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O nocaute de dez milhões de views e a exploração da imagem de "Poatan"

O artigo analisa a exploração digital da imagem de atletas de combate, mostrando como o ultimo nocaute de Poatan revela o desequilíbrio contratual e a mercantilização da performance esportiva.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Atualizado às 11:28

1. Introdução

Os esportes de combate, como o MMA e suas variações, consolidaram-se como um segmento de grande relevância econômica global. Nesse cenário, os contratos entre atletas e organizações promotoras (como o UFC) estruturam uma relação frequentemente marcada por profundas assimetrias de poder econômico e negocial.

Tais instrumentos não se limitam a formalizar a participação em lutas; eles abrangem um conjunto amplo de obrigações e direitos, incluindo a exploração da imagem, regras de exclusividade, cláusulas de não concorrência e condições de remuneração. A análise desses documentos revela que, apesar de estruturados sob a lógica da autonomia privada, muitos dispositivos restringem desproporcionalmente a atuação do atleta, suscitando debates sobre sua compatibilidade com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho.

O nocaute de Alex "Poatan" Pereira sobre Magomed Ankalaev, que alcançou 10 milhões de visualizações em menos de 24 horas no YouTube oficial do UFC em outubro de 20251, serve como exemplo empírico da exploração econômica digital unilateral. Este caso ilustra o ponto central de conflito: o promotor concentra o controle econômico e comunicacional, embora a performance do lutador gere direitos que, por sua natureza personalíssima e criativa, não deveriam ser integralmente renunciados.

2. O modelo contratual do UFC e a exploração unilateral dos direitos de imagem

O modelo contratual padrão do UFC caracteriza-se pela centralização dos direitos de mídia. Esses contratos de adesão transferem à promotora, de forma total e perpétua, todos os direitos de vídeo e mídia, sem prever qualquer participação do atleta na monetização, uma situação que atinge até mesmo grandes nomes como Conor McGregor.

A lógica econômica que rege o esporte profissional, desde suas origens, sempre reconheceu o caráter de espetáculo como núcleo do valor do atleta. Já advertia Nélio Reis, em meados do século XX, que "o atleta profissional vale pelo espetáculo que pode proporcionar ao público, que paga para assistir às exibições desportivas".2

Essa concepção, embora formulada em outro contexto histórico, permanece atual: o atleta continua sendo mensurado por sua capacidade de gerar audiência - hoje traduzida em visualizações, engajamento e monetização digital - confirmando a transformação da performance em produto de consumo.

Apesar da magnitude comercial de conteúdos como o nocaute de Alex Pereira, o atleta não recebe qualquer parcela da monetização gerada por milhões de visualizações. O modelo do UFC, onde todo o produto audiovisual pertence exclusivamente à promotora3, contrasta com o regime do boxe profissional, em que os atletas frequentemente dividem os direitos de mídia e clipes pós-luta. Essa diferença reflete o fato de o UFC operar sob um monopólio regulado de entretenimento4, enquanto o boxe adota um sistema liberal de promoção autônoma, levantando indícios de abuso de posição dominante do UFC por impor condições que restringem a exploração independente do atleta.

A publicação de lances, nocautes e bastidores em plataformas digitais (como shorts, reels e clipes de knockouts) é classificada juridicamente como comunicação pública de obra audiovisual. O lutador, ao ser o intérprete e protagonista dessas obras, é considerado titular de direitos conexos, análogos aos direitos dos artistas intérpretes ou executantes. Sob essa ótica autoral, o atleta detém o direito a uma participação proporcional nos proveitos econômicos derivados da exploração digital de sua performance.

A prática do UFC de monetizar esses vídeos e clipes sem qualquer repasse caracteriza violação desse direito, especialmente quando o conteúdo é veiculado de forma autônoma e desvinculada do evento de transmissão original. A promotora publica o nocaute para se antecipar à pirataria e monetizar diretamente, sem que o lutador receba qualquer valor por isso.

