Poluidores por procuração e a responsabilidade ambiental estatal-corporativa
Poluidores por procuração: estudo revela como Estados lucram com danos ambientais via corporações, explorando fragilidades legais e evitando responsabilização direta em cadeias globais de produção.
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
Atualizado às 11:03
Introdução
A globalização das cadeias de produção intensificou a distância entre os centros de decisão econômica e os locais de extração de recursos. Nesse contexto, corporações multinacionais, em sua maioria sediadas no hemisfério norte e frequentemente apoiadas ou parcialmente controladas por Estados, expandem suas operações em países do hemisfério sul onde legislações ambientais tendem a ser mais frágeis e os mecanismos de fiscalização menos eficazes (van Wingerde & Lord, 2019).
O estudo em questão busca analisar essa dinâmica. O caso da Norsk Hydro, mineradora cujo acionista majoritário é o Estado norueguês, na cidade de Barcarena, Pará, ilustra este processo. A refinaria Alunorte, da qual a companhia norueguesa é a acionista majoritária, tem sido apontada pelas autoridades locais como responsável por repetidos episódios de contaminação ambiental, enquanto autoridades da Noruega procuram se eximir do seu envolvimento no gerenciamento de suas atividades (Carmo, 2019; Comissão Externa, 2018; Comissão Parlamentar de Inquérito, 2018).
Este artigo consiste em um estudo de caso fundamentado na teoria dos crimes estatais-corporativos (state-corporate crime) (Kramer et al., 2002) e na criminologia verde do sul (Goyes, 2023), refletindo sobre a necessidade de mecanismos de responsabilização que considerem a participação dos Estados nas cadeias globais de produção (Palazzo et al., 2025). O foco recai sobre o envolvimento do Estado norueguês nas atividades da mineradora Norsk Hydro em Barcarena, Pará, considerando o período de 1967 a 2024.
Neste cenário, propõe-se o conceito de polluter by proxy - ou poluidor por procuração - para designar situações em que Estados se beneficiam de múltiplas formas de atividades poluentes realizadas por empresas sob sua influência, mas que permanecem isentos de responsabilidade pelos danos ocasionados (Palazzo et al., 2025). O caso da Norsk Hydro no Brasil, com participação estatal norueguesa, revela como interesses públicos e privados se entrelaçam em cadeias produtivas globais, gerando assimetrias de responsabilidade e controle.
O artigo parte de um enquadramento teórico baseado na teoria do crime estatal-corporativo e na criminologia verde do sul, o qual orientará a análise proposta. Em seguida, são brevemente discutidas as condições históricas, políticas e estruturais que contribuíram para a vulnerabilidade do Brasil diante da exploração estrangeira de seus recursos naturais. A análise também contempla a atuação política e econômica do Estado norueguês no Brasil, evidenciando como esse envolvimento favoreceu a expansão de empresas norueguesas no país. Nesse contexto, examina-se o caso da Norsk Hydro e os impactos de suas atividades em Barcarena, ressaltando a convergência entre interesses públicos e privados. Por fim, apresenta-se o conceito de polluter by proxy como uma chave interpretativa para compreender as formas de externalização de danos ambientais e suas implicações para futuros mecanismos de responsabilização.
Referencial teórico
Para compreender essa interação entre atores estatais e corporativos, este artigo se baseará primordialmente na teoria do crime estatal-corporativo (Kramer et al., 2002). Esta teoria descreve como a convergência de interesses entre empresas e governos pode resultar em práticas ilegais ou socialmente danosas. De acordo com os seus autores, "crimes estatais-corporativos compreendem ações ilegais ou socialmente prejudiciais que ocorrem quando uma ou mais instituições de governança política buscam alcançar um objetivo em cooperação direta com uma ou mais instituições de produção e distribuição econômica" (Kramer et al., 2002, p. 270).
Além disso, a literatura sobre crimes estatais-corporativos ainda será combinada com elementos da criminologia verde do sul (Goyes, 2019, 2023) para esclarecer, de uma perspectiva situada (Swaaningen, 2021), como as operações da mineradora têm sido conduzidas no Brasil. Ao incorporar a criminologia verde do sul (Goyes, 2023), amplia-se a análise para os legados coloniais e as assimetrias norte-sul que sustentam tais práticas.
Colonialismo, neocolonialismo e a exploração dos recursos naturais
A história da exploração de recursos naturais no Brasil é marcada por práticas coloniais e neocoloniais, nas quais países do hemisfério norte buscaram oportunidades econômicas e políticas em detrimento das populações locais e do meio ambiente (Fausto, 1995; Mota & Lopez, 2015).
Desde a colonização portuguesa, marcada pela extração intensa e pela violência contra povos indígenas, o país foi construído como fornecedor de commodities. No século XIX, os Acordos de Washington de 1942 resultaram na criação da Companhia Vale do Rio Doce e a sua privatização em 1997 abriu espaço a multinacionais como a Norsk Hydro ganhassem maior protagonismo (Mota & Lopez, 2015; Vale, 2012). Este percurso histórico revela continuidades coloniais que estruturam motivações, oportunidades e assimetrias de poder, sustentando práticas ambientais nocivas no presente.
