ADIn 7.324 e a destinação dos créditos de PIS/Cofins: Entre a segurança jurídica e a modicidade tarifária
Decisão do STF sobre créditos tributários reafirma o papel das agências reguladoras e equilibra garantias constitucionais com o interesse coletivo.
segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Atualizado às 10:02
1. Introdução
É inegável a representatividade da Abradee - Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica no cenário nacional. Consolidada como uma das mais influentes entidades do setor, sua atuação não se limita à interlocução política e técnica, mas também se projeta em relevantes embates judiciais que moldam a regulação do mercado elétrico. Assim, a defesa de princípios estruturantes do modelo de concessões, a preservação da competência regulatória da Aneel - Agência Nacional de Energia Elétrica e a busca pelo equilíbrio econômico-financeiro dos contratos têm sido pautas recorrentes em sua agenda institucional.
Nesse contexto, a ADIn 7.324, julgada pelo STF em 14/8/25, emerge como caso paradigmático, ao unir questões tributárias e regulatórias em um mesmo debate. A controvérsia, originada da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins (Tema 69 da repercussão geral), gerou vultosos créditos tributários em favor das distribuidoras de energia elétrica.
De sua feita, a lei 14.385/22 determinou que tais créditos fossem revertidos em benefício dos consumidores, por meio de dedução tarifária conduzida pela Aneel. Por sua vez, a Abradee questionou a constitucionalidade dessa destinação, levantando teses de ordem formal e material. O julgamento, portanto, colocou em tensão os princípios da segurança jurídica, do equilíbrio econômico-financeiro e da modicidade tarifária.
2. O pano de fundo: O Tema 69 e seus reflexos
O Tema 69, que consolidou a exclusão do ICMS da base do PIS/Cofins, representou um dos mais significativos julgados tributários das últimas décadas. Logo, estima-se que a repercussão econômica tenha alcançado centenas de bilhões de reais, afetando não apenas empresas do setor elétrico, mas toda a cadeia produtiva.
No caso das distribuidoras de energia, a questão adquiriu contornos peculiares. Nesse contexto, ao tratarem de concessionárias de serviço público, seus custos e receitas estão submetidos a regime tarifário regulado. Isso significa que eventual recuperação tributária não se traduz automaticamente em ganho patrimonial, mas precisa ser analisada sob o prisma da modicidade tarifária e do equilíbrio dos contratos de concessão.
Oportunamente, a edição da lei 14.385/22 buscou justamente dar resposta a esse contexto, vinculando a destinação dos créditos a uma política pública de devolução em favor dos consumidores. Todavia, tal medida foi questionada pela Abradee, sustentando uma potencial ofensa às garantias constitucionais e aos limites da legislação ordinária.
3. Os argumentos da Abradee
No bojo da ADIn 7.324, a Abradee sustentou que a norma violava tanto aspectos formais, quanto materiais da Constituição. Dentre os principais pontos levantados, destacam-se:
- Reserva de lei complementar - ao tratar de normas gerais tributárias, a lei deveria ter natureza complementar, sob pena de violação ao processo legislativo tributário;
- Segurança jurídica e direito adquirido - muitos créditos já haviam sido reconhecidos judicialmente e integrados ao patrimônio das concessionárias, de modo que sua destinação compulsória a consumidores configuraria afronta ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido (art. 5º, XXXVI, CF);
- Risco de desequilíbrio contratual - a imposição legal comprometeria a equação econômico-financeira dos contratos de concessão, contrariando o art. 175 da Carta da República;
- Efeitos retroativos - a medida alcançaria situações já consolidadas, violando a irretroatividade das leis tributárias (art. 150, III, "a", CF).
A ação, portanto, representou não apenas um embate sobre créditos tributários, mas também um debate sobre o limite entre o patrimônio das concessionárias e o interesse coletivo dos usuários.
4. A decisão do STF
O voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, acolhido pela 1ª turma, afastou os argumentos da associação. Dessa forma, sob a ótica da Corte Suprema, a lei 14.385/22 não instituiu novo tributo, mas apenas regulou política tarifária, dentro da competência do legislador ordinário.
O STF reafirmou que:
- Os créditos decorrentes do Tema 69 não são integralmente apropriáveis pelas distribuidoras, uma vez que sua atividade se encontra sujeita a regime tarifário;
- A vinculação desses valores à modicidade tarifária não ofende o direito adquirido, pois não se trata de matéria de Direito Privado, mas de serviço público regulado;
- A operacionalização da devolução permanece no âmbito da Aneel, em respeito ao princípio da separação de poderes e à técnica regulatória.
