MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Deságio abusivo: Quando o plano de recuperação vira falência disfarçada

Deságio abusivo: Quando o plano de recuperação vira falência disfarçada

O recorde de recuperações judiciais em 2025 expõe a fragilidade das empresas e o impacto dos deságios extremos, que transformam a reestruturação em moratória disfarçada.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Atualizado em 7 de outubro de 2025 14:41

O ambiente de crédito corporativo no Brasil vive um ciclo de judicialização recorde em razão da crise vivida pelas empresas em 2024, fechando com 2.2 mil pedidos de recuperação judicial, o maior volume da série histórica, alta de 61,8% sobre 2023, segundo a Serasa Experian1.

E é perceptível que o ritmo seguiu pressionado no início de 2025, com picos mensais elevados e manutenção do patamar de pedidos, indicando que a recuperação judicial continua sendo o principal "porto de abrigo" para empresas em estresse financeiro2.

Por certo, esse crescimento convive com um desfecho menos animador quando olhamos quem, de fato, sai da RJ "em pé", pois existem estudos mostrando que apenas 1 em cada 4 empresas sobrevive após pedir RJ (amostra 2005-2014, Serasa/TMA Brasil)3, sinalizando que parte relevante dos casos revela insolvência estrutural, não uma crise superável.

Já os dados mais recentes do Monitor RGF reforçam que no 2º trimestre de 2025, 29% das companhias que encerraram a RJ faliram - maior patamar desde o início da série do indicador -, ao mesmo tempo em que o estoque de processos ativos atingiu o maior nível desde 2023.

Importante, contudo, reconhecer que hoje vê-se mais empresas que cumprem os planos do que no período pré-pandêmico.

Mas onde entra o deságio?

Na prática forense percebe-se que cortes relevantes de dívida são regra, não exceção, sendo este um dos pontos de maior divergência e prejuízo para os credores.

O Observatório da Insolvência (ABJ), analisando planos por classe de crédito, encontrou deságio médio de 47,2% para credores com garantia real e previsão de deságio em 44,3% dos planos dessa classe, números que ajudam a dimensionar o padrão de sacrifício exigido dos credores, ainda que variando por setor, porte e desenho do plano4.

Contudo, falta no Brasil uma estatística pública consolidada que quantifique a frequência de deságios "extremos" (maior ou igual 90%) por plano/classe e por ciclo econômico, pois o que temos são sinais qualitativos robustos, quais sejam, (i) decisões mapeadas pela doutrina e pela imprensa jurídica criticando planos irrecuperáveis (com deságios altíssimos, carências longas e juros irrisórios), e (ii) precedentes exemplares - como o da 4ª turma do STJ, que afastou abuso no voto contrário de um banco, a um plano que reduzia em 90% seu crédito, reconhecendo que o Judiciário pode coibir cláusulas ilegais e que os credores não precisam chancelar propostas economicamente inviáveis5.

Em resumo, o volume recorde de RJs, a taxa relevante de insucesso pós-processo e o padrão disseminado de deságios indicam que muitos casos não traduzem reestruturação genuína, mas moratória privada, especialmente quando o deságio se aproxima ou ultrapassa 90%, transferindo-se quase integralmente o custo da crise ao credor e distorcendo a finalidade do art. 47 da LRF (preservar a empresa viável)6.

E nesse cenário, os departamentos financeiros e jurídicos precisam de governança de voto e estratégia contenciosa/negocial para barrar planos inviáveis e, quando necessário, postular a falência como solução mais transparente e previsível.

Até porque, um deságio de 90% em diante transforma a recuperação em uma falência disfarçada, em que o credor é forçado a aceitar condições inviáveis, com impacto direto no seu fluxo de caixa e nos indicadores financeiros da sua empresa.

Por que isso importa para o financeiro?

Ora, quando um plano de recuperação traz deságio muito alto (ex.: 90%) e prazos longos, o impacto no financeiro é imediato.