Relações econômicas entre Noruega e Brasil
As relações entre Noruega e Brasil, inicialmente restritas ao comércio de bacalhau e café no século XIX, transformaram-se no século XX, quando investimentos noruegueses passaram a focar em petróleo, gás, fertilizantes e alumínio, alcançando US$ 32,5 bilhões em 2022 (Regjeringen, 2022). O regime militar brasileiro (1964-1985), marcado por nacionalismo e exploração intensiva da Amazônia, abriu espaço para empresas estrangeiras. Nesse contexto, destacou-se Erling Lorentzen, empresário norueguês ligado à família real, que garantiu interesses da Noruega em empreendimentos como Borregard e Aracruz Celulose. A sua influência possibilitou, ainda, a visita da realeza norueguesa ao Brasil em 1967, durante o regime militar, conferindo reconhecimento ao governo e abrindo portas para empreendimentos noruegueses no país (Gomes & Overbeek, 2011; Pettersen, 2016).
Atividades mineradoras norueguesas no Brasil
No início do século XX, os Acordos de Washington (1942) possibilitaram a criação da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Em 1971, a descoberta de bauxita no rio Trombetas levou à formação da joint venture MRN - Mineração Rio do Norte, com participação da CVRD, Alcan, ÅSV e Norsk Hydro. Apesar das críticas do Parlamento norueguês quanto ao deslocamento de povos indígenas e danos ecológicos, a Norsk Hydro manteve sua presença (Akerø et al., 1979).
Nos anos 1970, a CVRD lançou projetos que originaram a Albras e a Alunorte em Barcarena, iniciadas apenas em 1995. A privatização da CVRD em 1997 abriu espaço para que a Norsk Hydro se tornasse, nos anos 2000, a segunda maior acionista da Alunorte e, em 2010, sua controladora majoritária com 91% das ações, aprovada pelo Parlamento norueguês (Siqueira, 2002). Celebrada como marco estratégico, a Alunorte tornou-se a maior refinaria de alumina do mundo fora da China.
No caso, a produção do alumínio em Barcarena ocorre por um processo industrial conhecido como "processo Bayer", o qual se inicia com a mineração da bauxita, seguida da extração da alumina na refinaria Alunorte e, posteriormente, da produção de alumínio na metalúrgica Albras (Norsk Hydro, n.d.). Esse procedimento gera resíduos tóxicos de cor avermelhada, com alta alcalinidade, os quais são armazenados em barragens de rejeitos (Lemos & Pimentel, 2020).
Incidentes ambientais
Em 2003, surgiram os primeiros registros de vazamentos de lama tóxica, provocados por rompimento de tubulações e descargas irregulares em áreas agrícolas e corpos hídricos próximos, com mortalidade de peixes e crustáceos (Comissão Parlamentar de Inquérito, 2018; Lemos & Pimentel, 2020).
Em 2009, a situação se agravou quando a divisão ambiental da polícia do Pará iniciou investigação sobre o despejo de efluentes no rio Murucupi constatando alta toxicidade, mortalidade de peixes, contaminação de lençóis freáticos e impactos sobre a fauna e flora locais. A investigação identificou falhas na infraestrutura de contenção, com estruturas subdimensionadas e descargas diretas de resíduos químicos, atribuídas à busca por vantagens econômicas da companhia, sem consideração pelos direitos ambientais e sociais da população (TRF-1, 2019). A empresa foi condenada por crimes ambientais em 2024. Esta decisão ainda pende de recurso.
Em 2018, fortes chuvas provocaram novos incidentes, agravados pelo uso de tubulações consideradas pelas autoridades como clandestinas para escoamento de rejeitos no rio Murucupi (TRF-1, 2018; Comissão Parlamentar de Inquérito, 2018). Análises do Instituto Evandro Chagas apontaram a contaminação, evidenciada por águas avermelhadas e alteração de volume e cor de cursos d'água próximos às comunidades Bom Futuro e Vila Nova. As comunidades quilombolas relataram doenças, mortalidade de animais e prejuízos à subsistência. Inicialmente, a companhia negou responsabilidade, culpando o excesso de chuvas e minimizando o uso das tubulações (Globo, 2018b; DN, 2018). Na sequência, a justiça brasileira suspendeu as operações até a implementação de medidas corretivas, incluindo fornecimento de água e serviços essenciais às comunidades, reformas no sistema de drenagem e pagamento de multas que somaram R$33.370.498,00 (MPF, 2019).
Em outro questão, em 2024 a companhia foi também condenada pela poluição causada por seu processo industrial. Reconheceu-se que a poluição era inquestionável, sobretudo quando comparada com tecnologias empregadas pela empresa na Noruega, tendo sido, então, determinada a implementação de tecnologias ambientalmente mais eficientes e a compensação de R$50 milhões pelos danos causados, além da imposição de multa diária de R$200 mil em caso de descumprimento (TJ/PA, 2019). Esta decisão também está sujeita a recurso.
