Doação com usufruto: O "test drive" da herança que custa caro?
Doar com usufruto promete economia e simplicidade. Mas essa "simplicidade" pode engessar seu patrimônio, causar conflitos e te custar mais caro no futuro. Saiba os riscos dessa "herança fácil".
terça-feira, 4 de novembro de 2025
Atualizado às 14:37
Você acumulou patrimônio. Tem alguns imóveis, quem sabe um apartamento na praia, a casa onde mora, alguns terrenos. E, como qualquer pessoa sensata, não quer que seus herdeiros passem pelo inferno do inventário que já detalhamos. Alguém, em algum momento, vai te sussurrar a "solução mágica": "Faz uma doação com usufruto!"
A ideia é brilhante em sua simplicidade: você doa os bens para seus filhos (os "nu-proprietários"), mas mantém para si o direito de usar e gozar desses bens (o "usufruto") até o fim da vida. Ou seja, você continua morando na casa, recebendo os aluguéis, usando a fazenda. Ao falecer, o usufruto se extingue, e a propriedade plena se consolida nas mãos dos filhos automaticamente, sem inventário.
Parece perfeito, certo? Economiza ITCMD (porque a doação é em vida e pode ser feita pelo valor venal, teoricamente), evita inventário, e você mantém o controle. É como um "test drive" da herança, só que sem o risco de bater o carro.
Exceto que, na maioria das vezes, o "carro" já vem batido, o pneu está furado e você está preso no engarrafamento. A doação com usufruto, quando mal planejada e mal compreendida, é o caminho mais rápido para engessar seu patrimônio e semear discórdia familiar. É um remédio caseiro que, muitas vezes, piora a doença.
Por que a doação com usufruto atrai tanto?
Vamos ser justos. A doação com usufruto tem seu charme, especialmente para quem não quer lidar com a burocracia de uma holding ou a complexidade de um trust.
- Fuga do inventário: Este é o principal atrativo. De fato, no momento do falecimento do doador-usufrutuário, o usufruto se extingue e a propriedade se consolida no nu-proprietário sem a necessidade de um novo inventário sobre aquele bem. Uma dor de cabeça a menos para os filhos.
- Economia (aparentemente) de ITCMD: A doação em vida geralmente permite pagar o ITCMD sobre um valor venal menor do que o de mercado, ou até mesmo aproveitar faixas de isenção ou alíquotas mais baixas, dependendo do estado e da época da doação. Além disso, muitos estados permitem que o ITCMD sobre a doação seja calculado apenas sobre o valor da nu-propriedade (cerca de 2/3 do valor do bem), o que reduz o imposto inicial.
- Manutenção do uso e renda: O doador não perde a capacidade de morar no imóvel, ou de receber os aluguéis dele. O controle sobre o "fruto" do bem permanece.
Até aqui, tudo lindo. O problema é que a vida, assim como o Direito Tributário e as relações familiares, é muito mais complexa do que uma única linha de raciocínio.
Quando a flexibilidade vira um problema?
Este é o maior calcanhar de Aquiles da doação com usufruto. Você acha que tem controle porque detém o uso. Mas perde a propriedade, e com ela, a flexibilidade.
- Vender o imóvel: Imagine que você, usufrutuário, precisa vender aquele apartamento que você doou para seu filho. Uma emergência de saúde, uma nova oportunidade de negócio, ou simplesmente querendo liquidez. Para vender o imóvel, você precisará da anuência do seu filho (o nu-proprietário) e, pasme, da esposa ou marido dele (se casados em comunhão de bens). E se o filho não quiser vender? Ou se quiser vender, mas o cônjuge não concordar? Você, o doador, está refém de terceiros. Seu patrimônio virou uma âncora.
- Garantia e financiamentos: Precisa oferecer o imóvel como garantia para um empréstimo ou financiamento? Esqueça. O imóvel não é mais seu. Você não pode aliená-lo sem a concordância dos nu-proprietários. Sua capacidade de alavancagem financeira, que pode ser crucial em um momento de crise ou oportunidade, está severamente comprometida.
- O "imprevisto" dos nu-proprietários: E se seu filho (nu-proprietário) se endividar, falir ou se divorciar? A nu-propriedade pode ser alcançada por credores, partilhada em divórcio. Você, o usufrutuário, verá o bem que um dia foi seu virar objeto de litígio alheio, com o direito de uso comprometido.
Fábrica de conflitos
A rigidez da doação com usufruto também é um terreno fértil para as brigas familiares.
- Desacordos: Quem paga o IPTU? Quem paga o condomínio? E as reformas? Quem decide qual reforma fazer? Se o doador quer vender e o nu-proprietário não, a semente da discórdia está lançada.
