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Unidade da jurisdição e do Ministério Público e a uniformidade da jurisprudência sob a perspectiva da segurança jurídica

Análise da unidade do Judiciário e do Ministério Público como garantias de segurança jurídica, com base na coerência e integridade institucional.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Atualizado às 14:42

"A vontade soberana é uma só, pois o Estado é uma só pessoa".

(Thomas Hobbes, O Leviatã, Parte II, Capítulo XVIII, 1651)

Introdução

Neste artigo, busco empreender reflexões sobre um tema especialmente oportuno não somente para a teoria do direito em suas diversas subáreas, como também para a prática profissional da advocacia. Em seu cotidiano, a advocacia esbarra ora com decisões arbitrárias de juízos e tribunais que ignoram a jurisprudência (fonte do direito cada vez mais invocada, como é consabido), ora com atos do Ministério Público completamente desconectados da prática da instituição. Por força da segurança jurídica - princípio geral do direito imperativo em qualquer Estado -, tanto o Poder Judiciário quanto o Ministério Público devem "falar com uma só voz" ao cidadão, apresentando seus atos e decisões como previsíveis, de maneira a possibilitar aos indivíduos planejar e concretizar seus projetos de vida1. Do ponto de referência do Estado, a unidade é consectária da indivisibilidade da soberania2.

A unidade da jurisdição e do Ministério Púbico - princípios de expressão constitucional - manifestam-se primordialmente pela uniformidade da jurisprudência e da atuação ministerial. Ao passo que muito se tem produzido acadêmica e doutrinariamente sobre o fenômeno da uniformização da jurisprudência no Brasil, pouco se escreveu sobre a uniformidade da atuação ministerial como expressão da unidade da instituição e da perspectiva da dimensão constitucional da segurança jurídica. Espero, por meio deste ensaio, ao menos instigar a reflexões pertinentes nesse sentido.

1. Da unidade da jurisdição e da uniformidade da jurisprudência

Como detém o monopólio do poder jurisdicional3, nos termos do art. 5º, XXXV, da CRFB - Constituição da República Federativa do Brasil, o Poder Judiciário submete-se ao princípio da universalidade ou inafastabilidade da jurisdição, segundo o qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Do monopólio decorre a unidade do Poder Judiciário: não é concebível que o poder estatal se divida em fragmentos incompatíveis entre si, pois aí se poria em xeque a própria soberania - que é a razão de ser da concentração do poder de decidir conflitos na alçada do Estado. Conforme comentam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Carlos Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, "a jurisdição é, em si mesma, tão una e indivisível quanto o próprio poder soberano"4.

Dessa forma se erige um dos pilares do sistema de garantias individuais e coletivas do ordenamento jurídico brasileiro. Tal princípio, em sua dimensão material, transcende a simples garantia de acesso à justiça, impondo a necessidade de uniformidade decisória em âmbito nacional, de modo a assegurar a igualdade de tratamento jurisdicional e a segurança jurídica.

A unicidade jurisdicional pressupõe, assim, a coerência sistêmica das decisões judiciais em casos análogos, impedindo que situações fático-jurídicas idênticas recebam tratamento diverso, a depender da circunscrição territorial ou do órgão jurisdicional competente para julgar uma causa. Tal entendimento harmoniza-se com o princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CRFB) e com a exigência de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, da CRFB)5, na medida em que decisões contraditórias sobre matéria idêntica configuram violação ao devido processo legal substantivo - plexo de princípios que prescreve a necessidade de que "uma decisão seja substancialmente razoável e correta"6. A teoria do direito, a teoria da constituição, a legislação e a jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros salientam a uniformidade da jurisprudência como prática essencial à garantia da igualdade constitucional.

Para o jusfilósofo estadunidense Ronald Dworkin7 - que influenciou decisivamente a nova doutrina constitucional brasileira -, a integridade é princípio medular do direito, ao garantir o postulado constitucional da igualdade, isto é, o tratamento com igual respeito e consideração de cada cidadão pelo Estado. Garante-se a integridade do direito quando se compreende a história institucional como um todo coerente e harmônico. Assim, os mesmos princípios devem ser aplicados em casos semelhantes, uma vez que cada pessoa é tão digna como qualquer outra, merecedora de igual respeito, consideração e interesse. Isso significa que o Estado será legítimo apenas se elaborar, modificar, interpretar e aplicar o direito de modo coerente8. A coerência, naturalmente, exclui decisões contraditórias. Do princípio da integridade do direito, logo, deriva o princípio da não contradição.

