Mercado de bets x Bolsa Família e BPC
Apostas on line de quota fixa, bets, recebem regras para restringir o acesso de beneficiários de programas do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Atualizado às 14:34
Em 15/11/2024, o STF havia julgado a medida cautelar pleiteada nas ADINs 7.721 e 7.723, propostas pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo e pelo Partido Solidariedade, que atacavam dispositivos da lei 14.790/23, que alterava a lei 13.756/18, e que trata das apostas esportivas de quota fixa, as denominadas "bets".
O ministro Luiz Fux, em decisão monocrática, determinara a suspensão, em todo o território nacional, de qualquer publicidade de jogos de apostas online de cota fixa direcionada a crianças e adolescentes, intimando o governo federal a cumprir imediatamente medidas de fiscalização e controle previstas na portaria 1.231/24 do Ministério da Fazenda, que regulamenta a lei das bets. Além disso, foi proferida ordem para que fossem adotadas medidas restritivas ao uso de valores provenientes de programas assistenciais, impedindo o respetivo acesso para apostas online, onde se inclui o PBF - Programa Bolsa Família e o BPC - Benefício de Prestação Continuada.
O Programa Bolsa Família paga a cifra mensal de seiscentos reais por família que detém direito ao mesmo, pode ser acrescido de cento e cinquenta reais para cada criança de até seis anos, mais cinquenta reais para cada criança e adolescente entre sete a dezessete anos, cinquenta reais para cada bebê de até seis meses e cinquenta reais para cada gestante da família.1
O BCP - Benefício de Prestação Continuada, por sua vez, é um direito previsto pela LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social (lei 8.742/1993) que visa garantir um amparo financeiro a pessoas em situação de vulnerabilidade social e que não exige contribuições previdenciárias. São abrangidos por ele pessoas com deficiência e idosos com 65 anos ou mais que não possuem meios de prover a própria manutenção e cuja renda familiar per capita seja inferior a um quarto do salário mínimo. O valor pago pelo BCP é de um salário mínimo mensal. No caso de condição de deficiência, esta deve ser comprovada por meio de avaliação médica e perícia do INSS - Instituto Nacional do Seguro Social.
No julgamento pelo plenário do STF, acerca das Adins referidas, restou confirmada a decisão do ministro Luiz Fux. Como resultado, foi assegurado que a regulamentação elaborada pelo Poder Executivo Federal através da portaria SPA/MF 1.231, de 31 de julho de 2024 tivesse aplicação imediata, e não somente a partir de partir de 1º de janeiro de 2025. Restou determinado também que fossem implementadas medidas imediatas de proteção especial que impedissem a participação nas apostas de quota fixa com recursos provenientes de programas sociais e assistenciais como é o caso do Bolsa Família, do BCP - Benefício de Prestação Continuada2, até a conclusão do julgamento de mérito das referidas ações diretas de inconstitucionalidade.
Na época, havia um estudo do Banco Central, apresentado em setembro de 2024, indicando que as bets receberam 3 bilhões de reais de beneficiários do programa Bolsa Família em agosto de 20243. Tal situação provocou uma consternação coletiva muito grande, pois indicaria que a finalidade do programa não estava sendo observada, o que tornava o próprio programa questionável quanto a sua utilidade. E isso motivou o ingresso das Adins destacadas, e tem preocupado uma série de setores, em especial, o comércio, que via as vendas diminuírem, perdendo espaço para apostas em bets. E essa preocupação de mal uso de um benefício alimentar, que já é pequeno, com apostas on line, motivou a reação do STF, cobrando efetiva fiscalização do Poder Executivo.
Em 1 de outubro de 2025, mais de um ano depois, a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda publicou a portaria SPA/MF 2.217/25 e a IN SPA/MF 22/25, que regulamentam a restrição da participação de beneficiários do PBF - Programa Bolsa Família e do BPC - Benefício de Prestação Continuada às apostas em bets, criando restrições à participação desses beneficiários nesse mercado de quota fixa.
Nesse sentido, foi criada uma base de dados com os beneficiários do PBF e do BPC, "que deve ser consultada pelos agentes operadores de apostas em momentos de controle, no cadastro dos usuários e nos logins. As empresas de apostas deverão realizar também consultas periódicas ao Sigap - Sistema de Gestão de Apostas, utilizando o número do CPF - Cadastro de Pessoas Físicas para verificar se o usuário consta da base de dados de beneficiários desses programas sociais. Quando constar, o cadastro deve ser bloqueado, a conta encerrada e eventuais valores depositados devolvidos ao titular". A restrição gerada faz parte de um sistema maior, denominado Módulo de Impedidos, que inclui outras restrições impostas pela lei 14.790/23.4
Em verdade, bets devem servir como aspecto de lazer, e não são, de forma alguma uma espécie de investimento a quem aposta. Contudo, os benefícios Bolsa Família e BCP não tem na sua composição a questão do lazer, pois são subsistenciais, são voltados a evitar que pessoas empobrecidas, com filhos, sejam submetidas a uma miséria total, ou pessoas cuja idade e doença promovam o mesmo resultado negativo. Seu uso em apostas on line, loterias estatais, bebidas alcóolicas, drogas etc., representam o desvirtuamento do mesmo, e um gasto ineficaz.
Contudo, cremos que, se um sistema é feito para tentar barrar o acesso desses beneficiários a apostas em bets, isso deveria ser feito também, e com mais intensidade ainda, com loterias estatais, sejam da União, Estados ou Municípios. O mesmo Estado que concede o benefício alimentar é o mesmo que vende aposta de jogo de azar ao beneficiário? Se o nome é jogo de azar, isso significa que ganhar é a exceção. Apostar é o lazer e o objetivo do jogo, para quem disponha de recursos para assim agir, e não para quem possa ser absorvido pelo jogo patológico.
No CDC brasileiro, lei 8.078/1990, no inciso IV do art. 39, consta que é prática abusiva prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços, um cenário de nulidade. A pessoa beneficiária de Bolsa Família e BCP, no mínimo, encontra-se em estado de vulnerabilidade social e econômica, e por isso merece cuidados melhores aos apelos gerais de consumo.
O mundo atual vicia as pessoas naturalmente na dopamina advinda do uso de telas, com smartphones e tablets, onde algoritmos tema missão contínua de buscar consumidores a produtos e serviços variados, entre eles as Bets. Aposta em jogo faz da história humana, o problema é a quantidade que isso atinge dentro do mundo digitalizado, onde as pessoas passam parte da vida diária sob o feitiço de telas, e onde vão encontrar os milhares de youtubers e influencers contratados para também divulgar e convocar ao jogo. E alguns destes tem por missão enaltecer o jogo como forma de obtenção de recursos econômicos e sucesso, o que não é verdade. São muitos apelos capazes de fragilizar ainda mais sujeitos que já possuem deficiência de formação educacional formal e convivem em estado de pobreza contínua. Ou seja, é essencial o bloqueio efetivado. Do contrário, isso aumenta o rol de sujeitos afetados pela epidemia de superendividamento do brasileiro, que se criou nos últimos anos, e deflagrada pelo fácil acesso ao crédito irresponsável.
No que tange à IN 22/25 da SPA/MF5 dispôs obre os procedimentos a serem observados pelos agentes operadores de apostas de quota fixa para impedir tanto o cadastro ou o uso dos sistemas de apostas por pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada. Em caso de descumprimento pelo operador, este se sujeita a sanções variadas.
Os fornecedores do mercado deverão realizar obrigatoriamente consultas ao SIGAP - Sistema de Gestão de Apostas quando o usuário tentar abrir cadastro efetivar o primeiro login do dia. Além isso, esses fornecedores deverão realizar consultas ao SIGAP - Sistema de Gestão de Apostas, a cada quinze dias, no mínimo, de todos os usuários cadastrados em seus sistemas de apostas, com o objetivo de identificar aqueles que eventualmente tenham ingressado na base de dados de pessoa beneficiária dos programas sociais indicados. E, uma vez feita a consulta, o SIGAP retornará a consulta indicando se o sujeito é do tipo "Impedido - Programa Social", ou é "Não Impedido". Está última resposta ocorrerá quando o número do CPF - Cadastro de Pessoas Físicas não constar da base de dados do Módulo de Impedidos.