Do lado contábil, as regras exigem registrar perdas esperadas nos recebíveis, ou seja, se a empresa devedora diz que vai pagar só uma fração do que deve, a maior parte desse crédito vira provisão no resultado e isso reduz lucro e patrimônio, bem como pode exigir explicações à auditoria e aos sócios/investidores.

No caixa, o problema é duplo, pois  além de pagar menos, o devedor normalmente paga bem mais tarde e, muitas vezes, com juros baixos, que se quer compensam as perdas de inflação.

Somando essas três coisas (deságio + prazo + juros baixos), o valor presente do que o credor tem a receber cai muito e, a projeção de entrada de dinheiro fica fraca, exigindo do financeiro a revisão de metas e compromissos.

Ainda merece destaque o ponto da negociação, pois se o credor aceita um plano ruim, depois fica "amarrado" a ele, por isso é importante propor objeção técnica, voto contrário e manifestação para barrar judicialmente cláusulas ilegais.

Em alguns casos, é melhor rejeitar um plano inviável e trabalhar alternativas (inclusive falência, quando ela oferece mais transparência e chance real de apuração de ativos) do que "embarcar" numa promessa de pagamento que não para de pé.

Sob o ponto de vista do "efeito carteira", tem-se que se vários clientes importantes entram em recuperação com deságios pesados, o risco de efeito cascata aumenta e a empresa passa a conviver com mais provisões, menos caixa e pressão com bancos e investidores.

E ainda, quanto ao aspecto tributário, importante lembrar que reconhecer perda na contabilidade não significa que ela já é dedutível no IRPJ/CSLL, pois há regras específicas que interferem no que pode ser deduzido e quando.

Mas o que o credor pode fazer?

Quando o plano chega com deságio extremo, prazos longos e remuneração irrisória, o financeiro e o jurídico não podem tratar a votação como um ato "protocolar", havendo um roteiro jurídico-técnico que aumenta muito a chance de barrar propostas inviáveis e, se preciso, virar a chave para uma solução mais transparente (inclusive a falência).

O primeiro passo é apresentar objeção por escrito, mostrando a inviabilidade econômica do plano (valor presente, fluxo de caixa, taxa de recuperação, supressão de garantias, carências descoladas da geração de caixa etc.).

E para tanto, a lei concede 30 dias para objetar o plano a contar da publicação da relação de credores e, havendo objeção, o juiz convoca a AGC para que os credores deliberarem o plano.

Na AGC, o voto deve seguir a governança da classe, podendo haver aprovação por "cram down" se atendidos os requisitos do art. 58, §1º da lei7, motivo pelo qual a tese técnica precisa estar bem documentada desde já.

Nesse sentido, importante organizar um bloco com bancos, fundos e fornecedores relevantes para fechar uma linha comum de objeções e estruturar votos por classe, mirando quóruns previstos na lei, pois essa coordenação é decisiva se houver tentativa de cram down, já que sem preencher cumulativamente os requisitos legais, o juiz não pode impor um plano rejeitado.

E, mesmo se aprovado, plano ilegal não se homologa.

O STJ já bem delimitou que o juiz não reavalia conveniência econômica, mas afasta cláusulas ilegais e abusos (ex.: supressões de garantias sem base legal, ofensa à isonomia de classes, disposições incompatíveis com normas de ordem pública)8.

Quanto ao receio de "abuso do voto" por parte de credores financeiros, vale dizer que em 16/4/2024, a 4ª turma do STJ reafirmou que não há abuso quando um credor vota contra plano que reduz em 90% seu crédito, ao contrário, o voto contrário é legítimo e pode até ensejar a convocação de nova AGC para um plano viável9.

Além disso, a reforma da LRF (lei 14.112/20) abriu um flanco poderoso, pois os próprios credores podem apresentar plano substitutivo em duas hipóteses: (a) se o plano do devedor for rejeitado, a AGC pode, na hora, deliberar conceder 30 dias para proposta alternativa dos credores (aprovada por mais da metade dos créditos presentes); e (b) se o stay period esgotar sem deliberação, os credores podem propor plano alternativo, com prazos e efeitos específicos10.

