A consolidação da Selic: Análise do Tema 1.368 (antes da lei 14.905/24)
Artigo completo sobre o Tema 1.368 do STJ: Consolida Selic para dívidas civis antes da lei 14.905/24. Análise clara das implicações para processos e coisa julgada, gerando segurança jurídica.
sexta-feira, 17 de outubro de 2025
Atualizado às 15:02
1. Introdução: O fim de uma controvérsia, o início de uma nova certeza
A recente decisão da Corte Especial do STJ, proferida na sessão de 15/10/25, ao definir a tese jurídica para o Tema repetitivo 1.368, representa um marco decisivo na interpretação do art. 406 do CC.
A controvérsia sobre a taxa de juros moratórios aplicável às dívidas civis, antes da entrada em vigor da lei 14.905/24, encontra agora uma resposta definitiva e qualificada. Com base na manifestação do ministro relator Ricardo Villas Bôas Cueva no REsp 2.199.164/PR, amplamente reportada pela imprensa especializada, este artigo destrincha os fundamentos que levaram à consolidação da taxa Selic como o índice de juros moratórios legais para o período em questão, reforçando a segurança jurídica e a coesão do sistema judicial brasileiro.
2. O contexto do debate: Art. 406 do CC e a chegada da lei 14.905/24
Há anos, o art. 406 do CC/02 - ao estabelecer que os juros moratórios seriam "fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional" - gerava intensos debates. Duas principais correntes interpretativas divergiam: uma defendia a aplicação dos juros de 1% ao mês (com base no art. 161, § 1º, do CTN), e outra, a incidência da taxa Selic, por ser esta a taxa aplicada aos impostos federais.
A lei 14.905, de 2024, ao alterar a redação do art. 406, trouxe uma nova perspectiva para o futuro. Contudo, a interpretação para o período anterior à sua vigência (fixada em 30/8/24) permaneceu como um desafio para a uniformidade jurisprudencial, tornando a afetação do Tema 1.368 pelo STJ uma medida de extrema necessidade para pacificar o entendimento.
3. A delimitação da controvérsia pelo STJ (Tema 1.368)
A questão jurídica central que a Corte Especial se propôs a dirimir, conforme reiterado pelo ministro relator Ricardo Villas Bôas Cueva, foi precisamente:
"definir se a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic) deve ser considerada para a fixação dos juros moratórios a que se referia o artigo 406 do Código Civil, antes da entrada em vigor da Lei 14.905 de 2024."
4. A fundamentação da decisão: Os alicerces da tese da Selic
A manifestação do ministro relator Ricardo Villas Bôas Cueva, ecoada pela imprensa especializada, expôs os sólidos alicerces que sustentam a aplicação da Selic, ratificando uma linha interpretativa já construída pelas Cortes Superiores:
- Selic como taxa preponderante para impostos Federais: O ministro enfatizou que a Selic é, e sempre foi, a única taxa atualmente em vigor para a mora no pagamento de impostos federais. A remissão do art. 406 do CC, portanto, aponta diretamente para ela.
- Status constitucional reforçado: A EC 113/21 conferiu status constitucional à Selic, prevendo-a como a taxa única para atualização monetária e compensação da mora em demandas que envolvem a Fazenda Pública. Embora direcionada a relações com o poder público, essa previsão solidifica o reconhecimento da Selic como um índice de abrangência nacional que já incorpora juros e correção.
- Coerência econômica e evitar distorções: O relator salientou que "outra conclusão levaria a um cenário paralelo em que o credor civil passaria a fazer jus a uma remuneração superior a qualquer aplicação financeira bancária, pois os bancos são vinculados à Selic". Essa observação pragmática sublinha a importância de manter a coerência do sistema financeiro e evitar que o judiciário crie um "mercado" de juros mais atrativo do que o próprio mercado regulado.
- Função compensatória dos juros moratórios: Ficou claro que os juros moratórios têm função primordialmente compensatória, visando cobrir o deságio do capital do credor. A função punitiva é reservada a outras previsões, como a multa moratória contratual. O ministro ainda invocou o art. 404 do CC, que permite ao juiz conceder indenização suplementar caso os juros não cubram o prejuízo, reforçando a natureza da Selic como reparação e não enriquecimento.
- Harmonia macroeconômica: A fixação de juros de mora distintos do parâmetro nacional viola o art. 406 do CC e causa impacto macroeconômico. A lei civilista, ao remeter à taxa dos impostos Federais, busca "garantir harmonia entre obrigações públicas e privadas", promovendo um alinhamento com os ajustes dos juros oficiais conforme a macroeconomia.
