspondem aos fatos..." O parlamento fala em modernização, mas se esquiva da própria reforma.
Exige sacrifícios dos outros, mas preserva seus próprios privilégios. A hipocrisia institucional mina a confiança na democracia.
Reforma para os outros
A reforma é sintoma do "constitucionalismo de ocasião": invoca-se a CF quando ela serve ao projeto de poder. Quando não serve, é ignorada ou reinterpretada.
O servidor vira inimigo da República, como se fosse ele o responsável pela crise fiscal e pela má gestão. Mas não se reforma o parlamento.
A reforma é seletiva. E seletividade, no campo do direito, é o nome moderno da arbitrariedade.
Exceção para si
No parlamento, o expediente TQQ - terça, quarta e quinta - virou regra não escrita. Segunda é dia de base. Sexta é dia de aeroporto. E o resto é silêncio.
O deputado quer avaliar o servidor, mas não é avaliado. Fala em cortar privilégios, mas não mexe no próprio contracheque. Reforma é para os outros. Para si, exceção.
O recall político
O único instrumento que permitiria ao povo avaliar seus representantes - o recall político - nunca saiu do papel. Está sempre "em estudo", "em debate", "em tramitação". Tradução: não vai acontecer.
Seria simples: não cumpriu, não fica. Mas no Brasil, isso soa radical. Afinal, quem ousaria demitir uma excelência?
Conclusão
A reforma administrativa é como dieta de político: começa pelo jejum dos outros. O servidor da escola pública vira vilão, enquanto o gabinete climatizado segue com verba secreta e cafezinho gourmet.
Reforma de verdade começa por cima. Mas no Brasil, o topo é sagrado. O parlamento não se reforma - se protege.
E quem ousa sugerir o contrário é acusado de corporativismo, como se defender o serviço público fosse crime.
No fim, o servidor é punido por trabalhar.
O político é premiado por legislar contra ele. E o contribuinte? Paga a conta, bate palmas e ainda agradece.
A reforma administrativa, tal como desenhada, não é um projeto de racionalização do Estado.
É um espetáculo de não legitimação da função pública. Sob o manto da eficiência, esconde-se uma lógica de desconstitucionalização silenciosa, que transforma o servidor em inimigo da República e o serviço público em mercadoria.
O discurso reformista ignora que o servidor público é expressão do pacto constitucional de 1988.
Ele não é obstáculo à democracia - é sua garantia. Ao atacar sua estabilidade, sua carreira e sua dignidade, o Estado não se moderniza. Ele se precariza. E precariza, junto com ele, os direitos sociais que o servidor sustenta.
O inferno, afinal, continua sendo os outros - como dizia Sartre. E no Brasil, o outro é sempre o servidor do andar de baixo.