O direito como integridade condena o ativismo judicial aleatório9, ao prescrever o respeito à história da prática institucional. Nas palavras de Dworkin, um juízo sobre a constituição deve ser "coerente, em princípio, com o desenho estrutural da Constituição como um todo e também com a linha de interpretação constitucional predominantemente seguida por outros juízes no passado"10. No entanto, se a história institucional fornece o pano de fundo interpretativo, hão de ser convocadas também as noções de justiça e equidade imperantes no momento presente. A interpretação com base na integridade não dispensa a interpretação crítica. Ora, uma instituição comprometida com a integridade se afastará da linha decisória predominante sempre que for necessário manter fidelidade aos princípios mais fundamentais da Constituição11.

Daqui exsurgem, então, duas relevantes advertências: a) sempre há que empreender uma interpretação crítica do direito e das decisões jurídicas institucionais; e b) sempre há que atentar nas peculiaridades do caso concreto, o que é dizer, compreender até que ponto as circunstâncias fáticas e os fundamentos jurídicos do caso se amoldam aos precedentes judiciais em vigor. O mandamento capital é a coerência: a decisão deve poder ser compreendida como parte de uma longa história (um novo capítulo em uma espécie de "romance em cadeia"12) que dá conformidade às interpretações futuras, inclusive para as inovadoras. Todos os juízes devem ser vistos em conjunto, como "um único autor" - premissa consentânea com o princípio da unidade da jurisdição, que determina que o Poder Judiciário, que é faceta do Estado soberano, deva "falar com uma só voz".

Temos de concluir que os direitos reconhecidos a alguma pessoa não podem jamais ser negados a outra, em casos semelhantes, sob pena de ferir a igualdade. A coerência, desdobramento da integridade, preconiza que nenhum cidadão tem menos direitos que os já reconhecidos a outros. A igualdade demanda, pois, a não discriminação13.

Semelhante ideia não é novidade no direito pátrio. Entre os clássicos de nosso direito constitucional, notemos que Paulo Bonavides rechaçava interpretações constitucionais arbitrárias ou contraditórias, ao atribuir ao tribunal constitucional justamente a missão de estabilizar a jurisprudência, conferindo unidade ao ordenamento jurídico14. José Afonso da Silva, por sua vez, assevera que a estabilidade das instituições se infere da supremacia da Constituição, a exigir que o STF deva pautar-se por "critérios de coerência e continuidade, evitando-se alterações casuísticas e decisões contraditórias"15.

Aliada à clássica produção doutrinária mais sofisticada em território brasileiro, a teoria do direito como integridade, de Dworkin, tornou-se a concepção jusfilosófica mais influente no moderno direito pátrio, no período pós-Constituição de 1988. Vejamos sua ressonância entre os principais doutrinadores de nosso país.

Dos mais ilustres contemporâneos do direito constitucional, salientemos as lições dos ministros do STF Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes. Barroso defende a coerência decisional como valor democrático:

A exigência de uniformização da jurisprudência e o respeito aos precedentes têm como fundamento a promoção da igualdade, da segurança jurídica e da eficiência do sistema judicial. As decisões reiteradas dos tribunais e, com mais razão, as proferidas sob a sistemática dos recursos repetitivos ou da repercussão geral, devem orientar os juízes e tribunais na solução de casos semelhantes. Trata-se de um dever institucional, que decorre do princípio da legalidade e da boa-fé objetiva processual16.

Na mesma linha, Alexandre de Moraes sublinha a vinculação aos precedentes no sistema brasileiro, a partir de seu fundamento nos dispositivos constitucionais (arts. 102, §2º17 e 103-A). Trata-se de orientação que, ao atestar a estabilidade e a coerência das decisões judiciais, evita a multiplicação de ações idênticas decididas de forma incompatível entre si, em atentado à isonomia18.

