Novela Vale Tudo: Entre a ficção e a realidade dos irmãos Naves
O presente artigo reflete sobre o erro do sistema de justiça criminal, tomando como pano de fundo o enredo da novela Vale Tudo, obra televisiva da Rede Globo de televisão.
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Atualizado às 12:20
Introdução
O presente artigo reflete sobre o erro do sistema de Justiça criminal, tomando como pano de fundo o enredo da novela Vale Tudo, obra televisiva da Rede Globo de televisão, que imortalizou a dúvida: "Quem matou Odete Roitman?". O estudo traça um paralelo entre a ficção e a trágica realidade dos irmãos Naves, símbolo maior do erro Judiciário no Brasil. Analisa-se a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados a inocentes, os requisitos da responsabilização, o dever de indenizar, o instituto da ação regressiva, a necessidade de coerência probatória e a inexistência de hierarquia entre os meios de prova, conforme os arts. 155 a 250 do CPP. O texto propõe uma reflexão humanista e jurídica sobre a falibilidade humana e a urgência de uma Justiça pautada na verdade real e não nas aparências.
Nesse sentido, tem-se que o último capítulo da novela Vale Tudo parou o Brasil. Milhões de telespectadores se debruçaram diante da televisão para descobrir quem matou Odete Roitman, a impiedosa vilã que simbolizava a corrupção moral e social de uma elite sem escrúpulos.
Durante as investigações, cinco pessoas foram apontadas como suspeitas, duas delas chegaram a confessar o crime, e uma das suspeitas permaneceu presa por longo período, sendo posteriormente libertada com o uso de monitoração eletrônica.
O clímax do enredo, no entanto, revelou uma reviravolta: a verdadeira autora do crime não fora nenhuma das confessas. O verdadeiro responsável, um dos diretores da empresa da vítima, fora apontado na novela em seu capítulo final, mas jamais responsabilizado judicialmente. Ocorreu, assim, o erro do sistema de Justiça, em uma simulação de processo investigativo e penal que espelha a fragilidade do próprio mundo real.
Essa narrativa, embora ficcional, reproduz com impressionante exatidão o drama vivido pelos irmãos Naves, em Araguari, Triângulo Mineiro, em 1937 - símbolo do mais emblemático erro Judiciário da história brasileira. Acusados injustamente de um crime inexistente, foram brutalmente torturados até confessarem um homicídio que jamais ocorreu. Somente anos depois, com a reaparição da suposta vítima, ficou provado o equívoco mortal do Estado.
Em ambos os casos - ficção e realidade - ecoa uma mesma lição: o sistema de Justiça não pode ceder ao clamor midiático nem ao autoritarismo de investigações passionais. Deve, antes, ser o guardião sereno da verdade real, fundamentando-se nas provas produzidas sob o crivo do contraditório, conforme estabelece o art. 155 do CPP.
Análise contextual fática
Na trama, a personagem Heleninha, vivida por Paolla Oliveira, assume indevidamente a autoria do crime, movida por distúrbios emocionais e pela dependência alcoólica, fatores que a tornaram vulnerável à pressão psicológica e à sugestão. Sua confissão, embora formalmente válida, era materialmente falsa, desprovida de coerência com o conjunto probatório.
A doutrina e a jurisprudência pátria firmam que não existe hierarquia entre as provas (arts. 155 a 250, CPP), e que a confissão não é a rainha das provas, devendo ser analisada em consonância com os demais elementos colhidos na instrução criminal. A prova deve ser avaliada em seu contexto, de forma racional, lógica e fundamentada, sob pena de violação ao devido processo legal e ao princípio da presunção de inocência.
Ao final, descobre-se que Odete Roitman sobrevivera ao atentado, tendo sido submetida a cirurgia e retirada do país sob sigilo, enquanto uma outra pessoa foi sepultada em seu lugar. Um erro fatal do sistema investigativo e judicial - erro que, em qualquer sociedade civilizada, impõe a responsabilidade civil objetiva do Estado, nos termos do art. 37, §6º da CF/88, bastando a conduta do agente público, o dano e o nexo causal.
Reflexões finais
A ficção televisiva de Vale Tudo transformou-se em espelho da realidade amarga da Justiça brasileira. Quando o Estado erra - e erra ao condenar um inocente -, não há reparação possível que restaure a honra, a liberdade e a dignidade ultrajadas.
Tal qual os irmãos Naves, torturados e humilhados por um crime inexistente, milhares de brasileiros anônimos sofrem os efeitos de decisões precipitadas, investigações falhas e provas mal interpretadas. E, nesses casos, o erro do sistema de Justiça não é apenas uma falha técnica: é um atentado à alma da Constituição e à essência dos direitos humanos.
O art. 186 do CC é cristalino: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, comete ato ilícito." Assim, configurado o erro Judiciário, surge o dever de indenizar, abrangendo danos morais, materiais e existenciais.
Além disso, a Constituição e a doutrina majoritária impõem ao Estado o dever de ação regressiva contra o agente responsável, quando comprovado dolo ou culpa grave, a fim de se evitar a perpetuação da irresponsabilidade funcional e de reafirmar a ética pública.
O Estado não pode se contentar com confissões frágeis, com provas manipuladas, com julgamentos apressados. O processo penal não é instrumento de vingança social, mas via de realização da Justiça verdadeira.
A coerência probatória deve ser a bússola; a razão, o guia; e o respeito à dignidade humana, a fronteira intransponível.
A verdade, ainda que tardia, é o único remédio para a inJustiça. Que Vale Tudo e os irmãos Naves sirvam como advertência eterna de que o erro judicial, quando perpetuado, mata não apenas o inocente, mas o próprio Estado Democrático de Direito.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, especialmente artigos 155 a 250.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 186 e seguintes.
CASO IRMÃOS NAVES. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Reabilitação histórica e jurídica dos acusados, 1952.
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MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, diversas edições.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Forense, diversas edições.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva.


