Do nó ao ninho: Pactos e a reinvenção da família no Brasil
Família entre tradição e afeto: O artigo revela como pactos nupciais reinventam a culpa e criam uma justiça afetiva no Brasil plural.
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Atualizado às 14:25
Introdução
A família, enquanto construção histórica e cultural, sempre foi um espelho das dinâmicas sociais, refletindo as tensões entre tradição e inovação, autoridade e liberdade, moralidade e afeto. No Brasil contemporâneo, o Direito de Família opera em um contexto multicultural, onde o progressismo, que privilegia a autonomia individual e os laços afetivos, coexiste com o conservadorismo, que valoriza lealdade, honra e responsabilidade. Este texto analisa a reconfiguração da família brasileira, explorando a evolução do divórcio, a abolição da culpa como requisito legal e o ressurgimento da responsabilização moral por meio de pactos contratuais, como acordos pré e pós-nupciais. Ao examinar a interação entre reformas legais, como a Emenda Constitucional nº 66/2010, e as demandas sociais por justiça, destaca-se como o Direito de Família brasileiro equilibra liberdade individual e expectativas éticas, criando uma "justiça afetiva" que ressoa em uma sociedade plural.
1. A mutação da família: Progressismo, conservadorismo e a reinvenção do lar
A família, historicamente moldada por normas patriarcais, servia para perpetuar hierarquias de gênero, assegurar a transmissão de patrimônio e regular os afetos sob uma ótica moralizante. No século XIX, o casamento era menos uma união de amor e mais um contrato social, frequentemente mediado por interesses econômicos ou alianças familiares. Muitas vezes, esses casamentos eram "forçados", impostos por conveniências sociais, econômicas ou familiares, resultando em uniões desprovidas de afeto ou mesmo de convivência familiar genuína. A mulher, subordinada ao marido, desempenhava papéis domésticos, enquanto os filhos eram vistos como extensões da autoridade paterna, destinados a manter a linhagem e a ordem estabelecida.
A modernidade, impulsionada por ideais progressistas, desencadeou uma transformação profunda. Como observa Michelle Perrot: "Uma outra [família] está a caminho: a que tenta conciliar a liberdade individual com os laços afetivos do velho lar" (PERROT, 1999, p. 75).
No Brasil, as mulheres conquistaram direitos civis, econômicos e políticos, assumindo protagonismo no mercado de trabalho e na esfera pública; os filhos passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, protegidos por legislações como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990); e o casamento transformou-se em uma união voluntária, baseada no consentimento mútuo e passível de dissolução. A EC 66/10 consolidou essa mudança ao abolir a separação judicial e a culpa, alinhando-se à desjudicialização das relações privadas (MADALENO, 2022).
Essa evolução marca a transição do "nó" da tradição - caracterizado pela rigidez de papéis, dependência econômica e opressão de gênero - para o "ninho", uma metáfora que evoca afeto, acolhimento e liberdade. Contudo, a família contemporânea não é homogênea. O multiculturalismo jurídico brasileiro reflete a tensão entre o progressismo, que libera a família de amarras normativas, e o conservadorismo, que resgata valores como lealdade e responsabilidade. Boaventura de Sousa Santos conceitua o multiculturalismo como:
[...] a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades 'modernas'. Rapidamente, contudo, o termo se tornou um modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. [...] O termo apresenta as mesmas dificuldades e os mesmos potenciais do conceito de 'cultura', um conceito central das humanidades e das ciências sociais e que, nas últimas décadas, se tornou um terreno explícito de lutas políticas. (SANTOS, 2003, p. 26)1
No contexto do Direito de Família brasileiro, o multiculturalismo manifesta-se na pluralidade de arranjos familiares - uniões homoafetivas, famílias monoparentais, recomposições pós-divórcio - que coexistem com a valorização de ideais tradicionais, como a fidelidade conjugal, especialmente em uma sociedade marcada por influências latinas e católicas. Justiniano já advertia: "Nas uniões conjugais se há de considerar sempre não só o que é lícito, mas também o que é honesto" (JUSTINIANO, 2010, p. 395).
