Tema 1.095: Quando distinguir? Uma lição do TJ/RJ
O fator determinante para a aplicação ou o afastamento do Tema 1.095/STJ reside nos requisitos fáticos que a própria Corte estabeleceu.
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Atualizado às 15:00
1. Introdução
A 2ª Seção do STJ, ao julgar o Tema 1.095, estabeleceu um precedente vinculante de enorme impacto para o mercado imobiliário. A tese firmada pacificou que, em contratos de compra e venda com garantia de alienação fiduciária, a resolução por inadimplemento do devedor deve seguir o rito da lei 9.514/97, afastando-se o CDC. Todo precedente contém a ratio decidendi (a razão de decidir, a norma de caráter geral) e os obiter dicta (argumentos secundários, comentários "à margem", que não são vinculantes). Distinguir um do outro pode ser extremamente complexo e muita das vezes, o acórdão não deixa claro qual argumento foi verdadeiramente essencial para o resultado.
Essa dinâmica é ilustrada de forma magistral em duas decisões do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acerca da aplicação ou não do Tema 1.095/STJ: em um caso, o precedente é aplicado; no outro, afastado pela técnica do distinguishing.
A controvérsia central em ambos os casos era a mesma: a rescisão de um contrato de compra e venda de imóvel com cláusula de alienação fiduciária e a disputa sobre qual regime jurídico aplicar - o CDC ou a lei 9.514/1997. Dessa forma, o objetivo deste artigo é demonstrar que a ausência dos requisitos fáticos estabelecidos no Tema 1.095/STJ - como o registro da garantia e a constituição em mora- revelam-se determinantes para a sua aplicação direta quanto para o seu afastamento (distinguishing).
2. O Tema 1.095 do STJ: Origem, fundamentos e tese fixada
O REsp 1.891.498/SP que deu origem ao tema nasceu de uma controvérsia clássica: a disputa entre a aplicação do CDC e da lei especial em uma rescisão contratual. No caso paradigma, o TJSP havia determinado a restituição de 90% dos valores pagos com base na norma consumerista, mas o STJ reformou a decisão.
A Corte Superior entendeu que a lei 9.514/1997, por ser posterior e específica, criou um procedimento próprio que não colide com o art. 53 do CDC. Isso porque a lei especial, ao prever a consolidação da propriedade em nome do credor e a subsequente venda do imóvel em leilão, também garante ao devedor a devolução do saldo que eventualmente sobejar após a quitação da dívida e das despesas.
O ponto crucial, no entanto, está nos pressupostos delimitados pela própria tese, que assim dispõe:
"Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/1997 [...], afastando-se, por conseguinte, a aplicação do CDC."
Portanto, a própria ratio decidendi do precedente estabelece como requisitos inafastáveis para sua aplicação: (1) o registro do contrato e (2) a constituição regular em mora do devedor. Ausentes tais elementos, a solução deve seguir o regime civilista ou consumerista.
Neste julgamento, a 2ª Seção do STJ consolidou o entendimento de que o procedimento especial da lei 9.514/1997 prevalece sobre o CDC somente quando o contrato estiver devidamente registrado e o devedor constituído em mora. O voto do relator, ministro Marco Aurélio Buzzi, enfatizou que o regime fiduciário não contraria o art. 53 do CDC, pois é assegurada a devolução de eventual saldo remanescente. Assim, o STJ estabeleceu como tese:
"Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/97 [...], afastando-se, por conseguinte, a aplicação do CDC."
O precedente, portanto, delimitou com precisão os requisitos para a incidência da norma especial: o registro do contrato, a constituição regular em mora e o inadimplemento. Na ausência desses elementos, a solução deve seguir o regime civilista ou consumerista(ABELHA;GOMIDE, 2023).
3. Tema 1.095/STJ: confrontando recentes julgados do TJ/RJ
Perpassando para o primeiro caso, a controvérsia teve início quando consumidores, diante de dificuldades financeiras, ajuizaram ação para rescindir um contrato de promessa de compra e venda de um imóvel na planta. O contrato, firmado com uma construtora local, continha pacto de alienação fiduciária em garantia com o banco. Invocando o art. 53 do CDC, que veda a perda total das prestações pagas, os adquirentes pleitearam a devolução de parte dos valores investidos.
Em primeira instância, o pedido foi julgado procedente. O juízo condenou a incorporadora a restituir 80% do montante pago, fundamentando a decisão no regime protetivo do CDC. O magistrado destacou dois fatos cruciais: o contrato de alienação fiduciária não havia sido registrado no cartório de imóveis antes do ajuizamento da ação e os consumidores jamais foram constituídos em mora, circunstâncias que, segundo a sentença, afastavam o rito especial da lei 9.514/97.
Inconformada, a incorporadora apelou (apelação cível 0008506-25.2017.8.19.0014), sustentando que a mera existência de pacto fiduciário já seria suficiente para atrair a aplicação do Tema 1.095 do STJ, independentemente do momento do registro.
Ao analisar o recurso, a 19ª Câmara de Direito Privado do TJ/RJ aplicou com rigor técnico a teoria dos precedentes. O colegiado reconheceu que a tese fixada pelo STJ é clara ao condicionar a prevalência da lei especial a dois requisitos constitutivos: o devido registro do contrato e a regular constituição em mora do devedor.
Como no caso concreto ambos os requisitos estavam ausentes, o Tribunal manteve a sentença no ponto que afastou a aplicação do Tema 1.095, mantendo a rescisão do contrato sob a égide do CDC e o direito dos consumidores à restituição parcial dos valores.