É de lembrar, nesse contexto, os mecanismos uniformizadores como as súmulas vinculantes (art. 103-A, CRFB19), a repercussão geral (art. 102, § 3º20 e art. 1.035 do CPC/15 - lei 13.105/1521) e os incidentes de recursos repetitivos - IRDRs22, que, segundo Gilmar Mendes (et al.), são expressão do princípio da eficiência e da racionalidade da prestação jurisdicional, privilegiando a segurança jurídica, a previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade na aplicação do direito23.

Muitos doutrinadores vislumbram um verdadeiro movimento de "precedentalização" do Direito no Brasil, que importa notáveis influências do sistema de common law da tradição anglo- saxã, o qual é o pano de fundo da filosofia jurídica anglo-saxã24, como a já comentada teoria de Ronald Dworkin. Veja-se este passo de Teresa Arruda Alvim: "Com o novo CPC, o direito brasileiro passa a operar uma mudança paradigmática, abandonando em parte a tradição romano- germânica e aproximando-se do modelo de common law, no qual os precedentes têm papel central na definição do direito aplicável"25.

Detecta-se no direito nacional, nesse tocante, uma revisão da tradição romano-germânico do direito codificado do civil law, que tratava a jurisprudência como fonte secundária do direito, subsidiária e de valor apenas interpretativo, sobretudo quando houvesse lacunas na lei ou necessidade de adaptação da norma ao caso concreto - o "valor integrativo e atualizador" de que falava o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale (1910-2006)26. Essa transição foi bem captada pelo teórico contemporâneo do Direito brasileiro Dimitri Dimoulis, para quem "o Brasil vive um modelo misto, em que convivem a tradição do civil law (prevalência da lei) com elementos do common law, com o uso crescente de precedentes vinculantes e da jurisprudência como base decisória"27. O doutrinador atesta a cada vez mais inquestionável autoridade normativa da jurisprudência28. Acredito, portanto, que essa realidade exige reformulações na teoria do direito pátrio, no concernente às fontes do direito. É tempo de reconhecer que a jurisprudência se tornou fonte primária e direta do direito.

Ora, o movimento de uniformização da jurisprudência ganhou fôlego graças à sua previsão como mandatório na sistemática do CPC/15, explicitamente albergado no art. 926:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. § 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater- se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

Inúmeros são os precedentes do STF que reafirmam o imperativo da uniformização da jurisprudência, mediante a observação obrigatória dos precedentes internos e externos. Por exemplo, voto do ministro Luiz Fux, de 12/3/19, define a uniformização da jurisprudência dos tribunais, de sorte a mantê-la "estável, íntegra e coerente", como uma preocupação central do atual diploma processual civil29. O STF, aliás, assim se manifestou no Tema 988 da repercussão geral30: "O novo Código de Processo Civil consagra, de forma explícita, a vinculação dos órgãos do Poder Judiciário a precedentes judiciais qualificados, com o objetivo de conferir maior segurança jurídica, isonomia e previsibilidade às decisões".

Não resta nenhuma dúvida ou aresta, pois, quanto à cogência da uniformidade da jurisprudência. Penso que o mesmo critério de uniformização deva estender-se, por força da coerência e da segurança jurídica, a todas as instituições do sistema de justiça, inclusive e especialmente ao Ministério Público. Se não, vejamos.

2. Da unidade e da uniformidade da atuação do Ministério Público

O Ministério Público, no exercício de suas atribuições constitucionais previstas nos arts. 127 a 129, há de consolidar entendimentos uniformes que devem nortear sua atuação em casos análogos (da mesma forma que o tem feito o Judiciário), em razão do princípio da unidade, consagrado pelo § 1º do supracitado art. 127:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 1º - São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

A função institucional do Ministério Público, enquanto guardião da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, impõe a observância rigorosa do princípio da coerência institucional. Esse princípio decorre da própria natureza una e indivisível da instituição ministerial, que não pode adotar posicionamentos contraditórios em situações fático-jurídicas substancialmente idênticas, sob pena de violação dos princípios da igualdade, da segurança jurídica e da confiança legítima.