- O "favor": Se o nu-proprietário concorda em vender, qual o valor da sua parte? E da parte do usufrutuário? A negociação pode ser tensa e gerar ressentimento. O que era para ser uma bênção, vira uma fonte de pedidos de "favores".
- Reversão da doação: Só é possível em casos muito específicos (ingratidão do donatário, descumprimento de encargos). O arrependimento do doador é, na prática, irrelevante. Você se desfez do bem, e não há volta.
O "barato" que sai caro
A "economia" do ITCMD na doação com usufruto é muitas vezes ilusória, especialmente com as recentes mudanças legislativas e a postura mais agressiva do Fisco.
- ITCMD progressivo: Como discutimos na reforma tributária, a progressividade do ITCMD é agora obrigatória. Alíquotas de 8% se tornarão mais comuns, e a "economia" inicial pode ser mitigada ou anulada.
- Valor de mercado x valor venal/contábil: A Receita Federal e as Secretarias de Fazenda Estaduais estão cada vez mais de olho na base de cálculo do ITCMD. O uso do valor venal (de IPTU, por exemplo) para a doação, que é significativamente menor que o valor de mercado, está sendo combatido. O que era uma "economia" pode virar uma autuação com juros e multa sobre a diferença.
- Ganho de capital: Este é um dos mais cruéis. Se o imóvel for vendido pelos nu-proprietários após a extinção do usufruto (ou mesmo antes, com anuência), a base de cálculo para o Imposto de Renda sobre o Ganho de Capital será o valor da doação. Se você doou um imóvel que custou R$ 100 mil, mas vale R$ 1 milhão hoje, e esse valor de R$ 100 mil foi o da doação, o IR sobre o Ganho de Capital incidirá sobre R$ 900 mil. Uma paulada gigantesca que poderia ter sido evitada com um planejamento diferente.
Alternativas Inteligentes
Criticar é fácil: O difícil é apresentar soluções que realmente funcionem. A doação com usufruto tem seu lugar em nichos muito específicos e com um patrimônio muito simplificado. Mas, para a maioria dos casos, há ferramentas mais eficazes e flexíveis.
Holding (bem estruturada): Ao contrário da doação com usufruto, a holding mantém a propriedade dos bens sob a Pessoa Jurídica. Isso dá flexibilidade na gestão, permite a venda de bens com maior agilidade (com o doador/patriarca mantendo o controle da PJ), e a sucessão se dá sobre as quotas da empresa, o que pode ser muito mais fluido se houver um acordo de sócios bem feito. O controle é mantido onde importa.
Seguro de vida resgatável: Em vez de "engessar" o bem, crie liquidez. Um seguro de vida resgatável permite ao patriarca ter acesso aos recursos em vida, se precisar. E, no falecimento, o capital (isento de ITCMD e IR) entra em poucos dias na mão dos herdeiros, permitindo que eles comprem o bem que você queria doar (seja da holding, ou de outros herdeiros) ou paguem os custos de inventário sem precisar vender o patrimônio.
Testamento: Se a simplicidade é crucial, um testamento, aliado a uma boa conversa com a família, é superior. Ele não evita o inventário, mas o organiza, definindo quem fica com o quê e evitando brigas. O grande diferencial: o doador mantém 100% da propriedade e controle sobre seus bens até o último dia de vida, podendo vendê-los, hipotecá-los ou modificá-los a qualquer momento, sem depender da anuência de ninguém.
Fundos exclusivos/específicos: Para patrimônios financeiros, esses fundos oferecem gerenciamento profissional, sucessão de cotas com menos burocracia e, dependendo da estrutura, vantagens tributárias que o usufruto não oferece.
Conclusão: Simplicidade que pode sair caro
A doação com usufruto não é uma ferramenta ruim. É uma ferramenta que exige um contexto muito específico e uma compreensão profunda de suas limitações. Fora desse contexto, ela se transforma em um "test drive" sem airbag, freio e direção, onde o "carro" é o seu patrimônio e os passageiros, sua família.
A "economia" imediata que ela promete muitas vezes se paga com juros altíssimos em forma de engessamento, conflitos familiares e custos tributários inesperados. O planejamento sucessório não é sobre encontrar a "solução mais barata", mas a "solução mais inteligente" para a sua realidade. E, para a maioria das realidades complexas de quem construiu um patrimônio, a simplicidade da doação com usufruto é, na verdade, sua maior maldição.
Pense bem antes de doar com usufruto. Porque o que parece um atalho para a tranquilidade pode virar um beco sem saída.


