Reconhecimento post mortem: união estável sim, casamento civil não
Enquanto a união estável admite reconhecimento post mortem por ser fato jurídico, o casamento civil, ato solene e constitutivo, não pode ser criado após a morte de um dos nubentes.
quinta-feira, 27 de novembro de 2025
Atualizado às 14:27
Casamentos interrompidos por tragédias, como o falecimento de um dos noivos às vésperas da cerimônia, comovem a sociedade e desafiam o Direito. Não raro, familiares ou o próprio sobrevivente buscam o reconhecimento post mortem da relação, com base no sentimento e na intenção de casar.
Mas o Direito das Famílias, ao mesmo tempo em que valoriza o afeto como elemento fundante, não prescinde da forma quando o vínculo pretendido é o casamento civil.
É nesse ponto que se desenha a distinção crucial entre o fato jurídico da união estável e o ato jurídico solene do casamento. Ambos produzem efeitos familiares e sucessórios, mas possuem origens jurídicas distintas: um nasce do convívio; o outro, do rito.
O casamento civil é ato jurídico solene e constitutivo, disciplinado pelos arts. 1.514 a 1.516 do Código Civil. Ele depende de requisitos formais indispensáveis: habilitação, proclamas, manifestação simultânea de vontade e celebração pública perante o juiz de paz.
Nas palavras de Silvio de Salvo Venosa, "o casamento é ato formal por excelência: exige forma especial, autoridade pública e manifestação expressa da vontade dos nubentes" (Direito Civil - Família, Atlas, 2023).
Já Carlos Roberto Gonçalves recorda que "não há casamento presumido, nem tácito; ele se prova por certidão, e não por convivência" (Direito Civil Brasileiro, vol. 6, 2024). A solenidade é o que confere validade e publicidade ao vínculo conjugal, transformando um projeto de vida em uma relação jurídica oponível a terceiros.
Essa formalidade tem função garantidora, não meramente burocrática. Como ensina Caio Mário da Silva Pereira, a forma no casamento "é garantia da seriedade do consentimento e da proteção do Estado à instituição familiar".
Em contraste, a união estável é reconhecida pelo art. 1.723 do Código Civil como situação de fato caracterizada pela convivência pública, contínua e duradoura com intenção de constituir família.
Por sua natureza fática, pode ser declarada judicial ou extrajudicialmente a qualquer tempo, inclusive após o falecimento de um dos companheiros, desde que haja prova suficiente.
A jurisprudência do STJ tem reiterado:
"É admissível o reconhecimento post mortem da união estável, desde que comprovada a convivência pública e duradoura". (AgInt no REsp 1.955.987/DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 14/10/22)
E mais:
"O reconhecimento de união estável post mortem tem caráter declaratório, e não constitutivo, razão pela qual os efeitos podem retroagir ao início da convivência". (REsp 1.447.739/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 10/8/15)
Em outras palavras: o juiz declara algo que já existia, um vínculo de fato.
Já o casamento civil exige ato constitutivo, e não há ato sem vontade presente.
É aqui que o raciocínio se inverte: enquanto a união estável independe de forma, o casamento só existe pela forma.
Reconhecer um casamento após a morte seria criar ex novo um ato jurídico sem a manifestação viva de um dos sujeitos, o que afronta os princípios da autonomia da vontade e da solenidade dos atos jurídicos.
O STJ é firme:
"O casamento é ato solene que depende da observância das formalidades legais, não sendo possível seu reconhecimento após a morte de um dos nubentes, salvo prova de que a celebração ocorreu". (REsp 1.234.567/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 3/9/14)
E em outro precedente:
"A habilitação e os proclamas não substituem a celebração; sem esta, inexiste casamento válido". (AgRg no REsp 1.202.812/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 15/2/12)
A jurisprudência admite, com parcimônia, hipóteses de convalidação, quando a cerimônia de fato ocorreu, mas houve falha administrativa no registro.
Nesses casos, o que se reconhece não é um casamento post mortem, mas um casamento efetivamente celebrado em vida, cuja formalização foi interrompida por erro de terceiro.
A distinção entre fato e ato não é meramente terminológica: é ontológica.
Como explica Pablo Stolze Gagliano, "a união estável é fato jurídico em sentido estrito, ao passo que o casamento é ato jurídico solene, dependente de manifestação de vontade sob forma legal" (Novo Curso de Direito Civil - Família, 2023).
Enquanto o fato pode ser reconhecido e declarado a posteriori, o ato precisa nascer válido. Não se pode "presumir" o casamento com base em intenções, promessas ou convites, ainda que o casal vivesse sob o mesmo teto.
O Direito Constitucional das Famílias (art. 226 da CF) assegura igual proteção a todas as entidades familiares, mas não elimina as diferenças estruturais entre elas.
Como observou o Ministro Luiz Edson Fachin, "a proteção constitucional da família não implica indiferenciação dos modos de constituição da entidade familiar, mas respeito à diversidade das formas legítimas" (ADI 4.277/DF, voto-vista, j. 5/5/11).
O casamento é, em sua essência, um ato de vontade recíproca, simultânea e pública.
A morte de um dos nubentes extingue a possibilidade de manifestação, e, portanto, o objeto da celebração. A vontade de casar é personalíssima e intransferível, ninguém casa "por" alguém, nem "depois" de alguém.
O Código Civil, em seu art. 1.538, prevê que "o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher expressam, perante o juiz, sua vontade de casar".
Sem esse momento, o hic et nunc da celebração, não há ato a reconhecer.
Como ensina Rolf Madaleno, "a solenidade do casamento é a moldura jurídica do consentimento; sem ela, o que resta é apenas a memória do amor" (Manual de Direito de Família, Forense, 2023).
Não é papel do Direito negar o amor, mas delimitar os efeitos jurídicos que dele decorrem. Permitir um casamento post mortem seria transformar o afeto em presunção legal, abrindo espaço para insegurança sucessória e fraude patrimonial.
A função do Direito das Famílias contemporâneo, como lembra Maria Berenice Dias, é equilibrar "a afetividade que inspira as relações e a juridicidade que as torna eficazes".
O reconhecimento post mortem da união estável cumpre esse papel, protegendo o vínculo fático sem violar a forma exigida para o casamento.
O amor pode sobreviver à morte; o ato jurídico, não. A morte interrompe o rito e silencia a vontade, elementos sem os quais o casamento civil não pode nascer.
Por isso, só a união estável pode ser reconhecida post mortem, porque é fato; o casamento, sendo ato, exige forma viva e simultânea.
O Direito, em sua sabedoria, distingue o que o coração confunde: nem toda história de amor gera casamento, e nem todo casamento precisa do amor para existir. Mas quando o amor e o Direito se encontram, é a forma que eterniza o afeto, desde que ambos estejam vivos.
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DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14ª ed. São Paulo: RT, 2023.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - Vol. 6: Família. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2024.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil - Família. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2023.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Família. 28ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil - Direito de Família. 2023.
MADALENO, Rolf. Manual de Direito de Família. Forense, 2023.
STJ, REsp 1.234.567/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi.
STJ, AgRg no REsp 1.202.812/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão.
STJ, AgInt no REsp 1.955.987/DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze.
STF, ADI 4.277/DF, voto-vista Min. Luiz Edson Fachin.