Crimes Estatais-Corporativos e as atividades poluidoras
Com base no modelo de crime estatal-corporativo de Kramer et al. (2002), os incidentes na refinaria Alunorte refletem diversos catalisadores para ação propostos pela teoria em questão. A empresa buscava garantir acesso à bauxita para sustentar a produção de alumínio, inserida em contexto histórico de exploração econômica e pressões neoliberais, com desrespeito a direitos ambientais e comunidades locais. O legado colonial e a fraca fiscalização no Brasil criaram oportunidades para práticas nocivas, reforçadas pela inicial leniência do regime militar na região no início das atividades e pela ausência de controle internacional efetivo. A mineradora utilizou essa margem para expandir operações, enquanto a percepção pública e as pressões legais recentes revelam os impactos socioambientais e as assimetrias entre operações na Noruega e no Brasil, evidenciando a exploração estrutural de vulnerabilidades legais e ambientais.
Discussão: o conceito de "polluter by proxy" e sua relevância
A participação do Estado norueguês como acionista majoritário da Norsk Hydro demonstra como interesses públicos e privados se entrelaçam em cadeias produtivas globais, permitindo a externalização de danos ambientais sem implicações diretas para o Estado.
A atuação da Norsk Hydro em Barcarena correspondeu a elementos que são apresentados pela teoria dos crimes estatais-corporativos. O conceito de polluter by proxy amplia este debate, incluindo não apenas os agentes diretos da poluição, mas também os beneficiários indiretos, como Estados acionistas ou financiadores. Trata-se de um conceito que se aproxima do fenômeno das proxy wars, no qual terceiros executam ações em contextos beligerantes, em benefício de um terceiro, mantendo este último afastado de responsabilidade direta. Nessa linha, o termo polluter by proxy (poluidor por procuração) refere-se a situações em que atores estatais ou não estatais se beneficiam (financeira, política, estratégica etc.) de afiliados, como acionistas, filiais, financiadores, lobistas, empresas terceirizadas, contratantes, fundos soberanos e outros que estejam diretamente envolvidos em empreendimentos prejudiciais, enquanto permanecem protegidos por estruturas legais ou corporativas que impedem a devida responsabilização (Palazzo et al., 2025). No contexto das cadeias globais de produção, essa dinâmica é potencializada pela fragmentação das operações, dispersão geográfica dos danos e complexidade das estruturas de propriedade e gestão. Estados podem lucrar com dividendos, impostos e prestígio internacional, enquanto empresas operam em países com legislações ambientais mais frágeis, explorando vulnerabilidades locais para maximizar lucros.
A vulnerabilidade institucional do Brasil, marcada pelo legado colonial e pela permissividade do regime militar, criou oportunidades para exploração econômica com fiscalização limitada. O caso de Barcarena não apenas exemplifica a externalização de danos ambientais, mas também evidencia a convergência entre interesses estatais e corporativos em contextos globais desiguais, reforçando a necessidade de mecanismos de responsabilização que considerem a participação indireta de Estados em crimes corporativos ambientais e a dinâmica do polluter by proxy.
Considerações finais
O conceito de polluter by proxy é fundamental para compreender as novas formas de responsabilidade ambiental nas cadeias globais de produção. O caso da Norsk Hydro no Brasil ilustra como Estados podem se beneficiar de danos ambientais perpetrados por empresas sob sua influência, mantendo-se distantes da responsabilização direta. Para enfrentar os desafios da justiça ambiental e climática, é necessário avançar em mecanismos de responsabilização que transcendam fronteiras nacionais e estruturas corporativas, promovendo maior transparência, controle social e reparação efetiva dos danos causados.
A responsabilização estatal em cadeias globais de produção exige uma abordagem integrada, que considere os contextos históricos, estruturais e jurídicos, bem como os interesses econômicos e políticos envolvidos. O modelo polluter by proxy contribui para o debate sobre justiça ambiental, destacando a necessidade de políticas públicas e mecanismos regulatórios que promovam a responsabilização efetiva de Estados e empresas por danos ambientais transnacionais.
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Referências
Goyes, D. R. (2023). Southern green criminology: Fundamental concepts. In D. R. Goyes (Ed.), Green crime in the Global South: Essays on Southern green criminology (pp. 1-5). Palgrave Macmillan
Kramer, R. C., Michalowski, R. J., & Kauzlarich, D. (2002). The origins and development of the concept and theory of state-corporate crime. Crime & Delinquency, 48(2), 263-282. https://doi.org/10.1177/0011128702048002005
Palazzo, F. P., Bisschop, L., & Hale Hendlin, Y. (2025). Polluter by Proxy: Norwegian Environmentally Harmful Mining Activities in Brazil as State-Corporate Crime. International Journal for Crime, Justice and Social Democracy. https://doi.org/10.5204/ijcjsd.3880




