É ilegal adotar a Reurb para situações isoladas
A regularização fundiária urbana somente deve ser aplicada na regularização de núcleo urbano informal consolidado, ou seja, em assentamento formado por um conjunto de pessoas e edificações.
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Atualizado às 15:22
Nos termos do art. 11, inciso I, da lei 13.465/17, considera-se núcleo urbano o "assentamento humano" que deve ser "constituído por unidades imobiliárias". A redação legal já indica, portanto, que a regularização fundiária urbana é um procedimento coletivo, que incide sobre realidades compostas por múltiplas ocupações, e não sobre casos individuais.
Para o Direito Urbanístico, conceitua-se "assentamento humano" como o agrupamento de pessoas, edificações e atividades organizadas em torno da vida urbana. No Brasil, na ocupação moderna do solo urbano, o assentamento humano ocorre através da implantação de loteamentos, desmembramentos, condomínios urbanísticos (de casas ou de lotes), bem como lotes, quadras ou bairros, favelas e comunidades ocupados por agrupamentos humanos com finalidades urbanas (moradia, comércio, serviços, indústria, recreação).
Reforça o entendimento de que a lei 13.465/17 somente deve ser aplicada quando destinada a um conjunto de ocupações é que o já citado art. 11, inciso, menciona que o núcleo urbano deve ser "constituído por unidades imobiliárias de área inferior à fração mínima de parcelamento prevista na Lei nº 5.868, de 12 de dezembro de 1972", ou seja, regulariza-se um conjunto de lotes, casas ou apartamentos, respeitando o limite de área de cada unidade imobiliária indicada pelo legislador.
Essa orientação encontra confirmação na própria técnica legal exigida para qualquer projeto de regularização. O art. 35, inciso I, da lei 13.465/17 exige o levantamento planialtimétrico cadastral como parte integrante do projeto de regularização fundiária, com a demonstração das unidades e das construções. De modo complementar, o art. 36, inciso II, determina que o plano urbanístico, também integrante do projeto de regularização fundiária, indique as unidades imobiliárias. Em ambos os dispositivos o legislador refere-se expressamente às "unidades" no plural, impondo a identificação, delimitação e demonstração técnica de um conjunto de unidades imobiliárias, exigências que são incompatíveis com a pretensão de regularizar apenas um caso isolado dentro de uma gleba indivisa.
O inciso III, do art. 40, da lei 13.465/17 exige que a decisão de aprovação da regularização fundiária urbana identifique e declare os ocupantes de "cada unidade imobiliária". O art. 41, por sua vez, dispõe que a Certidão de Regularização Fundiária deve conter o "nome do núcleo urbano regularizado" e, quando houver, a "indicação numérica de cada unidade regularizada". O §1º, do art. 44, prevê que o Oficial de Cartório de Imóveis realizará a "abertura de matrículas individualizadas para os lotes" e o "registro dos direitos reais indicados na CRF junto às matrículas dos respectivos lotes".
As finalidades e os instrumentos previstos na lei também corroboram essa interpretação. Os incisos I e II, do art. 10, da lei 13.465/17 estabelecem objetivos e medidas que visam, entre outros pontos, criar unidades imobiliárias em favor dos ocupantes do núcleo e organizar o território urbano de forma integrada, com objetivos redigidos no plural e voltados à solução de problemas que atingem conjuntos de ocupações. Assim, a própria sistemática normativa da Reurb evidencia que o legislador pensou o instituto como resposta a uma necessidade de regularização coletiva e ordenação territorial.
Em razão dessa concepção, a Reurb não se aplica a situações puramente isoladas. Por exemplo, não pode ser instaurado um procedimento de regularização fundiária urbana para atender exclusivamente uma edificação individual em terreno irregular ou à ocupação singular de um único lote, pois o instituto pressupõe pluralidade de unidades e repercussão urbanística. Converter a Reurb em mecanismo de legalização individual equivaleria a desvirtuar sua finalidade pública e social, transformando um instrumento de inclusão urbana coletiva em simples técnica de regularização patrimonial.
Adicionalmente, sob o prisma registral e técnico, é fisicamente e juridicamente impossível que o Cartório de Registro de Imóveis abra uma matrícula isolada dentro de uma gleba maior sem que antes ocorra o parcelamento formal daquela gleba, com definição das áreas confrontantes, das áreas públicas e das áreas de uso comum. O princípio da especialidade objetiva, que norteia o registro imobiliário, impede o fracionamento cartorial de área indivisa. O parcelamento clandestino ou irregular não comporta a aplicação da Reurb de modo isolado. Antes de qualquer titulação individual, é indispensável que o núcleo seja tecnicamente identificado, delimitado e descrito, mediante georreferenciamento e levantamento cadastral para permitir o desmembramento registral da gleba-mãe.
