A ação comunicativa como chave para a imputação penal racional
Neste artigo trato de Habermas, Wittgenstein e da reconstrução normativa do Direito Penal.
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Atualizado às 11:26
A teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, articulada no contexto de sua crítica à modernidade, oferece um instrumental teórico poderoso para repensar os fundamentos da imputação penal. Sustentada por uma filosofia que rejeita o modelo tradicional sujeito-objeto e centrada na racionalidade comunicativa, essa teoria parte da premissa de que não há conhecimento desvinculado da cultura e que toda ação só adquire sentido quando situada na esfera da linguagem e da intersubjetividade.
Habermas estrutura sua concepção comunicativa com base em quatro pretensões de validade, extraídas do uso cotidiano da linguagem: compreensibilidade, verdade, retidão normativa e veracidade. A comunicação legítima, segundo essa moldura, só se concretiza quando essas quatro condições são atendidas, criando um ambiente discursivo propício à formação racional do consenso. Para o Direito Penal, isso significa que a imputação deve ocorrer dentro de um campo discursivo onde a norma é conhecida, compreendida, aceita e respeitada por todos os envolvidos, inclusive pelo imputado.
Essa perspectiva coincide, em grande medida, com o ponto de partida filosófico de Ludwig Wittgenstein em sua fase tardia, sobretudo nas Investigações Filosóficas, quando afirma que "seguir uma regra é uma prática". O vínculo entre Habermas e Wittgenstein se estabelece de forma densa e produtiva no tocante ao conceito de normatividade. Wittgenstein rechaça a possibilidade de uma regra privada; Habermas amplia essa rejeição para edificar sua teoria de consenso: só há norma válida se houver possibilidade de crítica pública e intersubjetiva sobre sua aplicação.
É nesse ponto que a imputação penal encontra seu fundamento renovado: não se trata apenas de atribuir responsabilidade com base em elementos subjetivos isolados, mas de reconhecer se o comportamento imputado transgrediu uma expectativa normativa socialmente estabilizada, e cuja validade pode ser comunicada, compreendida e contestada. Esse deslocamento é essencial. Conforme explica Barberá, o fim do Direito Penal seria justamente garantir a manutenção contrafactual das expectativas frustradas, geradas por condutas desviantes. O desvio não é mais visto como simples afronta objetiva à norma, mas como falha em relação ao pacto comunicativo da sociedade.
Nessa perspectiva, a ação penal não é uma imposição unilateral do Estado, mas uma resposta comunicativamente estruturada à ruptura de expectativas normativas. Isso tem implicações diretas na análise da culpabilidade: não basta constatar o dolo ou a imprudência; é necessário demonstrar que o sujeito, ao agir, sabia (ou devia saber) da existência da norma e compreendia sua aplicação ao caso concreto. E mais: que a norma violada era, antes da infração, reconhecida intersubjetivamente como válida.
Daí a importância do conceito de "rol social" em Habermas: todo indivíduo age dentro de um conjunto de expectativas normativas compartilhadas. A ação comunicativa se realiza na medida em que esses papéis são assumidos com consciência e liberdade. Portanto, agir fora do rol implica, muitas vezes, uma ruptura intencional com a ordem discursiva, o que legitima a resposta punitiva, desde que essa resposta também respeite os critérios comunicativos: clareza, verdade, normatividade e veracidade.
Além disso, o conceito de "seguimento de regras" desempenha um papel decisivo na delimitação da imputação penal racional. Habermas reafirma o ponto wittgensteiniano: não se pode alegar que se está seguindo uma regra se tal seguimento não pode ser avaliado por terceiros. O seguimento de regras implica exposição à crítica, possibilidade de revisão, defesa e reformulação. A imputação penal, para ser legítima, deve ser uma aplicação de norma cuja validade tenha sido anteriormente estabilizada em um processo comunicativo aberto e racional.
Por isso, a reconstrução do Direito Penal a partir da teoria da ação comunicativa exige abandonar qualquer vestígio de imputação fundada em modelos subjetivistas abstratos, como o chamado "dolo eventual", e avançar para um modelo no qual as categorias de dolo e imprudência são reconstruídas com base no reconhecimento intersubjetivo das regras. A violação dolosa não é apenas uma transgressão voluntária, mas a negação consciente de um acordo normativo socialmente válido. A imprudência, por sua vez, será mensurada pela previsibilidade e pela expectativa de comportamento responsável no contexto de regras comunicadas.
Ao adotar esse modelo, o Direito Penal não apenas se alinha aos critérios filosóficos mais robustos da racionalidade moderna, como também resgata seu papel original: garantir a convivência social a partir de normas claras, discutidas, compreendidas e consensualmente aceitas. É nesse horizonte que a teoria da ação comunicativa de Habermas encontra sua força, não como utopia inalcançável, mas como critério normativo da legitimidade penal.
O Direito Penal não pode prescindir da linguagem. Tampouco pode abdicar da filosofia. A união entre Wittgenstein e Habermas nos oferece o caminho para uma imputação penal que respeite o significado das regras, a dignidade dos sujeitos e a legitimidade das sanções. E, sobretudo, nos ajuda a lembrar que nenhuma pena é justa se a norma violada não foi, antes, uma regra reconhecida por todos como válida. Essa é, afinal, a lição maior de uma filosofia da imputação significativa.
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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).


