MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Financiamento de litígios e cessão de direitos litigiosos à luz do PL 4384/25

Financiamento de litígios e cessão de direitos litigiosos à luz do PL 4384/25

A correta distinção entre os institutos do financiamento de litígios e da cessão de direito litigioso é de imperativa relevância na geração de segurança jurídica para o mercado de ativos judiciais.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Atualizado em 17 de outubro de 2025 13:56

O crescimento exponencial dos produtos de crédito no Brasil, em regra operacionalizados por meio dos chamados FIDCs - fundos de investimento em direitos creditórios, condomínios esses que tiveram seu patrimônio incrementado em cerca de 47% nos últimos 12 meses e que caminham para chegar a R$1 trilhão sob gestão1, acabou por levar o mercado a buscar diversificação no tipo de produto adquirido por meio de tais veículos.

No mercado de situações especiais, parte relevante desse capital vem sendo alocado nos chamados ativos judiciais ou "legal claims", como são mais comumente conhecidos.

Historicamente, os ativos judiciais objeto de cessão acabavam por se restringir aos já bastante conhecidos, discutidos e ora polêmicos precatórios, que nada mais são do que requisições de pagamento expedidas pelo Judiciário para cobrar de municípios, estados ou da União, assim como de autarquias e fundações, valores devidos após condenação judicial definitiva2.

Não obstante o mercado de precatórios continue pujante, a maior competitividade pelos ativos e recentes propostas de emenda à Constituição que essencialmente alteraram prazos de pagamentos, limites de desembolso pelos entes públicos e índices de atualização dos débitos, acabaram por levar os investidores a analisarem outros ativos judiciais, dentre eles os denominados "legal claims" e o "litigation finance".

É nesse contexto que se dá a relevância de se compreender e bem delimitar as diferenças e particularidades da cessão de um ativo compreendido como "crédito", vis-à-vis de ativos tidos como meros "direitos litigiosos", uma vez que a falta de clareza com relação aos institutos pode implicar relevantes consequências de natureza processual.

E da mesma forma que não são incomuns as falhas de conceituação de crédito e direito litigioso na estruturação de operações de alienação de ativos judiciais, o recente PL 4384/25, de autoria do deputado federal Jonas Donizette, que "cria a atividade de financiamento de litígios", parece ter falhado na interpretação sobre o que efetivamente seria o financiamento de uma lide3.

Não é o intuito do presente artigo fazer uma análise sobre a necessidade de se legislar sobre a matéria do litigation finance, tampouco realizar uma análise acerca do conteúdo do PL 4384/25.

O que se busca é tão somente fazer uma análise detida sobre o aparente equívoco que o PL parece incorrer ao tratar o financiamento de litígios e cessão de direito litigioso como espécies de um mesmo gênero, de forma a se mitigar as mesmas falhas conceituais que acabam por acontecer nas operações de cessão de crédito e de direito litigioso, falhas essas que não são incomuns no mercado de special situations.

O art. 2º do PL aduz que "considera-se financiamento de litígios a operação, realizada por terceiro estranho à lide, que tenha por objeto: I - o aporte de recursos para custear, total ou parcialmente, despesas processuais ou arbitrais de uma das partes, mediante contrapartida, financeira ou não, com ou sem vinculação ao êxito da demanda; ou II - a aquisição, total ou parcial, de coisa ou direito litigioso, inclusive aquele ainda em formação, com ou sem assunção das despesas processuais ou arbitrais do litígio."

O §3º do referido art. 2º dispõe que "Na hipótese de que trata o inciso II do caput,  aplica-se o disposto no art. 109 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (CPC)."

O supramencionado art. 109 do CPC, por sua vez, trata da alienação da coisa ou do direito litigioso, assim como das questões processuais inerentes à referida alienação. Dentre tais questões, cumpre destacar o §1º do dispositivo, que prevê que "o adquirente ou cessionário não poderá ingressar em juízo, sucedendo o alienante ou cedente, sem que o consinta a parte contrária", bem como o §2º, que restringe a intervenção do "adquirente" ou "cessionário" à condição de assistente litisconsorcial.

Como já havia defendido, o mercado de ativos judiciais no Brasil possui, em essência, três modalidades de operação, são elas a cessão de crédito prevista nos arts. 286 a 298 do CC, a cessão de direito litigioso do art. 109 do CPC e o financiamento de litígios (ora do PL 4384/25).

Nesse ponto, destaquei que a existência ou não de um "crédito" parece denotar relevantes consequências processuais para o adquirente do ativo.

Não obstante haja divergências interpretativas quanto ao tema, caso se entenda que processualmente já há "crédito", não há qualquer restrição para que o adquirente ingresse em juízo como sucessor processual do alienante. De outro lado, se ainda não houver se aperfeiçoado o "crédito", o cessionário do direito litigioso só poderá ingressar em juízo com o consentimento da parte contrária, ou fazê-lo na condição de assistente litisconsorcial.

De qualquer sorte, a cessão de crédito e de direito litigioso possuem um relevante aspecto em comum: ambas as modalidades preveem uma alienação de um ativo (crédito ou direito litigioso), estrutura absolutamente diversa de um financiamento de litígio, que, como a própria acepção do termo prevê, implica em um "financiamento", no qual o litígio serve como única garantia (colateral) da transação.

No caso do PL, o projeto, s.m.j., parece chamar de financiamento de litígio a já sedimentada modalidade de cessão de direito litigioso do art. 109 do CPC.