Já o conteúdo do plano de credores pode incluir, por exemplo, conversão de dívida em capital e mudança de controle, assegurado o direito de retirada ao sócio do devedor e há prazos para votação/encerramento da AGC, pois se o plano alternativo não for apresentado ou não for aprovado, a lei prevê convolação em falência.

Por fim, em casos extremos, em que o plano é uma moratória privada e não há perspectiva real de soerguimento, pedir a falência pode ser mais racional do que alongar um processo inviável.

Até porque, a lei de recuperação judicial e falências é clara: durante a recuperação, o juiz decretará a falência se (a) o plano não for apresentado; (b) o plano for rejeitado; ou (c) houver descumprimento de obrigação assumida no plano, entre outras hipóteses.

Vale também lembrar que após o biênio de fiscalização, qualquer credor pode, executar especificamente ou requerer a falência com base no art. 94 da lei11, se a falência oferecer mais transparência, fiscalização e possibilidade de responsabilização por atos que prejudiquem credores.

Mas como o credor escolhe o caminho a seguir?

Na prática, importante fazer um estudo comparativo entre: (A) rejeitar e reabrir negociação; (B) articular e votar um plano alternativo de credores; e (C) pedir a falência.

Para cada cenário, deve-se projetar valor presente, prazo de recebimento, riscos de execução e reflexos contábeis/fiscais e, se o plano do devedor não fechar a conta nem com condicionantes (garantias, indicadores de desempenho, penalidades por descumprimento), a falência ou o plano alternativo tendem a maximizar valor, ou ao menos, evitar que um mau plano seja chancelado por inércia12.

Quando a falência é mais racional do que um plano inviável?

Na prática forense é comum haver resistência do financeiro em requerer a falência, pois paira a percepção de que "na falência ninguém recebe", mas nem sempre é assim.

Existem contextos em que a falência maximiza valor esperado (ou, no mínimo, evita que ele continue sendo destruído por um plano irreal) e há três razões técnicas que explicam isso:

1) Ferramentas mais fortes para localizar e trazer de volta ativos (inclusive os "ocultos"):

Na falência, o devedor e seus representantes ficam sujeitos a deveres legais rígidos, tais como apresentar livros e documentos, manter-se à disposição do juízo, colaborar com a administração da massa, entre outros e, o administrador judicial tem mandato amplo para examinar escrituração, apurar causas da insolvência e relatar indícios de ilícitos, havendo um arsenal próprio de clawback: i) a ineficácia objetiva de atos típicos praticados no período suspeito, que dispensa prova de fraude e; ii) a ação revocatória falimentar, para desconstituir negócios que prejudicaram credores, com prazo decadencial e legitimidade concorrente (massa, credores, MP), o que na prática aumenta a chance de reconstituir ativo que teria escoado antes do pedido.

2) Responsabilização pessoal de administradores e sócios, quando couber:

A falência não é "terra de ninguém" e o art. 82 da lei13 permite apurar, no próprio juízo falimentar, a responsabilidade de administradores, controladores e sócios de responsabilidade limitada por atos culposos ou dolosos que tenham lesado a sociedade e os credores, inclusive com desconsideração da personalidade jurídica, quando preenchidos os requisitos legais e assim, em cenário de abuso ou fraude, a falência abre uma via concreta de ressarcimento contra quem gerou o dano.

3) Previsibilidade e isonomia de tratamento entre credores:

Planos ruins costumam "escolher vencedores" e diluir demais a classe quirografária, já a falência, ao contrário, ordena o pagamento por leis de preferência, o que reduz espaço para discricionariedades negociadas que distorçam o resultado econômico. Assim, em termos de governança, isso dá maior previsibilidade e o credor consegue projetar cenários com base na classificação do seu crédito, no cronograma de realização de ativos e nos relatórios do administrador judicial.

