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A polícia judiciária brasileira em mutação constitucional

Analisa-se a ADIn 7.206, que declarou inconstitucional o art. 197 da Constituição do Pará, o qual atribuía à carreira de delegado de polícia civil o status de carreira jurídica estadual.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Atualizado às 13:14

Introdução

A Constituição do Estado do Pará, promulgada em 5 /10/1989, dispôs em seu art. 197 que as funções de delegado de polícia civil seriam privativas dos integrantes da carreira. O parágrafo único do referido dispositivo, introduzido pela EC 46 de 2010, classificou o cargo de delegado de polícia civil - privativo de bacharel em Direito - como integrante, para todos os fins, das carreiras jurídicas do Estado.

Todavia, a Procuradoria-Geral da República propôs a ADIn 7.206, sob relatoria do ministro Nunes Marques, questionando a compatibilidade desse dispositivo com o modelo constitucional da República. O STF, em sessão virtual encerrada em 10/10/25, decidiu, por unanimidade, declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 197 da Constituição paraense.

O relator destacou que, embora os delegados de polícia civil exerçam funções de polícia judiciária e mantenham estreita relação com o sistema de justiça penal, tais funções não foram incluídas pelo constituinte originário entre as funções essenciais à Justiça, como a magistratura, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a advocacia pública.

Ao mesmo tempo, o relator enfatizou que a CF/88, em seu art. 144, expressamente subordina as polícias civis ao chefe do Poder Executivo estadual, o que afasta a natureza jurídica autônoma pretendida pela norma paraense.

Essa decisão, contudo, revela um dilema institucional que vai além da questão federativa: a necessidade de repensar a posição constitucional da polícia judiciária no Brasil. Este artigo, portanto, propõe uma leitura crítica e filosófica dessa decisão, defendendo que a investigação criminal é função essencial à justiça e não mero apêndice administrativo do Executivo.

Mudança topográfica da polícia judiciária na CF/88

O art. 144 da CF/88 consagra a segurança pública como dever do Estado e responsabilidade de todos, sendo exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Nele, as polícias civis aparecem como órgãos de investigação vinculados ao Poder Executivo estadual.

Todavia, a promulgação da lei 13.964/19 - o pacote anticrime - alterou substancialmente o CPP, introduzindo o art. 3º-A, que consagra a estrutura acusatória do processo penal. Este artigo veda a iniciativa do juiz na fase investigatória e impede a substituição da atividade probatória do órgão acusador, reforçando o princípio da separação de funções entre investigar, acusar e julgar.

Nesse modelo, a polícia judiciária exerce função essencial e independente: investigar com técnica, imparcialidade e compromisso com a verdade. Contudo, enquanto permanecer submetida ao Poder Executivo, essa função estará permanentemente vulnerável a interferências políticas, contingenciamentos orçamentários e decisões administrativas que comprometem sua autonomia técnica.

A experiência cotidiana comprova esse quadro: delegacias instaladas em prédios improvisados, falta de estrutura mínima, viaturas sucateadas, investigações interrompidas por ingerências e servidores submetidos a promoções políticas. Trata-se de um estado de coisas inconstitucional.

Por isso, propõe-se a retirada das polícias civis e da polícia Federal do art. 144 e sua inclusão no capítulo das funções essenciais à Justiça, ao lado do Ministério Público, da Defensoria Pública e da advocacia pública.

Tal alteração implicaria autonomia administrativa, funcional, financeira e orçamentária, além de exigir revisão na lei de responsabilidade fiscal e na lei orgânica nacional das polícias civis (lei 14.735/23).

Essa mudança encontra amparo nos princípios da legalidade, eficiência, moralidade e imparcialidade (art. 37 da CF), bem como no direito fundamental de acesso à justiça (art. 5º, XXXV) e na própria separação de poderes, pilares do Estado Democrático de Direito.

Análise contextual do tema

O sistema de investigação criminal brasileiro enfrenta crise estrutural e moral. A vinculação das polícias civis ao Executivo estadual impede o desenvolvimento de uma cultura de independência técnica e de proteção funcional.

No cenário atual, a apuração de crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, violência institucional ou crimes de colarinho branco pode ser obstada por interesses políticos. Delegados e investigadores, frequentemente, veem-se diante do dilema entre cumprir o dever jurídico ou obedecer à conveniência governamental.

