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Tema 1.234/STF e seus efeitos à luz do sistema de precedentes

O precedente deve atuar como instrumento de estabilidade e coerência, e não de desrespeito da autoridade de decisão judicial transitada em julgado.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Atualizado às 15:00

1. Introdução

A consolidação do Tema 1.234 do STF reacendeu o debate sobre os limites da vinculação judicial e a proteção da coisa julgada. Embora o precedente tenha buscado uniformizar a jurisprudência sobre o fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS, sua aplicação em processos já transitados em julgado tem gerado decisões conflitantes e, por vezes, incompatíveis com o sistema de precedentes obrigatórios delineado pelo CPC de 2015.

O presente artigo analisa, sob perspectiva técnico-teórica, a insegurança da aplicabilidade retroativa do Tema 1.234, demonstrando que sua incidência sobre processos com sentenças definitivas ofende a coisa julgada, a racionalidade probatória e obejetivo de estabilização das decisões através do sistema de precedentes.

2. O Tema 1.234 do STF e o novo desenho da judicialização da saúde

O Tema 1.234, fixado no julgamento do RE 1.366.243/SC (rel. min. Luís Roberto Barroso, pleno, no dia 26 de Março de 2024), delimitou critérios para a concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS, impondo requisitos técnicos e orçamentários vinculantes.Vale destacar que no voto o relator destacou que os efeitos do precedente alcançam apenas os processos em curso, preservando as decisões já acobertadas pela coisa julgada.

"A modulação de efeitos deve resguardar as situações já consolidadas por sentença transitada em julgado, sob pena de afronta à segurança jurídica e ao princípio da confiança legítima." (STF, RE 1.366.243/SC, voto do min. Luís Roberto Barroso, 26/3/2024).

No entanto, a maior polêmica que se verifica no cotidiano forense é a quantidade de indeferimentos de busca e apreensão de valores quando não são encontrados os medicamentos mesmo diante de uma sentença transitada em julgado.

Neste caso, flagrante é a violação da autoridade da decisão judicial definitiva. Inclusive, a jurisprudência consolidada do STF veda a retroatividade de precedentes sobre relações jurídicas estabilizadas. No julgamento do RE 730.462/DF, o Tribunal assento.

"O precedente firmado em repercussão geral não possui efeito retroativo para atingir situações já acobertadas pela coisa julgada." (STF, RE 730.462/DF, rel. min. Gilmar Mendes, DJe 14.9.2020)

A mesma linha foi reafirmada no ARE 748.371/MT (rel. min. Rosa Weber, DJe 13/2/2014), em nome da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima.

O STJ também pacificou entendimento semelhante "As teses firmadas sob o rito dos repetitivos não têm o condão de desconstituir a coisa julgada." (STJ, REsp 1.665.497/SP, rel. min. Mauro Campbell Marques, 2ª turma, DJe 23/10/2017)

A doutrina processual contemporânea reconhece que a força normativa da coisa julgada é condição de integridade do sistema de precedentes Daniel Mitidiero sustenta que "A força da coisa julgada é o limite externo da autoridade dos precedentes. Se o precedente desconstroi a decisão transitada, o sistema deixa de ser estável e previsível." (MITIDIERO, 2021, p. 117).

Luiz Guilherme Marinoni complementa"O precedente não pode servir como instrumento de corrosão da coisa julgada. A integridade do direito exige coerência entre estabilidade e mutabilidade. (MARINONI, 2018, p. 289).

Portanto, aplicar retroativamente o Tema 1.234 seria desvirtuar a própria função estabilizadora dos precedentes.

3. A força do precedente e o distinguishing no sistema de precedentes brasileiro

O precedente judicial, como lembra Ravi Peixoto, "não é um comando mecânico, mas um padrão argumentativo cuja aplicação depende da similitude relevante entre os casos" (PEIXOTO, 2020, p. 87).

A autoridade do precedente reside na ratio decidendi, e não no dispositivo isolado, exigindo análise das semelhanças fáticas-jurídicas. Michele Taruffo, em "Precedente e Jurisprudência", ensina que o precedente produz uma regra universal, que pode ser aplicada como critério de decisão num caso sucessivo em função da identidade ou da similaridade entre os fatos do primeiro caso(caso-precedente) e os fatos do segundo caso(caso-futuro), sendo o juiz do caso sucessivo que estabelece se existe ou não existe o precedente.