Quais são os sinais de alerta para preferir a falência?

  • Deságio (maior ou igual 90-95% + carência longa e juros abaixo do custo de capital;
  • Supressão ou substituição de garantias sem equivalência econômica;
  • Projeções inverossímeis e ausência de laudo de viabilidade sólido;
  • Falta de regras de desempenho e de gatilhos (vencimento antecipado, venda mandatória de UPI etc.);
  • Pagamentos a partes relacionadas ou conflitos de interesse;
  • Sinais de esvaziamento patrimonial ou de favorecimento seletivo de credores;
  • Plano que dilui demais a classe quirografária sem contrapartidas reais.

Conclusão

Deságio abusivo não é reestruturação, é na maioria dos casos, moratória privada às custas dos credores.

Dessa forma, quando deságio se aproxima de 90% ou mais, somado a carências longas e juros abaixo do custo de capital, o plano deixa de cumprir o art. 47 da lei (preservar empresa viável) e passa a transferir integralmente o risco para quem financiou a atividade no passado.

Para os departamentos financeiros, o caminho racional é tratar a RJ como decisão de investimento e comparar o valor presente do plano do devedor com o plano alternativo dos credores, bem como com a falência.

Se o plano não fecha a conta, o voto deve ser contrário e, se a inviabilidade for estrutural, é melhor uma falência transparente (isonomia, fiscalização, possibilidade de recomposição de ativos e responsabilização) do que uma "recuperação ilusória" que perpetua o problema em determinados casos, sendo necessário analisar sob o ponto de vista da classe e demais rol de credores/volume de endividamento.

__________

1 Disponível em https://www.serasaexperian.com.br/sala-de-imprensa/estudos-e-pesquisas/brasil-registra-22-mil-pedidos-de-recuperacao-judicial-em-2024-o-maior-numero-da-serie-historica-aponta-serasa-experian. Acesso em 29/09/2025.

2 Idem.

3 Disponível em https://www.tmabrasil.org/blog-tma-brasil/noticias-em-geral/apenas-23-das-empresas-sobrevivem-apos-pedir-recuperacao-judicial. Acesso em 01/10/2025.

4 Disponível em https://abjur.github.io/obsFase2/relatorio/planos.html. Acesso em 01/10/2025.

5 Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-ago-31/olhar-economico-mostram-decisoes-judiciais-recuperacao-empresas/?utm_source=chatgpt.com#sdfootnote3sym. Acesso em 01/10/2025.

6 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

7 Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia-geral de credores na forma dos arts. 45 ou 56-A desta Lei.  

8 STJ, REsp 1.532.943/MT, Rel. MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Dje de 10/10/2016. Disponível em www.stj.jus.br.

9 STJ, REsp 1880358/SP, Rel. MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA, julgado em 27/02/2024. Disponível em www.stj.jus.br.

10 https://www.mprj.mp.br/documents/20184/540394/lei_14112__texto.pdf

11 Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:

I - sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência;

II - executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal;

III - pratica qualquer dos seguintes atos, exceto se fizer parte de plano de recuperação judicial:

12 Objeção (30 dias) e convocação da AGC - LRF, art. 55; competências e quóruns da AGC/planos, arts. 35 e 45; cram down, art. 58, §1º.

Plano alternativo dos credores - LRF, art. 56, §§4º-7º (30 dias; maioria dos créditos presentes; conteúdo possível, até conversão em capital e troca de controle; direito de retirada) e art. 6º, §4º-A (decorrido o stay sem deliberação).

Convolação em falência - LRF, art. 73 (não apresentação, rejeição ou descumprimento do plano) e arts. 61-62 (descumprimento durante e após o biênio; execução específica ou falência pelo art. 94).

13 Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.

Rhuana Rodrigues César

Rhuana Rodrigues César

Sócia do Chenut.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca