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Lei do distrato x CDC: Quando a "compatibilização" vira insegurança jurídica pela destruição das bases da própria lei

A lei 13.786/18 trouxe segurança ao distrato, mas decisões recentes do STJ reabrem incertezas ao sobrepor o CDC a regras específicas.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Atualizado em 17 de outubro de 2025 13:57

A lei 13.786/18 nasceu para pôr fim a um contencioso descontrolado e construir previsibilidade nas resoluções dos compromissos de compra e venda com incorporadoras e loteadoras. Positivou parâmetros objetivos - especialmente o art. 67-A da lei 4.591/1964 (25% sobre a quantia paga e, em afetação, até 50%) e o art. 32-A da lei 6.766/1979 (critérios para loteamentos). Em síntese: segurança jurídica, equilíbrio e menor espaço para decisões erráticas.

Apesar disso, parte da jurisprudência insiste em substituir a literalidade da lei por um "CDC on steroids". O recente REsp 2.106.548/SP (3ª turma) é emblemático. Ao afirmar a "prevalência do CDC" em caso de conflito, a turma limitou a retenção total a 25% dos valores pagos (com exceção da taxa de fruição, cobrável em hipóteses estritas), e restabeleceu a devolução imediata das parcelas, afastando a forma parcelada do §1º do art. 32-A (súmula 543/STJ). Houve votos vencidos (ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Moura Ribeiro), que, com razão, advertiram para a corrosão do regime legal recém-posto. 

Onde está o problema?

  1. Antinomia mal resolvida. A 13.786/18 não "revogou o CDC"; tampouco o CDC revogou a 13.786/18. O caminho constitucional é o diálogo das fontes - e diálogo não é supremacia automática de cláusulas abertas sobre regras recentes e específicas criadas para um setor que emprega milhões. Quando a lei especial define teto, base de cálculo e regime de afetação, não cabe reescrever o sistema por via interpretativa.
  2. Base de cálculo trocada por princípio fluido. A lei ancorou a multa na quantia paga (e até 50% no patrimônio de afetação), justamente para cobrir custos, risco sistêmico e desmobilização de capital. Afastar o teto legal com o rótulo de "desvantagem exagerada" - sem demonstração concreta de abusividade no caso - devolve ao juiz a caneta que a lei pretendia retirar do casuísmo.
  3. Função econômica da afetação ignorada. O §5º do art. 67-A não é um "prêmio anti-consumidor"; é mecanismo prudencial para proteger a cadeia (obra, financiadores, adquirentes adimplentes). Se tudo volta a 25% por construção principiológica, esvazia-se a garantia setorial e se reimporta o contencioso que a lei quis mitigar.
  4. Taxa de fruição e devolução imediata com régua única. A decisão cria ressalvas não positivadas (inviabilidade de fruição em lote não edificado) e impõe imediatidade universal da restituição, ignorando a engenharia financeira dos projetos e o próprio texto do §1º do art. 32-A - solução que transfere o risco sistêmico ao fornecedor e, por tabela, ao preço de todos.

O que defendemos (e o que a lei já diz)

  • CDC como parâmetro subsidiário, não como "super-lei" que neutraliza a especialidade.
  • Observância dos tetos legais: 25% sobre a quantia paga (incorporação comum) e até 50% em patrimônio de afetação - com motivação robusta para qualquer redução, sob pena de esvaziar a norma.
  • Aplicação técnica da fruição e respeito aos demais descontos tipificados, sem ultrapassar os limites e bases de cálculo definidos pela lei.
  • Calendário legal da restituição quando cabível: caixa também é direito difuso de quem financia o setor real.

Por que isso importa

A mensagem que o mercado recebe quando precedentes relativizam o regime legal recém-estruturado é simples: o texto da lei não basta. O resultado é prêmio de risco maior, crédito mais caro, repasse de custo a consumidores adimplentes e retração de oferta - exatamente o oposto do que se espera de um sistema que busca estabilidade.

Segurança jurídica não é hostilidade ao consumidor; é condição para que todos - adquirentes, incorporadores, financiadores - tomem decisões racionais. A lei do distrato foi um passo nessa direção. Recuar ao decisionismo principiológico é, com o devido respeito, desfazer o consenso regulatório que o Congresso construiu.

Luiz Antônio Scavone Junior

Luiz Antônio Scavone Junior

Advogado, Administrador pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC/SP, Professor dos cursos de graduação, pós-graduação em Direito Imobiliário e Mestrado na Universidade Presbiteriana Mackenzie e na EPD (Escola Paulista de Direito) em São Paulo. Membro benemérito da Anacon. Autor de vários livros e, entre eles, Direito Imobiliário (Ed. Forense).

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