Essa dualidade evidencia um diálogo contínuo entre progresso e tradição, mediado pelo multiculturalismo jurídico que permite a coexistência de visões opostas, adaptando o Direito de Família às dinâmicas culturais e sociais do Brasil contemporâneo.
2. A evolução do divórcio: Da culpa à emancipação
A culpa foi historicamente essencial para a dissolução do casamento, refletindo normas que exigiam responsabilização moral pelo fracasso matrimonial. No Código de Manu, a esterilidade ou a incapacidade de gerar filhos homens justificavam o repúdio; no direito mosaico, o adultério permitia a dissolução unilateral pelo marido (FARIAS, 2004). No mundo romano, o Corpus Iuris Civilis de Justiniano previa punições severas à mulher adúltera, como flagelação e reclusão monástica (CHAVES, 2004). As Ordenações Filipinas do século XVII permitiam até o homicídio do adúltero em certas circunstâncias (FARIAS, 2004).
O direito canônico consolidou a indissolubilidade do casamento, admitindo a separação apenas em casos excepcionais, como adultério ou violência, sempre exigindo prova de culpa (MALUF; MALUF, 2018). No Brasil, o CC de 1916 mantinha o casamento como base única da família, sendo indissolúvel. O desquite permitia apenas a separação de corpos e bens, exigindo consenso ou prova de culpa, como adultério, tentativa de morte, sevícias ou abandono por mais de dois anos (TEPEDINO, 1998). Como observa Tepedino: "[...] se um dos cônjuges não consentisse com o desquite consensual, somente a ocorrência de uma das hipóteses de conduta culposa previstas pelo legislador autorizaria o desenlace" (TEPEDINO, 1998).2
A lei do divórcio (lei 6.515/1977) introduziu a possibilidade de dissolução do vínculo matrimonial, mas a culpa ainda influenciava pensão alimentícia, guarda dos filhos e uso do nome de casada (TEPEDINO, 1998). A CF/88 marcou uma mudança paradigmática ao reconhecer a família como base da sociedade, sem vinculá-la exclusivamente ao casamento, enfatizando a dignidade, a igualdade e a privacidade (FARIAS, 2004).
A EC 66/10 representou o ápice dessa evolução, abolindo a separação judicial e a culpa, estabelecendo o divórcio como direito potestativo. Como destaca Rolf Madaleno:
[...] cada vez interessava menos ao Direito ocupar-se em longos embates jurídicos da pesquisa da culpa pela derrocada nupcial. A visão moderna do casamento, que prioriza a dignidade da pessoa, não podia mais permitir vazios conflitos internos de ponderação da dignidade conjugal. (MADALENO, 2022, p. 143)3
Essa reforma refletiu a tendência de desjudicialização, evitando que o Estado julgasse moralmente o fracasso conjugal. No entanto, a abolição da culpa gerou um vácuo simbólico. Rodrigo da Cunha Pereira observa:
Mesmo antes da abolição da culpa pela referida Emenda Constitucional, a melhor doutrina e jurisprudência já tinham entendido a sua inutilidade e que tais discussões além de fomentar o ódio, não devem ter interferência ou chancela do Estado, afinal não há interesse público em se investigar a intimidade de um casal e encontrar culpados ou inocentes. (PEREIRA, 2016, p. 96-97)4
Enquanto o progressismo celebrou a liberdade, o conservadorismo, enraizado em valores católicos, demandou reconhecimento das dores causadas por traições ou abandono. Maria Berenice Dias oferece uma visão progressista:
Comete adultério, tenta matar, agride, abandona, mantém conduta desonrosa quem não ama mais. As atitudes previstas são meros reflexos do fim do amor. O esgotamento do vínculo de afetividade é que leva alguém a violar os deveres do casamento. (DIAS, 2021, p. 125-126)5
Por outro lado, Regina Beatriz Tavares da Silva critica a remoção da culpa:
"[...] poderia o cônjuge ser um infiel contumaz e nenhuma consequência sofreria. Independentemente da estipulação legal do dever de respeito aos direitos da personalidade do cônjuge, nenhuma sanção civil receberia aquele que, ao descumprir esse dever, tivesse violentado física e moralmente o consorte. Vê-se que não faz sentido eliminar a culpa nas relações familiares e nas rupturas do casamento." (TAVARES DA SILVA, 2012, p. 46-47).6
Essa tensão evidencia o multiculturalismo jurídico, onde a neutralidade legal progressista coexiste com demandas sociais por justiça moral, refletidas na persistência de valores como honra e lealdade.