Ainda, o Tribunal assentou que a devolução deve observar deduções correspondentes a tributos incidentes e a honorários advocatícios, de modo a evitar distorções que comprometam a sustentabilidade econômica do setor.
5. Reflexões jurídicas: Entre segurança e interesse público
O julgamento da ADIn 7.324 traz reflexões relevantes para o Direito Tributário e Regulatório. Sobretudo ao tratar da tensão existente entre a segurança jurídica das concessionárias e o interesse público primário dos consumidores. O STF, ao afastar a tese de violação ao direito adquirido, reafirmou que, no âmbito de serviços públicos regulados, os créditos tributários decorrentes do Tema 69 não podem ser vistos como patrimônio privado das distribuidoras em sentido absoluto. Isso porque a atividade dessas concessionárias está juridicamente vinculada ao regime público de tarifas, de modo que eventual recuperação tributária deve ser necessariamente compatibilizada com os princípios constitucionais da modicidade tarifária e do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Sob tal perspectiva, a Corte procedeu uma releitura da noção de titularidade patrimonial, relativizando o conceito clássico de direito adquirido quando confrontado com a necessidade de garantir a universalidade e a acessibilidade do serviço público. Trata-se de um movimento que coloca o interesse público primário em posição de prevalência sobre expectativas privadas, sem, contudo, desconsiderar a proteção devida à sustentabilidade econômica do setor.
Outro aspecto digno de nota é a reafirmação do princípio da separação de poderes. Ao reconhecer que o legislador pode estabelecer diretrizes gerais de política tarifária, mas que a operacionalização concreta da devolução de créditos deve permanecer sob a responsabilidade técnica da Aneel, o Supremo preservou a lógica constitucional de equilíbrio entre os Poderes. Essa divisão de funções confere previsibilidade institucional e garante que decisões de natureza altamente especializada não sejam tomadas de forma casuística ou desprovida de embasamento técnico.
Por fim, o julgamento evidencia a aplicação prática dos princípios da eficiência, da proporcionalidade e da razoabilidade. A devolução dos créditos por via tarifária, de maneira difusa e regulada, impede o enriquecimento sem causa das distribuidoras, ao mesmo tempo em que assegura que os benefícios sejam repassados aos consumidores de forma uniforme e estável. A possibilidade de dedução de tributos incidentes e de honorários advocatícios específicos também revela uma preocupação do Tribunal, em assegurar equilíbrio e racionalidade ao processo, evitando que a medida se tornasse confiscatória ou desproporcional.
Nesse sentido, a ADIn 7.324 não apenas enfrentou um conflito normativo concreto, mas também delineou balizas interpretativas de longo alcance, reafirmando a necessidade de harmonização entre as garantias constitucionais individuais e a efetivação de políticas públicas setoriais voltadas ao interesse coletivo.
6. Impactos práticos e projeções
Os efeitos da decisão extrapolam o caso concreto. Em primeiro lugar, o julgamento estabelece precedente sobre a titularidade de créditos tributários obtidos por concessionárias de serviços públicos. Em segundo, reforça o papel das agências reguladoras como instrumentos de concretização de políticas públicas setoriais.
Além disso, a decisão tende a balizar futuras discussões sobre a destinação de créditos tributários em setores regulados, especialmente em mercados de infraestrutura (energia, telecomunicações, transporte).
Do ponto de vista das concessionárias, a decisão impõe maior previsibilidade quanto à destinação de recuperações tributárias, mas também exige planejamento jurídico-financeiro mais cauteloso. Já para os consumidores, o resultado assegura que ganhos tributários revertam, ao menos parcialmente, em benefício tarifário.
7. Conclusão
A ADIn 7.324 revela-se um julgado de densidade constitucional singular, ao articular os princípios da separação de poderes, da segurança jurídica, da eficiência administrativa e da modicidade tarifária em um mesmo contexto.
Enfim, mais do que definir o destino de créditos tributários, o STF reafirmou a lógica do regime público de concessões: a atividade das distribuidoras não se orienta apenas por interesses patrimoniais privados, mas por sua vinculação à universalidade e acessibilidade do serviço.
Assim, a decisão apresenta-se como paradigma no controle concentrado de constitucionalidade em matéria regulatório-tributária, demonstrando que a proteção das garantias individuais deve dialogar com a realização de políticas públicas de interesse coletivo. Trata-se de mais um passo na consolidação do papel das agências reguladoras no Estado Democrático de Direito, como expressão da técnica a serviço da cidadania.
Pedro Rodrigues de Oliveira Lopes
Estagiário do escritório Sérgio Murilo Braga Advogados Associados.