Inobstante não haja uma definição global sobre o instituto do third-party funding, tampouco legislação em jurisdições nas quais a modalidade é mais desenvolvida, instrumentos de soft law aplicáveis ao Reino Unido e à Europa continental são claros quanto à natureza de financiamento do instituto.

Os recentes Principles Governing the Third Party Funding of Litigation do European Law Institute são claros quanto à natureza do financiamento de litígios de "arrangement whereby a third party who has no other connection to a dispute conducted in litigation or arbitration finances some or all of the legal costs of a party to that dispute in exchange for a share (whether fixed or by way of percentage) of the proceeds if the claim is successful4."

Já o Review of Litigation Funding do Civil Justice Council do Reino Unido definem a atividade como "one way in which parties to proceedings can pay for the cost they are liable to incur. It specifically involves funds being advanced by organisations (third party funders) either directly or indirectly to litigants on the basis that, if the funded party's claim is successful, they will repay the funds advanced plus a specified additional amount5".

Em interessante artigo, Suneal Bedi e William Marra definem a atividade como "the practice Where a third party provides capital to a litigant or law firm in exchange for an interest in the potential recovery of a legal claim6." Os mesmos autores vão além na definição do instituto, destacando que a modalidade de investimento nada mais é do que uma alternativa à alienação de capital social ou ativos para um financiador tradicional, possibilitando ofertar um ativo judicial como garantia ao financiamento que se precisa ("instead of trading away equity in the company or pledging assets to a traditional lender, you can pledge a legal claim as colateral...")7.

Como se vê, as jurisdições mais avançadas quando o tema é financiamento de litígios não tratam o instituto como uma cessão de ativo, mas sim como uma modalidade de financiamento que pessoas físicas ou jurídicas podem se valer para obter recursos com o objetivo de desenvolver determinada atividade.

O financiamento de litígios, portanto, diferentemente do que propõe o PL, não pode ser confundido com uma alienação de ativo judicial, seja ele um crédito ou um direito litigioso. Deveria, sim, ser definido como uma modalidade de garantia para obtenção de recursos, garantia essa que os provedores de capital mais tradicionais relutariam em aceitar em virtude do maior risco inerente a um ativo judicial, quando comparado a um ativo imobiliário ou por vezes a uma parcela do capital social.

Assunto diverso, entretanto, são as implicações processuais que a modalidade pode acarretar. Se o intuito do legislador é equiparar as consequências processuais de um financiamento de litígio a uma alienação de direito litigioso, muito embora não nos pareça ser medida acertada, tal equiparação deve ser esclarecida no processo legislativo.

Entretanto, definir o financiamento de litígios como aquisição de direito litigioso, como consta do caput do art. 2º do PL e nos termos do art. 109 do CPC, nos parece ser equivocado.

A iniciativa do PL de financiamento de litígios, a despeito de questionável necessidade do ponto de vista conceitual, pode ser relevante oportunidade para se discutir e conceituar em maior nível de profundidade as modalidades de transações envolvendo ativos judiciais.

Da mesma forma que potencial legislação de cunho material para o financiamento de litígios pode ser uma via de se pavimentar maior segurança jurídica para o instituto, a idealização de uma legislação em âmbito material para a cessão de direitos litigiosos, como há para a cessão de crédito no CC, pode também prover maior clareza a cedentes e investidores.

O art. 109 do CC, do mesmo modo que não pode se aplicar ao financiamento de litígios, é matéria constante do capítulo de sucessão de partes e procuradores do CPC. Em outras palavras, deveria tratar tão somente dos aspectos processuais atinentes à cessão de direitos litigiosos, e não da natureza em si do negócio jurídico.

O desenvolvimento e sofisticação do mercado de ativos judiciais é relevante alternativa para a oferta de liquidez em um cenário macroeconômico de juros elevados e constrição de capital. Diante disso, é imperativo que o legislador, caso se entenda pela pertinência de criação de leis sobre o assunto, caminhe na direção correta, definindo de forma clara cada um dos institutos e modalidades de operação, bem como as consequências processuais das alternativas de operações envolvendo ativos litigiosos.

O amplo debate sobre o tema, envolvendo emissores, investidores e profissionais do Direito só tem a contribuir para a evolução de uma alternativa de financiamento àqueles com menos acesso, seja ao mercado de capitais, seja ao judiciário ou à arbitragem.

_______

1 https://valor.globo.com/financas/noticia/2025/10/07/fidcs-caminham-para-chegar-a-r-1-trilhao.ghtml

2 https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/precatorios/

3 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2991009&filename=PL%204384/2025

4 https://www.europeanlawinstitute.eu/fileadmin/user_upload/p_eli/Publications/ELI_Principles_Governing_the_Third_Party_Funding_of_Litigation.pdf

5 https://www.judiciary.uk/wp-content/uploads/2025/06/CJC-Review-of-Litigation-Funding-Final-Report.pdf

6 Bedi & Marra, "Litigation Finance in the Market Square", supra note 1, at 570; GAO Litigation Finance Report, supra note 1, at 1.

7 Bedi & Marra, "Litigation Finance in the Market Square: a Non-market Strategy Approach", p. 7

João Gabriel Volasco Rodrigues

João Gabriel Volasco Rodrigues

Advogado, pós-graduado em direito societário e mestre (LL.M.) em resolução de disputas sob a perspectiva de direito comparado e internacional pela Queen Mary University of London.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca