Compliance salva vidas: O alerta por trás das bebidas adulteradas
Caso das bebidas com metanol expõe a urgência de controles efetivos na cadeia de consumo e mostra que o compliance é, também, instrumento de proteção à vida e à confiança pública.
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
Atualizado em 21 de outubro de 2025 13:54
O recente caso de adulteração de bebidas destiladas com metanol em São Paulo e em outras regiões do Brasil, com mortes e internações graves confirmadas, é muito mais do que um fato criminoso: é um alerta sobre a urgência de se adotar mecanismos efetivos de integridade e rastreabilidade em cadeias de consumo. O metanol jamais poderia estar presente em bebidas destinadas ao consumo humano. Sua presença revela falhas profundas de compliance na cadeia de suprimentos, desde a aquisição de insumos até a distribuição e venda final.
Sob a ótica do compliance, o episódio mostra que a integridade não é apenas um conceito ético, mas um requisito de sobrevivência social. Cada elo da cadeia empresarial (fabricantes, distribuidores, bares, restaurantes e até plataformas de e-commerce) tem deveres de diligência para garantir a autenticidade e a segurança do produto colocado no mercado, evitando danos à saúde individual e à confiança pública.
O consumo é um ato pautado na boa-fé e na confiança, especialmente quando envolve substâncias que entram no nosso corpo, como ocorre com alimentos e medicamentos. Ainda que o consumidor exerça um papel na adoção de cautelas nas relações de consumo, é razoável esperar que o fornecedor também adote cautelas quando adquira insumos que serão oferecidos para uso/consumo por pessoas humanas.
Existe, assim, a expectativa de que quem disponibiliza um produto às pessoas, verifique o registro do produto na ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, confira lacres e rótulos, evite compras informais e desconfie de preços muito abaixo da média de mercado. Espera-se que exija nota fiscal (é o mínimo!), documento que permite rastrear o fornecedor; que atente para indícios de falsificação, como rótulos desalinhados, ausência de código de barras ou odores atípicos e, por fim, que registre denúncia aos órgãos de vigilância sanitária ou ao Procon - Programa de Proteção e Defesa do Consumidor em caso de suspeita.
Cuidados com prevenção, nesse contexto, são também uma forma de integridade coletiva, único sustentáculo da confiança pressuposta nos relacionamentos sociais. A falta de ética e a ausência de controles adequados, sejam eles regulatórios ou empresariais, abrem espaço para que a busca pelo lucro fácil se sobreponha ao dever de proteger a vida e a confiança que move o mercado.
É inaceitável que a economia por garrafa de destilados coloque em risco a vida e a integridade de pessoas, como ocorreu nos casos de intoxicação pelo consumo de bebidas. Há uma irresponsabilidade (para não dizer patologia) grave nesses sujeitos que adulteram bebidas ou que as compram sem desconfiar da origem para disponibilizar aos seus clientes. Afinal, são também consumidores de outros produtos. Como são incapazes de refletir se seria aceitável que o "outro" adote os mesmos subterfúgios para manter uma atividade econômica? Episódios como este mostram que ainda temos muito a evoluir como comunidade.
E o que aprender com a dor causada às vítimas do metanol? Para restabelecer a confiança do consumidor, empresas do setor de bebidas e hospitalidade precisam incorporar práticas típicas de programas de integridade, por exemplo a due diligence de fornecedores, com verificação documental e possibilidade de visitas técnicas a fábricas; viabilizar a rastreabilidade dos insumos, atribuindo QR Codes aos lotes, etiquetas inteligentes e sistemas que registrem a origem e o destino das garrafas, permitindo recall no caso de contaminação; registro automatizado das operações de compra e identificação do fornecedor, criando trilhas de auditoria que, em situações graves como a atual, facilitam investigações policiais e sanitárias; treinamento e conscientização de equipes comerciais e logísticas e a adoção de canais de denúncia eficazes para coibir desvios internos; testes periódicos e por amostragem sobre qualidade e origem dos produtos; além de parcerias entre órgãos reguladores e associações de classe para troca de informações e alertas sobre desvios e fraudes.
Na era da inteligência artificial, do Big Data e dos processos de automação, o que não faltam são tecnologias para fazer valer a confiança dos consumidores. A adoção de processos automatizados de controle e rastreabilidade, integrando tecnologia, dados e compliance, pode transformar o setor, tornando a fraude mais difícil, a fiscalização mais precisa e a responsabilização dos infratores mais rápida.
A indústria farmacêutica já oferece um bom exemplo de rastreamento, pois cada medicamento possui um número de lote e data de validade impressos na embalagem primária (blíster, frasco) e secundária (caixa). Esses dados permitem rastrear o produto, desde a fabricação até o ponto de venda. Assim, quando é detectado um defeito (contaminação, erro de rotulagem, instabilidade etc.), a empresa consegue identificar exatamente quais lotes foram afetados, de modo a conter potenciais danos à saúde.
Mais do que uma resposta pontual, o episódio do metanol deve inspirar o fortalecimento da governança da cadeia de consumo, integrando saúde pública, regulação e ética empresarial. O combate à falsificação e à adulteração não depende apenas de polícia e fiscalização, mas de uma cultura de integridade compartilhada, em que cada agente (público ou privado) reconheça que integridade é um ativo coletivo que não compactua que alguns indivíduos ganhem a vida fácil às custas da vida dos outros, porque aí todos perdem enquanto sociedade. É assim que o compliance pode salvar vidas.
Ana Paula Ávila
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS (1994) - 1ª colocada; bolsista pela Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (1995); Mestrado em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2001); doutorado em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2007).