Por força do princípio da segurança jurídica, a exigência de uniformidade da jurisprudência, no âmbito do Poder Judiciário, deve estender-se aos parâmetros de atuação do Ministério Público, a fim de que sejam resguardados e aplicados, de maneira íntegra e coerente, os princípios que regem o Estado de Direito esquematizado pela Constituição. A estabilidade das posições ministeriais constitui elemento essencial para a preservação da confiança dos jurisdicionados na atuação institucional, bem como para a efetividade da tutela dos direitos, impedindo que oscilações injustificadas de entendimento comprometam a proteção dos direitos fundamentais e a própria missão constitucional do MP. Uma atuação cada vez mais normativa do CNMP - Conselho Nacional do Ministério Público, sem que, evidentemente, redunde em inovações na ordem jurídica31, é bem-vinda e necessária.

Destaquemos esta competência constitucional do CNMP, instituição inovadora, criada pela EC 45/04 (a qual basicamente "reformou" o sistema de justiça):

Art. 130-A. (...) § 2º Compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo lhe: I - zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; (...).

Atentemos na competência regulamentar do órgão de controle do MP. Em caráter sublegal - isto é, sem o poder de inovar na ordem jurídica, mas apenas com o poder de explicitar o conteúdo da CF e das leis32 -, cabe ao CNMP expedir normas aplicáveis a toda a infraestrutura ministerial33. Isso porque o CNMP é órgão administrativo, não legislativo. Na lição do procurador-Geral da República, Paulo Gustavo Gonet Branco: "O CNMP pode editar atos normativos secundários, voltados à uniformização da atuação funcional e administrativa do Ministério Público, desde que não invada a esfera de competência legislativa do Congresso Nacional"34. Valendo-se de sua competência regulamentar, o CNMP expede resoluções (de caráter normativo e vinculante)35, recomendações (não vinculantes, apenas orientadoras), enunciados (não vinculantes, apenas interpretativos) e portarias (de caráter administrativo interno).

Defendo que as resoluções, recomendações e enunciados tenham um valor equiparado ao que detém a uniformização da jurisprudência em sede jurisdicional. Esses expedientes são valiosos instrumentos para reforçar a segurança jurídica atinente aos atos ministeriais, conferindo a preconizada unidade constitucional ao Parquet, como também permitindo que os cidadãos identifiquem nos atos ministeriais a previsibilidade indispensável ao princípio da confiança legítima - corolário da segurança jurídica. Uma expansão dos mecanismos de uniformização é, acima de tudo, uma exigência constitucional.

A uniformidade da atuação ministerial será especialmente valiosa tanto na esfera penal, quando o MP é titular da pretensão punitiva do Estado (art. 129, I, da CRFB), quanto na esfera cível, quando o MP é titular do inquérito civil e da ação civil pública (art. 129, III, da CRFB), na defesa dos interesses da coletividade (como custos legis). É fundamental, de modo geral, quando o MP atua como parte em processos judiciais ou quando atua em caráter extrajudicial36, uma vez que o órgão representa o interesse coletivo em qualquer hipótese de sua esfera de competência. Portanto, todas as competências arroladas nos incisos do art. 129 da CRFB devem ser exercidas à luz da unidade da instituição e da uniformidade, baseada na integridade e na coerência pressuposta a qualquer manifestação do Estado. O direito como integridade, portanto, espraia sua influência também sobre o Ministério Público. Trata-se de obedecer à segurança jurídica - princípio jurídico nuclear de dimensão constitucional, que analisarei a seguir.

3. Da dimensão constitucional da segurança jurídica

No direito de qualquer Estado, é assente o princípio geral da segurança jurídica, segundo o qual não é lícito ao direito superveniente prejudicar situações jurídicas já consolidadas. Na teoria clássica do Direito, a segurança jurídica atine à sucessão temporal das leis. Todavia, considerando o que venho falando a respeito do inconteste reconhecimento da jurisprudência como fonte primária e direta do Direito, é de rigor estender ao ditame da segurança jurídica o conteúdo relativo às mudanças jurisprudenciais no tempo.