Em caso de impedimento, o fornecedor, dito operador do sistema, antes de efetuar o encerramento da conta do usuário, deve comunicar ele do motivo, por meio de e-mail, aplicativos de mensagens, SMS ou outros meios disponíveis, no prazo máximo de um dia, contado da data da consulta, devendo informar ao usuário a possibilidade de retirada voluntária dos recursos de sua titularidade existentes na conta, no prazo de dois dias. Se o usuário impedido não realizar a retirada dos recursos existentes em sua conta, o agente operador de apostas deve, após o encerramento da conta, efetuar a devolução, no prazo de dois dias, por meio da remessa dos recursos para uma das contas de depósito ou de pagamento cadastradas no sistema de apostas e mantidas em instituição financeira ou de pagamento autorizada pelo Banco Central do Brasil. Passados cento e oitenta dias contados da data da comunicação de devolução de valores ao usuário impedido, sem a retirada destes, a cifra será revertida para o Fies - Fundo de Financiamento Estudantil e o Funcap - Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil.
Em que pesem os esforços conjugados de Poder Judiciário e Executivo em impedir o acesso de beneficiários de programas assistências a apostas em bets, talvez isso não sejam uma medida com efetividade real. Existem 188 Bets autorizadas a funcionar no Brasil, até outubro de 20256. Essas estão submetidas à fiscalização e regulação da Secretaria Nacional de Prêmios e Apostas, e terão que cumprir as metas de impedir acesso os beneficiários de Bolsa Família e BCP. Porém, pesquisa do primeiro semestre de 2025, que serviu de base a estudo elaborado pela LCA Consultores e apoiado pelo IBJR - Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, aponta que de 41% a 51% do mercado brasileiro de apostas online ainda estejam na ilegalidade. Além disto, a pesquisa informa que seis em cada dez apostadores dizem ter usado bets ilegais, somente em 2025, sendo que 78% do entrevistados afirma ser difícil distinguir quem é ou não legalizado7. Ou seja, o que impede um beneficiário de sistema assistencial impedido de usar Bets legalizadas de usar bets ilegais?
É bastante marcante a ausência estatal no controle de bets ilegais, cujo número em funcionamento no Brasil pode até superar aquelas que pagam impostas, que que submetem à regulação e fiscalização. Essa ausência estatal é um desistímulo à concorrência. Se o ilegal transita normalmente, sem fiscalização e sem punição, qual a vantagem daquele que esforça para andar nos trilhos da legalidade, recolhendo impostos? Qual é o estímulo ao bom cumpridor da lei, se o Brasil acaba garantido mais benefícios a quem atua à margem da lei? De nada adiantará barrar o "impedido" de acessar o mercado legal de bets, se o mercado ilegal talvez seja até maior em opções. Ou seja, ou a medida de impedimento de acesso de beneficiários assistenciais vem acompanhada de um programa de fiscalização efetivo de bets ilegais, ou estaremos diante de mais uma lei para "inglês ver", pois existe, atinge os legalizados, mas na prática, não funciona. E esse estado de coisas acaba punindo, por vias diretas, as empresas que atuam na conformidade normativa, que vem o mercado sendo absorvido pelas bets ilegais. E por último, coloca-se a pergunta se, o sistema de apostas estatais também observará a restrição de uso pelos beneficiários acima indicados, ou se essa medida atingirá somente o setor privado, gerando, a nosso ver, uma questionável quebra de isonomia.
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1 Disponível em: https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/qual-o-valor-atual-do-bolsa-familia-veja-a-evolucao-do-beneficio-nos-ultimos-anos/. Acesso em 3/10/25.
2 O Benefício de Prestação Continuada - BPC é previsto na Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS,constituindo-se de um salário mínimo mensal mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade que tenha impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo, que a impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade.
3 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2024/09/25/beneficiarios-do-bolsa-familia-enviaram-r-3-bi-para-bets-em-agosto-segundo-o-bc#:~:text=BANCO%20CENTRAL%20REVELA%20QUE%20EM,V%C3%8DCIO%20ASSOCIADOS%20%C3%80S%20CHAMADAS%20BETS. Acesso em 3/10/25.
4 Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/outubro/spa-publica-regra-para-cumprir-decisao-do-stf-de-restringir-uso-de-beneficios-sociais-em-apostas. Acesso em 3/10/25.
5 Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-spa-/mf-n-22-de-30-de-setembro-de-2025-659602369. Acesso em 4/10/25.
6 Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/composicao/orgaos/secretaria-de-premios-e-apostas/lista-de-empresas. Acesso em 5/10/25.
7 Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-06/seis-em-cada-dez-apostadores-usaram-bets-ilegais-este-ano. Acesso em 5/10/25.