3. A contratualização do Direito de Família: Ressuscitando a culpa por acordos privados
A neutralização da culpa pela emenda de 2010, um avanço progressista, gerou uma reação conservadora por meio da contratualização das relações familiares. Pactos pré e pós-nupciais passaram a incluir cláusulas morais, como fidelidade, transparência digital, aconselhamento conjunto ou penalidades por infidelidade ou abandono afetivo, resgatando a responsabilização moral em um sistema que prioriza a liberdade (ELIAS; TOPOROSKI, 2024). Como destaca Rodrigo da Cunha Pereira:
É possível estabelecer direitos pessoais e existenciais no pacto antenupcial. Podemos exemplificar, o reconhecimento de paternidade/maternidade, que mesmo sendo inválido o pacto, ele surtirá efeitos quanto a este reconhecimento. Pode-se também estabelecer sobre questões domésticas de administração do lar conjugal, sobre dormirem em quartos separados, ou em casa separadas etc. Ainda que seja de difícil exequibilidade, tais regras estabelecem parâmetros que podem tornar o casamento melhor. Obviamente que não se pode estabelecer regras que infrinjam deveres de cuidado e educação dos filhos. Mas pode se estabelecer parâmetros e princípios sobre escolha do nome, educação religiosa, ou não, e todos os assuntos que poderiam gerar desavenças em um casal, como se tem feito nos "contratos de geração de filhos". Proibir o estabelecimento de cláusulas de conteúdo moral sobre fidelidade, não proibição de uma relação aberta, práticas sexuais não convencionais, seria interferir na autonomia da vontade dos sujeitos ali envolvidos. Quanto mais claras as regras estabelecidas entre o casal, mais verdadeira será a conjugalidade. Obviamente que a maioria das pessoas prefere guardar em segredo suas fantasias e intimidade e, não revelá-las em um pacto antenupcial. Mas se quiserem deixar algumas regras claras nesse sentido, não há impedimento jurídico. (PEREIRA, 2021, p. 272)7
Essa visão reforça a autonomia privada, permitindo que casais estipulem cláusulas existenciais e morais, desde que respeitem limites como os deveres parentais, sem interferência estatal na intimidade. Rafael Calmon complementa:
[...] a riqueza da vida e a dinâmica de cada arranjo familiar permitiriam que se imaginassem cláusulas estipulando, por exemplo, a privacidade a respeito de certos aspectos da vida comum, a não manutenção do patronímico do outro, o sigilo sobre práticas e preferências relacionadas à intimidade sexual do casal, a obrigatoriedade de submissão, certas sessões de terapia de casal com profissional de área predeterminada, diante de determinados acontecimentos, a não exposição da imagem dos filhos (Shareting), a opção por relacionamentos LAT (Living Apart Together) ou relacionamentos ENM (Ethical non-monogamy), assim como multas e indenizações diversas ao fim do relacionamento, a título de cláusula penal (CC, arts. 408 e s.), inclusive para o caso de infidelidade ou de descumprimento das obrigações convencionadas nas demais cláusulas do pacto, as quais representariam crédito a favor do indivíduo que houvesse sido lesado, passível de ser exigido oportunamente e até mesmo compensado em eventual partilha, sem prejuízo do protesto e da inscrição do nome do devedor em cadastros de inadimplentes, em caso de não pagamento, nos termos da Lei n. 9.492/97. (CALMON, 2024, p. 97-98)8
Essas cláusulas, que incluem desde a proteção da privacidade até penalidades por infidelidade, refletem a flexibilidade dos pactos em atender às dinâmicas modernas, ao tempo em que também reintroduzem a culpa como mecanismo de reparação contratual. Contudo, essa autonomia contratual enfrenta limites legais que evidenciam a tensão entre progressismo e conservadorismo. Como destacam Madaleno, Madaleno e Madaleno:
