A imputação penal entre norma, regra e consenso
Neste artigo, dicuto a intersubjetividade como condição de validade no Direito Penal contemporâneo.
terça-feira, 21 de outubro de 2025
Atualizado às 14:29
A teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas apresenta uma via instigante para repensar os fundamentos da imputação penal. Nela, o agir humano só adquire sentido pleno quando compreendido como resultado de um processo comunicativo que exige consenso intersubjetivo. Nesse modelo, a norma não é imposta de fora, como produto de autoridade ou tradição, mas nasce da linguagem, da interação entre sujeitos que, juntos, negociam expectativas e compreendem mutuamente as regras do jogo social.
Trata-se, portanto, de uma mudança de paradigma. Habermas não concebe a norma como uma imposição unilateral. Para ele, a regra só vigora quando é aceita contrafaticamente, ou seja, mesmo que negada, continua válida dentro da comunidade de interlocutores. Essa validade se estrutura sobre quatro pretensões fundamentais da linguagem: (1) compreensibilidade, (2) verdade, (3) correção normativa e (4) veracidade. A norma penal, para ser legítima, precisa atender a essas condições.
No campo da imputação penal, essa teoria gera consequências estruturais. Para que um sujeito seja imputado por violar uma norma, é necessário demonstrar que ele fazia parte da comunidade que a reconhecia como válida. É o que Habermas descreve como "observância da norma", ou Befolgung: não basta prever o sucesso de uma conduta, é preciso que o sujeito compreenda que há uma expectativa compartilhada de que ele se comporte de determinada forma. E essa expectativa é comunicada pelo Direito.
É nesse ponto que Habermas resgata e desenvolve a tese wittgensteiniana da impossibilidade de seguir uma regra em privado. Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein sustenta que seguir uma regra é uma prática social, e não uma atividade interior ou subjetiva. Habermas aprofunda essa concepção, afirmando que a validade de uma regra depende de sua aceitação pública, e é nesse espaço que nasce o Direito Penal legítimo.
Esse raciocínio conduz a um deslocamento da imputação penal da interioridade psíquica para a esfera da normatividade intersubjetiva. Em vez de buscar indícios obscuros de vontade ou representação subjetiva, como se faz com frequência no modelo do dolo eventual, é preciso verificar se a conduta rompeu de forma consciente e reprovável um padrão normativo aceito pela coletividade. O dolo, nesse novo modelo, deixa de ser uma categoria psicológica fechada e passa a ser interpretado como uma violação crítica de uma norma cuja validade era compartilhada e compreendida.
Essa reconstrução aponta para um modelo de imputação penal baseado no consenso normativo e no seguimento de regras. Uma regra só pode ser seguida se puder ser observada, criticada, corrigida. Habermas afirma que a regra deve vigorar contrafaticamente, o que significa que ela continua válida mesmo diante da recusa pontual de um de seus destinatários. Esse princípio é essencial para a lógica sancionatória do Direito Penal: a pena só se justifica se a norma violada era previsivelmente válida para quem a violou.
Há, assim, uma profunda conexão entre consenso, norma e responsabilidade. A violação penal não se caracteriza apenas por um desvio fático, mas por uma quebra do consenso intersubjetivo sobre o comportamento esperado. Por isso, não há espaço para imputações abstratas, subjetivistas ou presumidas. A imputação legítima exige que a conduta do agente possa ser julgada dentro de um quadro normativo que ele conhecia, reconhecia e sobre o qual poderia exercer crítica.
Com isso, Habermas afasta definitivamente a pretensão de um Direito Penal fundado em categorias psicológicas isoladas. O sujeito do Direito Penal habermasiano não é um ser solitário encerrado em sua consciência, mas um interlocutor ativo dentro de uma comunidade normativa. Ele age conforme ou contra expectativas comunicadas, compreendidas e pactuadas, e é por isso que pode ou não ser responsabilizado.
Essa visão se articula de maneira clara com a teoria significativa da imputação, que sustenta, entre outras premissas, que a imputação penal exige uma linguagem acessível, uma norma previamente comunicada e uma conduta que, em contexto, viole os quesitos significativos da ação penalmente relevante. O dolo, nesse modelo, não é mero produto da mente, mas resultado da quebra consciente e voluntária de uma norma intersubjetiva, compreensível e crítica. A imprudência, por sua vez, decorre do desrespeito a expectativas legítimas de cuidado, também baseadas em regras de uso social.
Em última análise, a contribuição habermasiana reside em lembrar que o Direito não pode prescindir da linguagem nem da intersubjetividade. A norma penal só adquire validade se for expressa em linguagem clara, compreendida por seus destinatários e reconhecida como justa. O seguimento das regras, conceito central em Wittgenstein e recuperado por Habermas, é o que permite distinguir o agir livre do mero comportamento, o culpável do inocente, o punível do perdoável.
Ao aplicarmos esses conceitos à imputação penal, compreendemos que nenhuma sanção será legítima se desconsiderar o processo comunicativo que antecede a própria existência da norma. Isso exige um novo modo de pensar o Direito Penal: não mais como repressão autoritária de condutas, mas como resposta racional, pública e intersubjetiva a rupturas normativas socialmente relevantes.
Habermas não oferece uma dogmática penal. Ele oferece, no entanto, a base filosófica para uma reconstrução do Direito Penal com critérios democráticos, comunicativos e racionais. E isso, no mundo contemporâneo, é o mínimo que se espera de um sistema penal justo.
_____
Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).