O professor José Afonso da Silva ensina que a segurança jurídica assegura a estabilidade dos direitos subjetivos. Lembremos que os direitos subjetivos são situações jurídicas em que uma parte tem o poder de exigir da outra uma contraprestação (positiva ou negativa), inclusive de fazê-lo judicialmente, porque o direito acolhe sua pretensão. Ao aduzir que a segurança jurídica reside na relativa certeza que os indivíduos têm sobre a estabilidade de seus direitos, o mestre a define - convocando conceito de Jorge Reinaldo Vanossi - como "conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida"37.

Em sua dimensão constitucional, o princípio da segurança jurídica encontra guarida na temática da proteção dos direitos subjetivos, consagrada no art. 5º, XXXVI, da CRFB: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Aqui renovamos a ressalva: após empreender uma interpretação teleológica e lógico-sistemática do texto constitucional38, podemos entender como "a lei" também a jurisprudência, dado sua situação de concomitância como fontes do direito brasileiro na atual quadra histórica. Portanto, a jurisprudência não prejudicará os direitos subjetivos assegurados, sobretudo os que se converteram em direito adquirido, que é situação jurídica consumada, insuscetível de ser desfeita por lei ou jurisprudência superveniente, na medida em que o direito adquirido se tenha incorporado ao patrimônio jurídico do titular, "para ser exercido quando convier"39.

A segurança jurídica se traduz, então, na confiança legítima que os cidadãos podem ter de que normas jurídicas e decisões dos poderes públicos não lhe frustrarão as legítimas expectativas, vendo-se protegidos contra alterações abruptas, arbitrárias ou retroativas tanto da lei quanto da posição judicial ou ministerial dominante. Apenas no império da segurança jurídica, a sociedade pode edificar-se, no contexto de um ambiente de previsibilidade e, por conseguinte, de estabilidade. Na formulação lapidar do jusfilósofo austríaco Hans Kelsen (1881-1973): "A segurança jurídica consiste na possibilidade de saber antecipadamente quais são as normas vigentes e quais são as consequências jurídicas de determinada conduta."40. Estamos, portanto, diante de dois princípios constitutivos do Estado de Direito: a segurança jurídica e a confiança legítima41. Dito isso, passo doravante às considerações finais.

Considerações finais

Inicio os considerandos finais com as seguintes palavras do ministro Gilmar Mendes, do STF, em trecho de seu voto no RE 592.891/SP (Tema 339 da repercussão geral): "A jurisprudência consolidada não pode ser abruptamente alterada sem que se leve em consideração a proteção da confiança dos jurisdicionados, sob pena de violação ao princípio da segurança jurídica"42. Ora pois, é imperativa a uniformidade da jurisprudência, a fim de se privilegiar a dimensão constitucional do princípio da segurança jurídica. Conforme comentei, a unidade da jurisdição, a uniformidade da jurisprudência e a segurança jurídica ligam-se umbilicalmente, de maneira inexorável.

Com igual razão, o Ministério Público - parte constitutiva que é do Estado, cuja soberania é una e indivisível - deve também "falar com uma só voz". Sendo afetado pelo princípio constitucional da unidade, suas decisões e manifestações hão de ser emitidas sob o primado da uniformidade - sempre temperada com a aplicação de critérios atualizados de justiça e equidade ao caso concreto -, de sorte a serem previsíveis, estáveis, possibilitando aos indivíduos planejar e concretizar seus projetos de vida, bem como à sociedade florescer em um ambiente de equilíbrio, solidez e segurança. Reitero a imprescindibilidade do exercício cada vez mais vigoroso da competência regulamentar do CNMP.

Ao final, conclamo os juristas a refletir e explorar esta área sobre a qual pouco se tem escrito acadêmica e doutrinariamente: a uniformidade da atuação ministerial. Tenhamos sempre em mente a dimensão constitucional da segurança jurídica, bem como da unidade do Ministério Público. A coerência e a integridade dos atos do Parquet, assim como daqueles do Poder Judiciário, são elementos constitutivos dos pilares de nosso Estado democrático de Direito.