A generalidade das legislações latinas, inspiradas em grande parte no Código de Napoleão, aceita o princípio da liberdade, mas estabelece limitações à liberdade contratual das partes, como igualmente procedem os direitos português, francês, argentino, este com maior rigor, e brasileiro, que começa proibindo pactuar qualquer exceção ou inobservância dos deveres conjugais do artigo 1.566 do Código Civil. Esse fato, na atualidade, é completamente iníquo diante dos termos da Emenda Constitucional 66/2010, que deixou de aferir a culpa como pressuposto para a separação judicial e implantou um divórcio direto e sem causa, transformando os deveres do casamento em meras recomendações nupciais, transferindo para a exclusiva avaliação dos cônjuges o ato de decidirem querer ou não continuar casados, quando se defrontam com uma falta a algum dever nupcial dentre aqueles. (MADALENO; MADALENO; MADALENO, 2021, p. 172-173)9
Essa proibição de pactuar contra os deveres conjugais reflete uma mentalidade conservadora que busca normatizar a conduta matrimonial, mesmo após a emenda de 2010, que priorizou a autonomia individual. No entanto, a doutrina reconhece a validade dos "contratos familiares" sob certas condições. Conforme Francisco Cláudio de Almeida Santos:
[...] não existe noção cerrada da autonomia privada dos consortes com seus contratos conjugais, eis que o norte entre o permitido e o proibido está na máxima jurídica da comunhão plena de vida, prevista no artigo 1.511 do Código Civil e que, a partir da efetiva existência de uma entidade familiar, seriam inconciliáveis cláusulas pactícias aviltantes, quando provocassem algum desequilíbrio nas relações afetivas. [...] doutrina e jurisprudência consideram os pactos como verdadeiros contratos familiares, o que realmente são, mas cuja eficácia está unicamente vinculada à existência de um consentimento informado, vale dizer, os pactuantes emitem sua vontade plenamente cientes, plenamente informados do estado e da extensão de seu patrimônio, e, a partir desse conhecimento, podem renunciar a qualquer direito patrimonial, renúncia outrora proibida e atualmente eficaz, só podendo ser anuladas as cláusulas pactícias, se algum dos contratantes foi vítima de erro ou ignorância (CC, arts. 138-144), dolo (CC, art.145-150), coação (CC, arts. 151-155), estado de perigo (CC, art. 156), lesão (CC, art.157), fraude (CC, art.158-165) e simulação (CC, art. 167). (ALMEIDA SANTOS, 2005, p. 209 apud MADALENO; MADALENO; MADALENO, 2021, p. 173-174)10
Essas observações ilustram o paradoxo da contratualização no Brasil: enquanto a emenda de 2010 reforça a liberdade individual, a proibição de pactos que violem deveres conjugais e a exigência de consentimento informado refletem resquícios conservadores, preocupados com a ordem pública e a proteção contra abusos. Cláusulas que penalizam infidelidade ou abandono afetivo reintroduzem a culpa indiretamente, transformando-a em obrigação contratual. Rolf Madaleno argumenta que a natureza peculiar das relações familiares impede sua equiparação a contratos patrimoniais, pois afeto e cuidado não são mensuráveis (MADALENO, 2022). Arnaldo Rizzardo complementa que a boa-fé objetiva (art. 422 do CC) deve orientar esses acordos, evitando que cláusulas punitivas transformem conflitos íntimos em litígios econômicos (RIZZARDO, 2022). A validade dessas cláusulas depende de sua conformidade com princípios constitucionais, como dignidade e solidariedade.
A contratualização representa, assim, uma solução multicultural que harmoniza a autonomia progressista com a demanda conservadora por responsabilização, criando uma "justiça afetiva contratada" que preenche o vácuo deixado pela emenda.