Em se tratando de direito de imagem, pode-se dizer que bem tutelado representa o uso das características pessoais de um indivíduo e não importa qual é a característica ou como se dá a utilização, uma vez que o direito é personalíssimo e irrenunciável.5

A dinâmica contemporânea da exploração da imagem nos esportes de combate revela um processo de liquefação do valor do atleta, que deixa de ser apenas trabalhador subordinado ou prestador de serviço para converter-se em produto de consumo audiovisual. Tal fenômeno pode ser compreendido à luz do pensamento de Zygmunt Bauman, segundo o qual a modernidade líquida dissolve fronteiras entre sujeito e mercadoria, tornando os indivíduos objetos de exposição e consumo instantâneo.6

Essa leitura é particularmente pertinente ao contexto do nocaute protagonizado por Alex "Poatan" Pereira. O instante esportivo - uma expressão de técnica, coragem e risco - é rapidamente capturado, editado e redistribuído como conteúdo viral, multiplicando visualizações, engajamentos e receitas. No entanto, a participação econômica do atleta nesse processo é frequentemente nula, pois as promotoras retêm integralmente os direitos sobre a performance e sobre as imagens derivadas.

Nesse cenário, o corpo do lutador torna-se símbolo máximo da mercantilização líquida: um ativo de rápida circulação, consumido na velocidade dos algoritmos e substituído pelo próximo espetáculo digital. Como observa Coelho, "na lógica líquida descrita por Bauman, os jogadores tornam-se mercadorias voláteis, consumidas na velocidade das telas e substituídas pelo próximo espetáculo".7

A reflexão de Bauman, retomada por Coelho, ilumina a dimensão simbólica e jurídica desse fenômeno: o atleta, transformado em "empreendimento de si mesmo", administra uma identidade que é simultaneamente pessoal e comercial, sem dispor de mecanismos jurídicos adequados para participar dos frutos econômicos de sua imagem. Essa contradição entre autonomia aparente e dependência estrutural desafia o Direito Desportivo a repensar os limites da cessão de direitos de imagem, reconhecendo que a difusão digital e a monetização de clipes configuram atos de comunicação pública nos quais o atleta figura como intérprete e, portanto, titular de direitos conexos.

O desafio contemporâneo, portanto, é construir um modelo contratual que compatibilize a circulação líquida da imagem com a dignidade do intérprete esportivo, evitando que a liberdade contratual sirva de escudo para a expropriação simbólica e econômica do atleta.

3. As assimetrias contratuais quanto à exclusividade e o uso da imagem do atleta da luta

Os contratos nos esportes de combate são notórios por sua natureza assimétrica. A maioria dos acordos estabelece que o atleta atua como autônomo (independent contractor) e não como empregado, o que é crucial para delimitar as responsabilidades trabalhistas e fiscais dos promotores.

O escopo dos serviços do atleta vai muito além da luta, incluindo a cooperação obrigatória em atividades promocionais e de marketing (entrevistas, sessões de fotos, vídeos) sem compensação adicional, sendo que a falta de participação pode gerar penalidades ou rescisão. Os atletas dão às promotoras um consentimento amplo para a captação e uso irrestrito de sua imagem para fins comerciais e promocionais, sem limitação de tempo ou território.

A cláusula de não concorrência ou exclusividade é uma das mais restritivas. O lutador é frequentemente proibido de participar de qualquer luta de MMA, kickboxing ou esportes de combate similares, ou de se engajar em atividades de marketing relacionadas a outras entidades, em uma obrigação muitas vezes ilimitada em termos de local e aplicável mundialmente.

No ONE Championship, o atleta concede o direito exclusivo de promover todas as suas futuras lutas e é expressamente proibido de trabalhar com concorrentes como UFC ou Bellator.8 O UFC também detém o direito exclusivo de promover todas as lutas, estendendo o prazo contratual por quatro meses para cada "outra luta" que o atleta venha a participar "fora" com o consentimento prévio do UFC.9

Essas cláusulas são criticáveis por imporem severas restrições à liberdade profissional sem contrapartida proporcional. O atleta de luta não recebe salário para se manter sem lutar, necessitando buscar eventos para receber bolsa, que só recebe depois da luta. A ausência de uma contrapartida razoável leva à proposição de que tais cláusulas seriam nulas de pleno direito.