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1 Segundo a tradição liberal, o Estado existe para assegurar que os indivíduos realizem seus projetos de vida, à luz de seus respectivos princípios e valores. Será ilegítimo o Estado que se interpuser, como óbice, entre as aspirações individuais a uma vida digna e sua concretização, desde que respeitados os princípios gerais da liberdade que possibilitam a coexistência pacífica em uma sociedade democrática bem ordenada. Conferir: RAWLS, John. Justiça e Democracia. Org.: Catherine Audard. Trad.: Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Essa premissa está na base da ideia da coexistência de espaços de liberdade individuais sob uma lei geral, que remonta aos fundadores do liberalismo, como Hobbes, Kant e Stuart Mill, e mesmo ao comuntarista Rousseau. Para aprofundar esse debate teórico sobre o liberalismo, remeto a artigo de minha autoria, "O contrato social e o sentimento de pertencimento", publicado no Portal Migalhas em 02/06/2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/433886/o-contrato-social-e-o-sentimento-de-pertencimento. Acesso em: 22/07/2025.

2 O conceito de soberania, inderrogável para os Estados modernos, foi germinado pelo filósofo francês Jean Bodin (1530-1596), n'Os seis livros da República, de 1576. Estabelecendo-se a dominância das teorias do contrato social como metodologias explicativas da origem e da legitimidade do Estado moderno, o soberano então foi associado ao próprio governante, sob a influência das ideias do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679). Hodiernamente, compreende-se como soberano uno e indivisível o povo, cuja vontade se faz somente representar pelo aparato estatal, no passo das ideias do filósofo genebrês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Para o aprofundamento dessa discussão, tendo como pano de fundo o sistema judicial, remeto a artigo de minha autoria, "A natureza jurídica da ação e o direito fundamental de acesso à justiça sob a perspectiva do contrato social", publicado no Portal Migalhas em 10/05/2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/430032/contrato-social-a-natureza-juridica- da-acao-e-o-acesso-a-justica. Acesso em: 22/07/2025.

3 O monopólio da jurisdição é uma das faces do monopólio do uso exclusivo e legítimo da coerção pelo Estado, tal como exemplarmente foi analisado pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). Para o aprofundamento dessa discussão, remeto ao supracitado artigo de minha autoria: "A natureza jurídica da ação e o direito fundamental de acesso à justiça sob a perspectiva do contrato social" (referência: ver nota de rodapé nº 3).

4 CINTRA, Antonio Carlos Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008 (p. 158).

5 In verbis: "IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)" (Grifamos.)

6 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil - teoria geral do processo e processo de conhecimento. Vol. 1. 11ª ed. Salvador: Editora Juspopivm, 2009 (p. 32).

7 DWORKIN, Ronald. O império do direito. 1ª ed. Trad.: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

8 Ibid. (p. 232).

9 O ativismo judicial no direito constitucional se configura como a frequência com que o Poder Judiciário induz força normativa aos dispositivos constitucionais, seja para maximizar, seja para minimizar seu conteúdo jusfundamental. Considero problemático o ativismo que tergiversa para a história institucional a fim de minimizar o conteúdo garantista dos direitos fundamentais. Afinal, a jurisdição constitucional serve ao propósito de promover os direitos fundamentais, mediante critérios aplicativos de justiça e equidade. Para aprofundar essa discussão, remeto ao meu artigo "O ativismo judicial no trintenário da Constituição", publicado como capítulo 2 de meu livro: FERREIRA, Antonio Oneildo. A Constituição balzaquiana e outros escritos. Brasília: Editora OAB, Conselho Federal, 2019 (pp. 19-41).

10 DWORKIN (Op. Cit., p. 15).

11 Ibid. (p. 264).

12 Cada juiz deve escrever um capítulo que apresente a melhor leitura possível da obra criada por inúmeras mãos, ao mesmo tempo adaptando-a para o presente. Ibid. (p. 276).

13 Mencione-se o art. 3º, IV, da CRFB, que estabelece como objetivo fundamental da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

14 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2021 (p. 720).

15 SILVA José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 46ª ed. São Paulo: Malheiros, 2023 (p. 60).

16 BARROSO, Luís Roberto. O Novo Direito Constitucional Brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023 (pp. 348-349).

17 In verbis: "As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal". (Grifamos.)

18 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 43ª ed. São Paulo: Atlas, 2023 (p. 830).