4. A culpa antes e depois: Da dissolução matrimonial à responsabilidade civil
Como já dito, antes da emenda de 2010, a culpa era a única forma de dissolver o vínculo matrimonial. Sob o CC de 1916, a família era indissociável, uma entidade com direitos perante terceiros, como a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos ou a equiparação da união estável ao concubinato (FARIAS, 2004). Apenas atos específicos - adultério, tentativa de morte, sevícias ou abandono - justificavam o desquite, reforçando a família como pilar social (TEPEDINO, 1998).
Após a CF/88, a família passou a ser vista como um núcleo de realização individual, com seus membros reconhecidos como sujeitos autônomos com projetos existenciais próprios. A ascensão das mulheres no meio acadêmico e no mercado de trabalho, junto com a legalização de uniões homoafetivas e outras estruturas, mudou o foco (da família) para os direitos individuais (PEREIRA, 2016). A emenda de 2010 consolidou essa visão, tornando o divórcio um direito potestativo, sem necessidade de culpa.
Hoje, a culpa ressurge como base para a responsabilidade civil, não mais como requisito de dissolução do casamento, mas para reparar danos emocionais ou financeiros decorrentes do fracasso do projeto familiar. Pactos pré-nupciais estipulam medidas reparatórias, como penalidades por infidelidade, transformando a culpa em obrigação contratual (DUQUE, 2025). Isso alinha-se ao princípio da responsabilidade civil, onde danos - morais ou patrimoniais - exigem reparação, independentemente do divórcio (TARTUCE, 2021). Essa reformulação reflete o multiculturalismo, equilibrando a autonomia progressista com a demanda conservadora por justiça, sem exigir reformas legislativas.
5. Multiculturalismo, regimes de bens e o futuro do Direito de Família
A contratualização do Direito de Família abrange os regimes de bens, refletindo a diversidade cultural dos arranjos familiares. Pactos pré-nupciais permitem personalizar a divisão patrimonial, desde a separação total até a comunhão universal, atendendo a prioridades econômicas e culturais variadas (ELIAS; TOPOROSKI, 2024). No Brasil, a complexidade patrimonial de famílias recompostas e uniões não tradicionais aumenta a necessidade de contratos que garantam segurança jurídica (DUQUE, 2025). Essa autonomia contratual, porém, varia em sua aplicação globalmente, como destaca Dário Moura Vicente:
Nos sistemas romano-germânicos, o fundamento da eficácia do contrato é [...] a vontade das partes; mas ela assenta também numa ideia de equidade, traduzida na preservação de certo equilíbrio entre as prestações contratuais. [...] Nos sistemas de Common Law, o fundamento da eficácia do contrato é [...] sobretudo, a vontade das partes: os desvios à estabilidade e à relatividade dos contratos fundados na ideia de equivalência das prestações são muito mais limitados. [...] No Direito chinês, [...] são estabelecidas pela lei fortes restrições à livre conformação do seu conteúdo. [...] No Direito muçulmano, [...] as restrições impostas à liberdade contratual fundamentam-se na natureza revelada da Xaria. (VICENTE, 2016, p. 297-298)11
Essas distinções ilustram como o multiculturalismo jurídico reflete abordagens conservadoras, como a ênfase na culpa em pactos nupciais, e progressistas, como a abolição da culpa no divórcio. No Brasil, enquadrado nos sistemas romano-germânicos, o equilíbrio entre vontade das partes e equidade é evidente nos contratos que regulam regimes de bens, permitindo que casais negociem termos alinhados com seus valores, harmonizando autonomia e responsabilidade mútua.
O multiculturalismo jurídico manifesta-se na coexistência de regimes progressistas, como a separação de bens, que preserva a autonomia individual, e conservadores, como a comunhão, que simboliza unidade e responsabilidade mútua (TARTUCE, 2021). Os contratos unem essas visões, garantindo segurança jurídica sem depender de reformas legislativas. Reintroduzir a culpa por lei exigiria revisar o sistema de divórcio sem culpa, comprometendo sua eficiência (PEREIRA, 2016), configurando-se retrocesso.
