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Arcana imperii

Juiz federal analisa a transição do poder opaco das monarquias - pessoais ou ideológicas - para o dever de transparência imposto pelo modelo republicano.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Atualizado em 20 de outubro de 2025 07:41

Arcana imperii denota segredo dos motivos e ações das pessoas que gerem entidades políticas maiores do que clã. Semelhante opacidade é conotada na raison d'état: para cuidar de sua segurança o poder tem razões que o vulgo não conhece e não deve conhecer. O hermetismo é da essência da forma monárquica de governo.

O conceito corrente de monarquia tem em consideração o governo de pessoa singular, cuja legitimidade é divina ou hereditária ou ambas. Porém, a modernidade trouxe monarquias ideológicas, isto é, governos de ideia única, legitimados por autoatribuída cientificidade (sociocracias) ou desiderato divino no caso das teocracias. Para expender a presente análise, alarga-se o conceito de monarquia, descrevendo governo de pessoa singular titular de todo poder político e, também, governo de ideologia singular, monodóxico. A classificação aristotélica das formas de governo tendo em consideração o número de governantes não basta para descrever fenômenos políticos recentes.

 O monarca - carnal ou ideal - é proprietário da terra, dos bens e das pessoas que estão ao alcance do seu uso, fruição e disposição. A entidade política (tribo, proto-estado, Estado) é domínio da família legitimada pela herança ou, no caso de monarquia ideológica, é espaço exclusivo do grupo político que controla as alavancas do poder, nomenklatura.

A sucessão em ambos os tipos de monarquia é extremamente controlada. Na carnal, para que não saia dos laços sanguíneos; na ideal, para que não se afaste da ortodoxia dos primevos promotores da ideia que é a ratio essendi da atividade governante. Cuba exemplifica o pensamento único sendo veiculado por linha sucessória. A Coreia do Norte é mistura das duas modalidades de monarquia.

 Em qualquer das variedades, o dominus age por poder próprio; ele presenta o reino, não o representa. Ele é o reino. É mandante, não mandatário. Por isso, inexiste condição conceitual para accountability1. Seja para promover os interesses da família real ou da ideia dominatrix, a discrição, o segredo, são fundamentais.

O conceito de propriedade, integrante da BIOS2, das instruções ínsitas de funcionamento de todos os humanos, facilita a vis inertiae de quem está no poder nele manter-se. Abundam exemplos de povos que mudaram de patrão, mas não de condição. Livram-se de reis ou de ideocratas para iniciar uma república, na qual o pluralismo ideológico e a igualdade política são essenciais, e veem-se capturados por oligarquias extrativistas que usam léxico republicano, mas agem como dominus da coisa comum. A exclusão é disfarçada com o uso orweliano de palavras inclusivas.

Antes de iniciar considerações sobre a república insta dizer que as asserções ora expendidas são modelos de pensamento. A realidade é matizada por variedade de causas e condicionantes.

A república na escala hodierna, na qual por princípio todos os nativos estão incluídos, é novidade porque nela expande-se a lógica da propriedade, tornando-a condominial. Todos os cidadãos são condôminos. A república é condomínio indiviso com prazo indeterminado.

É da sabença popular que cachorro de dois donos morre de fome. Condomínios indivisos tendem a ser de difícil gestão, tanto que o Código Civil preceitua prazo máximo de cinco anos para duração da situação de coisa comum indivisa, apontando sempre para a particularização das coisas. Na república a longevidade do condomínio indiviso caminha na direção oposta ao senso ordinário; a amplitude do rol de condôminos e a polidoxia sobre a condução da coisa comum geram a algaravia incompreensível para as pessoas que cuidam das suas fainas diárias. A BIOS humana não vem com linhas de programa que propiciem fácil entendimento do que é a república, haja vista a ausência de um dono.

Apesar de contraintuitivo, o pluralismo carnal e ideal, fonte de inquietudes e tensões, é condição para a saúde da república. Nela inexiste a paz da submissão ou dos cemitérios. Esse é o significado da afirmação do art. 1º, V, da Constituição Federal acerca do pluralismo político como fundamento da república.

Antes de iniciar considerações sobre a república brasileira, insta dizer que as asserções suso são modelos de pensamento. A realidade é matizada por infinita variedade de causas e condicionantes.

 A gestão da coisa comum, repto árduo, impõe a eleição de gestor. Esse age representando os condôminos, é mandatário. Ele torna presentes os condôminos que estão ausentes na condução da coisa comum. Fala em nome deles, não em nome próprio. A milenar sabedoria do Direito Civil, consolidade antes da existência das repúblicas ampliadas da modernidade, preceitua que o mandatário é obrigado a dar contas de sua gestão ao mandante. Aqui reside o espaço conceitual da accountability3.

O Brasil, ao adoptar a forma republicana de governo, assumiu que o povo é o detentor do poder e que mandatários o exercerão. Sejam de investidura técnica ou eleitoral, todos os agentes políticos são mandatários, isto é, não atuam por poder próprio, mas por representação. Devem contas aos mandantes. Essa, a inteligência que informa o artigo 93, IX, da Constituição Federal, ao preceituar a publicidade dos julgamentos e a fundamentação das decisões. De igual modo a Resolução 878/2025 do STF, norma de escala operativa e não principiológica, diz que os atos processuais no STF são públicos, ressalvadas hipóteses constitucionais ou legais atinentes à proteção da intimidade, privacidade e investigação criminal.

Na república, a transparência é condição para a higidez da relação entre representantes e representados, nunca é favor principis. O gestor do condomínio carece de discricionariedade para decidir se fará a gentileza de dar publicidade a sua atuação. O síndico deve transparência aos condôminos. Os magistrados e os agentes do Ministério Público estão no rol dos "síndicos", em que pese alguns se sentirem meros burocratas ao estilo soviético.

Quando mandatários gestores da coisa comum estiverem na berlinda em razão de dúvidas sobre os seus atos de gestão, a publicidade das acusações e defesas continua a ser a regra. Ao aceitar a investidura da condição de mandatário na república, a pessoa recebe um plexo de deveres, correlatos poderes e constrição da sua privacidade. A transparência é tão imperativa que o mandatário não pode opor sua individualidade ao dever de prestar contas e sanar dúvidas dos mandantes. A publicidade na seara do Direito Administrativo Sancionador e no Direito Penal são imprescindíveis quando houver questionamentos sobre a eticidade da conduta de gestores da coisa comum.


1 - Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma. (Constituição do Império do Brasil);

2 - BIOS (Basic Input/Output System, Sistema Básico de Entrada/Saída) é um firmware essencial, gravado num chip da placa-mãe, que contém as instruções iniciais necessárias para que um computador funcione, controlando a comunicação entre o hardware e o sistema operativo e executando o processo de inicialização;

3 - Lei 12527/2011 - Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;

Friedmann Wendpap

Friedmann Wendpap

Graduação e Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1984 e 2003). Doutorando em Direito Internacional Público na Universidade de Lisboa (2016) Juiz Federal em exercício na 1ª Vara Federal em Curitiba, Paraná.

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