O TJ/SP, em recente decisão, deixou de forma bem clara que a regularização fundiária urbana se "destina apenas a núcleos urbanos informais (art. 9º, caput e §2º, da Lei nº 13.465/2.017) e não se presta, portanto, para regularizar ocupações individuais isoladas". Em destaque, um trecho do acórdão:
A regularização administrativa tem destinação coletiva e há de ser conduzida pelo Poder Executivo em núcleo urbano informal, e, por expressa disposição legal, apenas a este a Regularização Fundiária Urbana (Reurb) se destina (art. 9º, caput e §2º, da Lei nº 13.465/2.017) e não se presta, portanto, para regularizar ocupações individuais isoladas, como é o caso do imóvel em comento, em relação ao qual o Município de Campos do Jordão demonstrou, de forma clara e pormenorizada (fls. 118/123), não fazer parte do núcleo de interesse social do Jardim do Embaixador. (Agravo de Instrumento 2262738-35.2025.8.26.0000; Relator: Bandeira Lins; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Foro de Campos do Jordão - 1ª Vara; Data do Julgamento: 28/08/2025; Data de Registro: 28/08/2025)
Em 2021 o Ministério Público de Santa Catarina enviou ao município de Florianópolis uma recomendação para que a regularização fundiária urbana, criada por lei Federal para regularizar núcleos urbanos informais, não seja utilizada para legalizar construções clandestinas isoladas, embargadas judicial ou administrativamente ou com sentença determinando a demolição. A recomendação foi expedida pela 32ª Promotoria de Justiça da Capital. De acordo com o promotor de Justiça Paulo Antonio Locatelli, Florianópolis teria aberto procedimentos para promover a regularização fundiária urbana de edificações de forma individualizada que não caracterizam núcleos urbanos informais.
Nesse quadro, cabe destacar a tese da "Reurb Simplificada", desenvolvida por Jamilson Lisboa Sabino e publicada no portal Migalhas, amplamente adotada pelos registradores imobiliários. A "Reurb Simplificada" é aplicável apenas quando o núcleo urbano é formalmente constituído: quando o parcelamento encontra-se aprovado, implantado com infraestrutura e registrado no Cartório de Registro de Imóveis, restando pendências unicamente quanto à titulação dos ocupantes. Mesmo nesta hipótese excepcional, a "Reurb Simplificada" exige a instauração de um processo administrativo coletivo de regularização fundiária urbana, destinado a atender o núcleo como um todo. O processo deve ser aberto pelo município e compreender a totalidade das unidades imobiliárias do parcelamento.
No âmbito desse processo coletivo de "Reurb Simplificada", a titulação dos ocupantes pode ser encaminhada ao registro de imóveis de forma coletiva ou por etapas, isto é, reunindo um conjunto de unidades imobiliárias ou, conforme prevista a operacionalização, uma unidade por vez, mas sempre dentro de um único procedimento que vise a regularização dominial do conjunto. Em nenhuma hipótese a "Reurb Simplificada" autoriza a abertura de um processo de Reurb específico para atender apenas uma unidade imobiliária, ocupada de modo unifamiliar, nem tampouco destina-se a suprir situações de ocupação isolada em loteamentos aprovados e registrados. Proceder de outro modo implicaria violação ao princípio da legalidade na Administração Pública, previsto no art. 37 da CF/88 e ao escopo coletivo delineado pela lei 13.465/17, além de contrariar a técnica registral do plano urbanístico que exige a demonstração das unidades em conjunto.
Por exemplo: em um loteamento com dezenas de lotes, aprovado, implantado e registrado, o abandono de um lote pelo proprietário e sua ocupação posterior por um posseiro não configura hipótese apta à instauração de Reurb para solucionar aquela ocupação isolada. Essa situação deve ser dirimida pelos meios legais próprios (usucapião), não podendo a Administração Pública abrir procedimentos de regularização fundiária destinados apenas a sanar a irregularidade de uma unidade em particular. Se isso fosse possível, estaria criada a usucapião outorgada pelo prefeito através de títulos de legitimação fundiária e legitimação de posse, em absoluta violação ao ordenamento jurídico, já que a lei não conferiu essa atribuição ao Poder Executivo municipal. Não podemos negar que essa interpretação causa um paradoxo, o prefeito pode outorgar centenas de títulos para um núcleo urbano informal em processo de regularização, mas não pode aceitar a tramitação e deferimento de um processo isolado para outorgar título de legitimação fundiária ou legitimação de posse ao seu ocupante. Isso acontece porque o gestor público somente poder atuar dentro da legalidade estrita. Se tal atributo fosse possível, a lei deveria deixar isso disposto de modo simples, conciso, objetivo e, principalmente, coercitivo no texto da lei 13.465/17. A regularização fundiária urbana exclusivamente de unidade imobiliária isolada não é regulamentada pela legislação Federal e, dessa forma, é vedada.
Em suma, a leitura sistemática e teleológica da lei 13.465/17, reforçada pelas exigências técnicas dos arts. 11, 35 e 36 demonstra, de forma inequívoca, que a Reurb é um instrumento destinado a núcleos urbanos constituídos por múltiplas unidades imobiliárias e ocupantes. A aplicação do instituto a situações isoladas é incompatível com o texto legal, com a técnica registral e com os princípios constitucionais que regem a Administração Pública e a política urbana.
A Reurb, inclusive na modalidade simplificada, permanece, assim, um processo coletivo, técnico e jurídico, cujo sujeito é o núcleo urbano e não o imóvel isolado. Só por meio dessa compreensão coletiva será possível preservar a finalidade originária do instituto: ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.