A influência de valores conservadores, como honra e fidelidade, é visível na cultura popular brasileira. Novelas, músicas sertanejas e narrativas midiáticas frequentemente retratam a infidelidade como uma transgressão moral, ecoando preocupações históricas com a lealdade conjugal. No contexto romano, Fustel de Coulanges observava: "O adúltero perturba a ordem do nascimento [...]. Todos os princípios da religião são violados, o culto é maculado, o lar se torna impuro [...] o filho do adultério é um estranho" (COULANGES, 1961, p. 68-69).12
Embora Coulanges se refira à tradição greco-romana, a ênfase na lealdade como pilar da família ressoa na cultura brasileira, influenciada por valores católicos e latinos. Cláusulas contratuais que penalizam a infidelidade reatualizam essa demanda por proteção da integridade afetiva e patrimonial, adaptando valores tradicionais ao contexto moderno. Os contratos exemplificam o dinamismo multicultural do Direito de Família, integrando autonomia progressista e ética conservadora.
6. Conclusão
A família brasileira evoluiu de uma instituição patriarcal e indissolúvel para um núcleo plural e afetivo. A EC 66/10, ao abolir a culpa e simplificar o divórcio, priorizou a liberdade e a dignidade individual. Contudo, essa neutralidade jurídica contrasta com demandas humanas por justiça e reparação, especialmente em uma cultura que valoriza a lealdade e a honra. Como observa Tepedino: "[...] tal diversidade exige adaptações no Direito de Família para garantir proteção equitativa a todos os arranjos - desafio que se intensifica diante da velocidade das transformações sociais" (TEPEDINO, 2004).13
Pactos pré e pós-nupciais emergem como instrumentos contemporâneos para resgatar a responsabilização moral, transformando-a em mecanismo de equidade ajustado pelas partes. Essa solução harmoniza a liberdade constitucional com a segurança jurídica necessária à proteção patrimonial e moral. Como destaca Michelle Perrot: "[A família] ainda oferece calor humano, abrigo, proteção" (PERROT, 1999, p. 90).14
Na sociedade plural do Brasil, a família contemporânea navega entre o progressismo do afeto e o conservadorismo da dignidade. Os contratos dão nome às dores das rupturas, estabelecendo reparações e reforçando que a dignidade prevalece, mesmo quando o afeto se esgota. O Direito de Família brasileiro, ao incorporar elementos multiculturais, demonstra sua capacidade de se reinventar, garantindo que o "ninho" da família persista em meio ao desatar dos "nós" tradicionais.
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1 SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 26.
2 TEPEDINO, Gustavo. O papel da culpa na separação e no divórcio. Revista da EMERJ, v. 1, n. 2, p. 32-50, 1998.
3 MADALENO, Rolf. Manual de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 143.
4 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: Teoria e Prática. 5. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2016, p. 96-97.
5 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 125-126.
6 TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Divórcio e separação após a EC n. 66/2010. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 46-47.
7 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 272.
8 CALMON, Rafael. Manual de Partilha de Bens: no divórcio e na dissolução da união estável. 5. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 97-98.
9 MADALENO, Rolf; MADALENO, Ana Carolina Carpes; MADALENO, Rafael. Fraude no Direito de Família e Sucessões. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 172-173.
10 MADALENO, Rolf; MADALENO, Ana Carolina Carpes; MADALENO, Rafael. Fraude no Direito de Família e Sucessões. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 173-174, apud ALMEIDA SANTOS, Francisco Cláudio de. O pacto antenupcial e a autonomia privada. In: FERREIRA BASTOS, Eliene; SOUSA, Asiel Henrique de (coord.). Família e jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 209.
11 VICENTE, Dário Moura. A autonomia privada e os seus diferentes significados à luz do Direito comparado. Revista de Direito Civil, v. 2, p. 277-305, 2016, p. 297-298.
12 COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: EDAMERIS, 1961, p. 68-69.
13 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
14 PERROT, Michelle. O nó e o ninho. In: História da vida privada: da Primeira Guerra aos nossos dias. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 90.
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