Em contrapartida, a 3ª Câmara de Direito Privado, ao julgar a apelação cível 0031759-49.2015.8.19.0002, chegou à conclusão oposta. Naquele caso, o Tribunal aplicou o Tema 1.095 e afastou a incidência do CDC. A razão? As circunstâncias fáticas eram distintas e se amoldavam perfeitamente à ratio decidendi do precedente.
Conforme destacado no acórdão, o contrato de compra e venda continha a cláusula de alienação fiduciária "devidamente registrada no RGI". Uma vez preenchido o requisito essencial exigido pelo STJ, a consequência jurídica foi a aplicação integral do rito da lei 9.514/1997 (TJ/RJ, 2024).
Apelação Cível. Ação de rescisão de contrato de compra e venda de imóvel. [...] A 2ª Seção do STJ, por ocasião do julgamento do REsp 1.891.498/SP (Tema 1.095), [...] consolidou o entendimento de que "em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/1997, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do CDC." No caso dos autos, o contrato de compra e venda [...] contém cláusula [...] devidamente registrada no RGI, preenchendo os requisitos exigidos pelo Tema 1.095 do STJ, afastando-se, assim, a incidência do CDC [...]. (TJ/RJ, apelação cível 0031759-49.2015.8.19.0002, rel. des. Eduardo de Azevedo Paiva, 3ª Câmara de Direito Privado, julgado em 17/7/2024).
A análise confrontada das duas decisões revela não uma contradição, mas uma aplicação acertada do direito. O TJ/RJ demonstra compreender que a força de um precedente não está em sua aplicação cega e automática, mas na análise criteriosa das circunstâncias fático-jurídicas que legitimam ou afastam sua incidência, materializando a verdadeira justiça do caso concreto.
E esse é o ponto, uma vez que o CPC de 2015 consolidou no ordenamento jurídico um sistema de precedentes vinculantes (art. 927), rompendo com a tradição de aplicação assistemática da jurisprudência exigindo do julgador uma atividade hermenêutica qualificada para identificar a ratio decidendi do paradigma e verificar sua pertinência ao caso concreto (MITIDIERO, 2015).
A ratio decidendi corresponde ao núcleo normativo do precedente, ou seja, ao fundamento jurídico determinante da decisão. Distingue-se dos obiter dicta - considerações laterais sem força vinculante. A identificação precisa da ratio decidendi é, portanto, pressuposto para a correta aplicação de um precedente (TARUFFO, 2017).
Quando o caso em julgamento apresenta circunstâncias fático-jurídicas que o diferenciam substancialmente do paradigma, o julgador deve aplicar a técnica do distinguishing. Esse método consiste no afastamento do precedente em razão da ausência de identidade entre as situações. O distinguishing não representa desrespeito à autoridade da tese, mas, ao contrário, revela sua correta compreensão e aplicação (TARUFFO, 2017).
A doutrina processual enfatiza que distinguir é preservar a coerência do sistema, evitando que a regra geral de um precedente seja indevidamente estendida a situações que não compartilham de seus pressupostos (PEIXOTO, 2019). A técnica permite conciliar a segurança jurídica com a justiça do caso concreto, assegurando que cada regime normativo seja aplicado dentro de seus exatos limites.
O art. 489, § 1º, VI, do CPC, exige que a decisão que deixar de seguir um precedente invocado pela parte seja devidamente fundamentada, indicando as razões da distinção. Essa exigência reforça a necessidade de uma motivação qualificada, que confronte os fatos do precedente com os do caso concreto para demonstrar por que a diferença fática justifica a não aplicação da tese jurídica.
No contexto dos recursos repetitivos, o distinguishing assume relevância ainda maior. Os precedentes fixados sob essa sistemática possuem eficácia vinculante, mas pressupõem a existência de questões de direito comuns a múltiplos casos. O julgador que identifica uma distinção legítima não apenas pode, mas deve afastar a aplicação do precedente, fundamentando adequadamente sua decisão.
4. Conclusão
Conclui-se que a análise conjunta das duas decisões revela um Judiciário maduro e tecnicamente apurado. Longe de representarem uma contradição, os julgados demonstram a essência do sistema de precedentes: a tese não é uma regra abstrata e cega, mas uma diretriz a ser aplicada apenas quando houver identidade entre os fatos do caso concreto e os fundamentos que deram origem ao precedente.
O TJ/RJ, ao chegar a resultados distintos com base em premissas fáticas diferentes, reafirma que a segurança jurídica vem de uma análise criteriosa e individualizada de cada caso.
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Referências
ABELHA, André; GOMIDE, Alexandre. O Tema Repetitivo 1.095 do STJ: primeiras impressões. Migalhas Edilícias, São Paulo, 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/384717/o-tema-repetitivo-1095-do-stj-primeiras-impressoes-1095-do-stj-primeiras-impressoes 1095-do-stj-primeiras-impressoes. Acesso em: 15 out. 2025
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990.
BRASIL. Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 1997.
MITIDIERO, Daniel. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
PEIXOTO, Ravi. Precedentes judiciais e segurança jurídica. Salvador: JusPodivm, 2019.RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 0008506-25.2017.8.19.0014. Relatora: Des(a). Valeria Dacheux Nascimento. 19ª Câmara de Direito Privado. Julgado em [data do julgamento de 2025].
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 0031759-49.2015.8.19.0002. Relator: Des. Eduardo de Azevedo Paiva. 3ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 17 jul. 202
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 1.891.498/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Buzzi, Segunda Seção, julgado em 26 out. 2022, DJe 1 dez. 2022.
TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. São Paulo: Marcial Pons, 2019.