19 In verbis: "O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei". (Grifamos.)

20 In verbis: "No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros".

21 Dispõe sobre a regulamentação legal do instituto da repercussão geral.

22 São disciplinados nos arts. 976 a 987 do CPC.

23 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022 (p. 1131).

24 Além, entre outros, do positivismo jurídico inglês de John Austin (1790-1859) e Herbert L. A. Hart (1907-1992), e do realismo jurídico estadunidense de Oliver Wendell Holmes, Jr. (1841-1935).

25 ALVIM, Teresa Arruda. Precedentes obrigatórios. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2017 (p. 35).

26 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003 (p. 292).

27 DIMOULIS, Dimitri. Curso de introdução ao estudo do direito. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021 (p. 212).

28 Ibid. (p. 210).

29 Petição 8.002 com Agravo Regimental, rel. Min. Luiz Fux.

30 Tema 988 da Repercussão Geral (STF, RE nº 1.104.900/SP).

31 Afinal, como nos esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello em clássica lição: "Atos administrativos são atos infralegais, subordinados à lei. Jamais podem inovar na ordem jurídica de modo originário, pois isso é função da lei. A Administração só pode agir dentro dos limites previamente traçados pelo ordenamento". BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016 (p. 394).

32 Nesse sentido é o voto do Ministro Edson Fachin: "As resoluções do CNMP possuem natureza normativa, dentro dos limites constitucionais e legais, desde que não se sobreponham ao papel do legislador ordinário". BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.454/DF. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Voto do Min. Edson Fachin. Brasília, DF, julgado em 24 jun. 2021.

33 Predita a Lei nº 11.372/2006 - Regimento Interno do CNMP, no art. 2º, § 1º: "No exercício de suas atribuições, o Conselho Nacional do Ministério Público poderá expedir atos normativos, recomendações e outras manifestações com o objetivo de zelar pela autonomia e unidade do Ministério Público". Perceba-se que a unidade da instituição foi salientada como meta fundamentadora da atividade normativa do conselho.

34 GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Ministério Público: perfil constitucional e atuação. São Paulo: Saraiva, 2020 (p. 215). (Grifamos.)

35 Conforme preleciona Rodrigo Brandão: "As resoluções do CNMP são normas com caráter geral, abstrato e vinculante, cuja finalidade é estabelecer parâmetros mínimos de atuação funcional e administrativa para os membros e órgãos do Ministério Público". BRANDÃO, Rodrigo. Controle externo e atuação institucional do Ministério Público. Belo Horizonte: Fórum, 2017 (p. 176).

36 Até mesmo ao firmar seus termos de ajustamento de conduta - TACs, deve-se exigir do MP, em todas as suas esferas, juridicamente especializadas, federadas ou territoriais, critérios coerentes. Vale lembrar que os TACs são autorizados pelo art. 5º, §6º, da Lei nº 7.347/1985 - Lei da Ação Civil Pública: "Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante termo escrito, que terá efeito de título executivo extrajudicial".

37 SILVA José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009 (p. 433).

38 Confiram-se as lições de Luís Roberto Barroso concernentes às técnicas de interpretação citadas: a) interpretação teleológica: "dirige-se para a finalidade da norma, o fim social visado pelo legislador constituinte. Busca-se a razão de ser da norma, o bem jurídico por ela tutelado, promovendo uma interpretação que dê eficácia e sentido aos valores constitucionais" (p. 271); b) interpretação sistemática: "exige que se considere o texto constitucional como um todo coerente e harmônico, evitando contradições entre seus dispositivos" (p. 272). BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

39 SILVA (Op. Cit., p. 434).

40 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (p. 351).

41 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.

42 STF, RE 592.891/SP, Tribunal Pleno, DJe 01.08.2011. (Grifamos.) Neste julgado, fixou-se a seguinte tese: "Impossibilidade de retroação de nova interpretação do Tribunal sem modulação de efeitos".

Antonio Oneildo Ferreira

Antonio Oneildo Ferreira

Advogado. Presidente da OAB/RR no período de 2001 a 2012. Diretor-Tesoureiro do CFOAB no período de 2013 a 2019.

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