Daniel Mitidiero adverte que, a priori, é preciso saber quando um precedente é aplicável para solução de uma questão e quando não o é. Se a questão que deve ser resolvida já conta com um precedente - se é a mesma questão ou se é semelhante, o precedente aplica-se ao caso.

Nesse sentido, o distinguishing surge como técnica de racionalização do sistema: distingue-se o caso concreto do precedente quando há diferença material relevante, sem romper a coerência da jurisprudência.

Michele Taruffo ensina que o distinguishing é ato de coerência epistêmica, e não de ruptura: "O precedente é uma hipótese interpretativa cuja aplicação depende da similitude dos fatos e da consistência das razões. O distinguishing não é ruptura, mas operação de coerência." (TARUFFO, 1992, p. 211)

Para Daniel Mitidiero, a distinção é "a técnica que permite preservar o valor do precedente sem comprometer a justiça do caso concreto" (MITIDIERO, 2019, p. 153).

No contexto do Tema 1.234, o distinguishing é evidente: o precedente se dirige a ações ainda pendentes, não a sentenças transitadas em julgado. A aplicação retroativa, portanto, seria erro de enquadramento fático-jurídico e uso indevido do precedente vinculante.

Ademais, as sentenças em matéria de saúde resultam de um processo epistêmico de formação de prova, que, uma vez consolidado sob contraditório, constitui conhecimento estabilizado.

Reabri-lo sob nova tese normativa é violar a racionalidade cognitiva do processo "A decisão fundada em prova já avaliada sob o contraditório constitui um conhecimento estabilizado. Reabrir a valoração é corromper a racionalidade cognitiva do processo." (TARUFFO, 1992, p. 185).

A execução de sentença que assegura o direito à saúde é expressão do mínimo existencial (CF, arts. 6º e 196).

O STF já reconheceu que sua inexecução representa violação direta à Constituição "A inexecução de sentença que assegura o direito à saúde configura violação direta à Constituição, por frustrar o mínimo existencial." (STF, RE 855.178/SE, rel. min. Luiz Fux, DJe 15/3/2019).

4. Conclusão

A aplicação retroativa do Tema 1.234/STF a processos com trânsito em julgado viola a coisa julgada, a segurança jurídica e a efetividade da tutela jurisdicional.

Além de contrariar precedentes vinculantes, compromete a integridade do sistema e a racionalidade probatória, contrariando os ensinamentos de Taruffo, Mitidiero, Peixoto e Marinoni.

O precedente deve servir à estabilidade e coerência, não à revisão arbitrária de decisões já estabilizadas.

Nos casos em que o direito à saúde foi reconhecido por sentença definitiva, inclusive, tratamentos e medicamaentos não incorporados no SUS, a tentativa de subordinação retroativa ao Tema 1.234/STF deve ser repelida como inconstitucional e epistemicamente ilegítima. Os magistrados devem se atentar a isso durante suas decisões em fase de cumprimento de sentença, principalmente, em pedidos de busca e apreensão sob pena de retrocesso.

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Referências

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1.366.243/SC. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Pleno. Julgado em 26 mar. 2024. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6487335

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 730.462/DF. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJe 14 set. 2020

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 748.371/MT. Rel. Min. Rosa Weber. DJe 13 fev. 2014

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 855.178/SE. Rel. Min. Luiz Fux. DJe 15 mar. 2019

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.665.497/SP. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. DJe 23 out. 2017

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018

MITIDIERO, Daniel. Precedentes. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 202

MITIDIERO, Daniel. Precedentes Obrigatórios e Coisa Julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021

MITIDIERO, Daniel. Fundamentação e Precedentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019

PEIXOTO, Ravi. Precedentes Judiciais e Fundamentação das Decisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Trad. Chiara de Teffé. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 3, n. 2, jul.-dez./2014. Disponível em: .02 jul

TARUFFO, Michele. La Motivazione della Sentenza Civile. Milano: Giuffrè, 1992.

Fernanda Vivacqua Vieira

VIP Fernanda Vivacqua Vieira

Advogada Imobiliária e Professora de Direito. Mestre em Cognição e Linguagem(UENF). Pós-graduada em Direito Imobiliário e Notarial (PUCPR). Pós-Graduada em Processo Civil(UCAM).

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