- Precedentes qualificados irrefutáveis: A consolidação jurisprudencial. A decisão do STJ não se baseia apenas em argumentos lógicos e econômicos, mas em uma sólida construção jurisprudencial que remonta a mais de uma década. O ministro Cueva fez questão de ressaltar a seguinte cadeia de precedentes:
1. EREsp 727.842/SP (Corte Especial do STJ, 2008): Este foi o marco inicial da pacificação da matéria no âmbito do STJ. Em 8/9/08, a Corte Especial, sob a relatoria do ministro Teori Albino Zavascki, firmou o entendimento de que a taxa de juros moratórios do art. 406 do CC é a Selic, por ser a mesma que incide sobre os tributos Federais. Sua ementa destacou:
"CIVIL. JUROS MORATÓRIOS. TAXA LEGAL. CÓDIGO CIVIL, ART. 406. APLICAÇÃO DA TAXA Selic. [...] Assim, atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - Selic, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02)."
2. Temas 99, 112 e 113 (Recursos Especiais Repetitivos do STJ): Anteriormente, em recursos especiais repetitivos, a 1ª seção do STJ já havia definido as teses no sentido de ser a Selic a taxa legal referenciada na redação original do art. 406 do CC, especialmente em casos que envolviam o FGTS, consolidando essa interpretação em áreas específicas.
3. REsp 1.795.982/SP (Corte Especial do STJ, 2024): Em 21/8/24, a própria Corte Especial reafirmou o entendimento do EREsp 727.842/SP, com a relatoria para o acórdão do ministro Raul Araújo. Este julgamento revisitou a matéria, incorporando novos argumentos e reforçando a inadequação do 1% ao mês do CTN para dívidas civis e a supremacia da Selic, inclusive à luz da EC 113/21. Sua ementa detalhou todos os argumentos que pavimentaram a tese.
4. RE 1.558.191 (STF, 2025): A validade dessa construção jurisprudencial do STJ foi confirmada pelo STF em 15/9/25 (publicado em 8/10/25), ao desprover o RE 1.558.191 de São Paulo, sob a relatoria do ministro André Mendonça. O STF reiterou que a matéria é de cunho infraconstitucional, vedada a revisão em RE, e que, mesmo que o fosse, sua própria jurisprudência, notadamente a ADC 58/DF, já reconhece a validade da taxa Selic como índice para condenações cíveis em geral. A ementa do RE 1.558.191 estabelece:
"Ementa: direito Civil e Processual Civil. Recurso Extraordinário. juros de mora. Obrigações civis. Art. 406 do Código Civil. Taxa Selic. Natureza infraconstitucional. Impossibilidade de reexame. Precedentes. Recurso não provido."
5. Essa cadeia de precedentes demonstra a irrefutabilidade da tese da Selic, com chancela tanto do STJ quanto do STF.
6. Previsibilidade e não cumulação: Por fim, o ministro Cueva destacou que a Selic, por sua natureza, já engloba juros de mora e correção monetária. Isso evita a cumulação indevida de índices distintos (bis in idem), garantindo maior previsibilidade e alinhamento com o sistema econômico nacional. O colegiado rejeitou, inclusive, pedido de modulação temporal dos efeitos para que a Selic fosse obrigatória apenas para novos processos, confirmando sua aplicação também aos casos pendentes de trânsito em julgado.
5. A tese jurídica definida para o Tema 1.368 e sua obrigatoriedade
Para fins do art. 1.040 do CPC, a tese jurídica fixada pelo STJ para o Tema 1.368 é a seguinte:
"O artigo 406 do Código Civil de 2002, antes da entrada em vigor da Lei 14.905 de 2024, deve ser interpretado no sentido de que é a Selic, a taxa de juros de mora aplicável às dívidas natureza civil por ser esta a taxa em vigor para atualização monetária e a mora no pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional."
No caso concreto que originou a afetação (REsp 2.199.164/PR), o recurso especial foi provido, aplicando-se a tese firmada.
A partir da publicação do acórdão do Tema 1.368, sua natureza vinculante (art. 927 do CPC) impõe a todos os juízes e tribunais de instâncias inferiores a estrita observância desta diretriz.
6. Implicações práticas da tese vinculante e o "marco temporal" na aplicação da lei 14.905/24
A definição da tese do Tema 1.368 solidifica a interpretação para o período anterior à lei 14.905/24, estabelecendo a Selic como o índice legal de juros moratórios para dívidas civis. Esta decisão, juntamente com a sua tese sobre o "marco temporal", forma um panorama completo e coeso para a aplicação dos encargos de mora.