Trabalhar é a condição de exercício de importantes prerrogativas de cidadania e a privação dessa qualidade, de maneira incorreta ou injustificada, não só implica a vulneração do direito ao trabalho, mas a dificuldade de exercício de outros importantes direitos fundamentais reconhecidos constitucionalmente ao trabalhador.10

4. Conclusão

A análise do caso Alex Pereira e das estruturas contratuais nos esportes de combate demonstra que as relações jurídicas são marcadas por uma assimetria excessiva. Disposições de exclusividade e direitos de imagem perpétuos sem revenue sharing digital refletem a tendência ao desfavorecimento do atleta em prol dos interesses comerciais dos promotores.

O "nocaute de dez milhões de views" de Poatan é também um nocaute jurídico. Ele expõe a urgência de reconhecer que a natureza personalíssima e criativa da atuação do lutador gera direitos conexos e exige uma repartição justa de receitas digitais. O modelo atual impõe uma distribuição desigual de riscos, na qual o atleta assume o risco de se lesionar enquanto o promotor centraliza os direitos de exploração econômica.

Para um desenvolvimento sustentável e ético do setor, os contratos devem ser repensados. A monetização das performances esportivas deve respeitar os princípios da dignidade humana e da valorização do trabalho, compatibilizando a lógica empresarial com a tutela jurídica mínima dos atletas.

_______

1 ULTIMATE FIGHTING CHAMPIONSHIP. Alex Pereira knocks out Magomed Ankalaev | UFC 320. [S. l.]: YouTube, 2025. 1 vídeo (5 min). Publicado pelo canal UFC. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_RReu5WGhw4&feature=youtu.be&si=cFtztkuBzFA4Mj87. Acesso em: 11 out. 2025.

2 REIS, Nélio. Contratos especiais de trabalho. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 77.

3 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Procedimento Comum Cível nº 5023009-13.2021.8.24.0005. Contrato de atleta do UFC. Documento: Evento 39, CONTR2. Balneário Camboriú, SC: Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Balneário Camboriú, 2022.

4 COSTA, Elthon José Gusmão da. A AÇÃO CIVIL DE CLASSE CONTRA O UFC E SEUS NOVOS ANDAMENTOS. Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, 1 dez. 2023. Disponível em: https://ibdd.com.br/a-acao-civil-de-classe-contra-o-ufc-e-seus-novos-andamentos/?v=19d3326f3137.

5 PINHEIRO, Patrícia Peck Garrido; NASCIMENTO, Camila Bruna do. Direito de imagem e proteção de dados pessoais dos influenciadores digitais. In: HACKEROTT, Nadia Andreotti Tüchumantel (coord.). Influenciadores digitais: e seus desafios jurídicos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 73-87.

6 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

7 COELHO, Vinícius. Bauman e a transformação dos jogadores de futebol em mercadorias. Ludopédio, São Paulo, 2021. Disponível em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/bauman-e-a-transformacao-dos-jogadores-de-futebol-em-mercadorias/. Acesso em: 11 out. 2025.

8 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Manaus. Execução de Título Extrajudicial nº 0750699-31.2021.8.04.0001. Contrato de atleta do ONE Championship. Documento: Contrato. Manaus, AM: 9ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus, 2021.

9 BRASIL, 2022, Op. Cit.

10 VALE, Silvia Teixeira do; LACERDA, Rosangela Rodrigues. Curso de direito constitucional do trabalho. 3. ed. Leme-SP: Mizuno, 2025, p. 535.

Elthon José Gusmão da Costa

VIP Elthon José Gusmão da Costa

Advogado trabalhista e desportivo. Mestre em Direito Desportivo Internacional. Professor, palestrante e organizador e autor de artigos e livros jurídicos.

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