Essa solução converge para a seguinte compreensão:
1. Para o período anterior a 30/8/24 (lei 14.905/24): A força da Selic e a reforma em instância recursal. Nos processos que ainda não transitaram em julgado, mesmo que a decisão de primeira instância ou acórdão anterior tenha definido outros índices de juros e atualização monetária (por exemplo, INPC + 1% a.m.), a aplicação da Taxa Selic será compulsória. A instância recursal (seja o Tribunal de Justiça, TRF ou o próprio STJ), ao apreciar a matéria devolvida, deverá se manifestar sobre o tema e adequar a decisão ao novo repetitivo, reformando a sentença para aplicar a Selic em conformidade com o Tema 1.368. Isso garante a uniformidade jurisprudencial e o respeito ao precedente vinculante. É necessário ressaltar, contudo, que essa reforma se dará dentro dos limites do recurso interposto, obedecendo-se ao princípio da adstrição/congruência e evitando a reformatio in pejus, caso o ponto específico dos juros não tenha sido impugnado pela parte adversa.
2. Para o período a partir de 30/8/24 (lei 14.905/24): Incidirá o novo regramento trazido pela lei 14.905/24, que valoriza a autonomia da vontade para encargos contratuais e estabelece uma metodologia específica para a taxa legal de juros.
3. Coisa julgada intocável: Em respeito à segurança jurídica e à autoridade do art. 5º, XXXVI, da CF, se a sentença ou acórdão já definiu expressamente os índices de juros e correção monetária e transitou em julgado, estes prevalecem. O devedor/vencido não poderá alegar a incorreção dos índices adotados na decisão com base no Tema 1.368 do STJ ou na lei 14.905/24, pois a coisa julgada impede qualquer revisão, conforme o entendimento já consolidado no EDcl no AREsp 2.723.247 - RS.
Esta harmonia interpretativa é crucial. O STJ, ao definir o Tema 1.368, não apenas resolve a questão da Selic para o passado, mas valida a necessidade de um critério de transição entre regimes jurídicos, confirmando a justeza do "marco temporal" como a solução mais equilibrada e juridicamente consistente. A decisão traz previsibilidade, evita o retrabalho massivo de recálculos e confere a tão almejada segurança jurídica.
7. Conclusão: Uma virada jurisprudencial em prol da coerência
A fixação da tese do Tema 1.368 pelo STJ é um capítulo final na longa discussão sobre os juros moratórios do art. 406 do CC antes da lei 14.905/24. Ao confirmar a Selic, o Tribunal não apenas unifica a jurisprudência, mas reforça princípios macroeconômicos, a função compensatória dos juros e a estabilidade do sistema legal.
Para a advocacia, essa decisão qualificada e vinculante significa maior clareza e previsibilidade na atualização de cálculos e na condução de processos. O "antes" da lei 14.905/24 está agora solidamente definido, harmonizando-se com o "depois" e com a inviolabilidade da coisa julgada, consolidando um panorama jurídico mais seguro e eficiente para todos os envolvidos.
______________________
BRASIL. Conselho Monetário Nacional. Resolução nº 5.171, de 30 de agosto de 2024. Define a metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 ago. 2024.
BRASIL. Lei nº 14.905, de 28 de junho de 2024. Altera o Código Civil para dispor sobre a taxa legal de juros moratórios e outros temas correlatos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 01 jul. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Agravo em Recurso Especial nº 2598169 - SC (2024/0109226-2). Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti. Julgado em 15 nov. 2024. DJe 19 nov. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial nº 2723247 - RS (2024/0307024-9). Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Julgado em 24 out. 2024. DJe 30 out. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 727.842/SP. Relator: Ministro Teori Albino Zavascki. Corte Especial, julgado em 08 set. 2008. DJe 20 nov. 2008.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial n. 1.795.982/SP. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão (original). Relator para acórdão: Ministro Raul Araújo. Corte Especial, julgado em 21 ago. 2024. DJe 23 out. 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Recurso Extraordinário n. 1.558.191. Relator: Ministro André Mendonça. Segunda Turma, julgado em 15 set. 2025. Publicado em 08 out. 2025.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível nº 1004181-81.2023.8.26.0176. Relator: Paulo Alcides. Julgado em 06 set. 2024.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Embargos de Declaração Cível nº 1000517-66.2024.8.26.0286. Relator: Marcio Bonetti. Julgado em 21 out. 2024.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Embargos de Declaração Cível nº 1000785-90.2023.8.26.0566/50000. Relatora: Rosana Santiso. Julgado em 11 nov. 2024.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Embargos de Declaração Cível nº 1001180-09.2024.8.26.0482/50000. Relatora: Maria Lúcia Pizzotti. Julgado em 06 set. 2024.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Embargos de Declaração Cível nº 1007553-78.2023.8.26.0001/50000. Relatora: Jonize Sacchi de Oliveira. Julgado em 12 nov. 2024.