A ADIn 7.206, ao declarar inconstitucional a tentativa de equiparação da carreira de delegado à carreira jurídica, reafirma a ausência de autonomia das polícias civis - mas, paradoxalmente, expõe a necessidade urgente de repensar essa estrutura.

Sob o ponto de vista filosófico, a polícia é o braço visível da justiça invisível. A investigação criminal não pode servir a governos, mas à sociedade. A verdade é o seu norte; a imparcialidade, o seu instrumento. Por isso, não deve ser órgão de governo, mas instituição de Estado.

A mutação constitucional proposta visa restaurar o equilíbrio entre poder e justiça, entre mando e direito, para que a investigação criminal cumpra sua função republicana: defender o cidadão contra o crime e contra o abuso do poder.

Reflexões finais

É chegado o tempo de romper os grilhões da omissão e refundar os alicerces da Justiça brasileira com a têmpera dos que não temem o peso da história. Não mais nos cabe o silêncio conivente, nem a aceitação de uma estrutura que fere a própria lógica da República. A polícia investigativa não pode continuar relegada aos porões do Executivo, tolhida em sua missão de buscar a verdade em nome do povo. A proposta central para estancar a hemorragia da criminalidade que corrói o tecido social do Brasil é a reconfiguração estrutural da polícia investigativa do Estado. Trata-se de uma medida de coragem e visão: retirar tal instituição do rol das funções meramente administrativas da Segurança Pública, desvinculando-a da subordinação ao Poder Executivo, e elevando-a à dignidade constitucional de função essencial à Justiça. Essa mudança topográfica e institucional visa garantir à polícia investigativa autonomia financeira e administrativa, independência funcional, e capacidade técnica e jurídica plenas para exercer, com isenção e rigor, a nobre missão de apurar os delitos que afrontam a ordem jurídica e o bem coletivo. Não se trata apenas de uma reforma; é uma refundação. É o reconhecimento de que investigar crimes não é mera função policial, mas tarefa de Estado, revestida de natureza jurídica e essencial à concretização da Justiça em sua forma mais pura.

A decisão do STF na ADIn 7.206 não encerra o debate - ela o inaugura. Se é verdade que a CF/88 não incluiu expressamente as polícias judiciárias entre as funções essenciais à Justiça, também é verdade que o desenvolvimento democrático do Estado brasileiro exige essa evolução institucional.

É hora de se propor uma EC que realoque as polícias civis e a polícia Federal no rol das funções essenciais à Justiça, conferindo-lhes autonomia administrativa, financeira e funcional, e criando um novo paradigma de segurança pública imparcial, técnica e republicana.

Somente com autonomia constitucional e garantias institucionais será possível consolidar uma polícia judiciária independente, capaz de investigar sem medo, servir sem subordinação e agir em nome da justiça e da cidadania.

A mudança topográfica não é apenas reforma jurídica - é ato civilizatório. É o resgate da essência republicana da investigação criminal, que deve existir para o povo e não para o poder.

Diante do quadro exposto, resta reconhecer que a decisão do STF na ADIn 7.206 confirma a vulnerabilidade institucional que a vinculação da polícia judiciária ao Poder Executivo representa. Contudo, essa decisão não esgota o debate: ao contrário, abre caminho para uma reconfiguração constitucional mais arrojada. A sociedade brasileira - não apenas o meio jurídico ou policial - precisa conhecer as consequências da dependência das polícias civis em face do Executivo estadual e abraçar a ideia de uma verdadeira autonomia investigativa.

É imperativo que se proponha uma PEC que realoque as polícias civis no capítulo das funções essenciais à Justiça, conferindo-lhes autonomia administrativa, financeira e orçamentária. Somente assim teremos uma investigação criminal que não se submeta ao ciclo eleitoral, às pressões políticas, aos orçamentos contingenciados; teremos uma polícia judiciária que assume seu lugar natural no Estado Democrático de Direito, atuando com cientificidade, imparcialidade e voltada à promoção da justiça social.

Essa mudança estrutural não será simples - requererá coragem, reformulação de mentalidades, investimentos, proteção funcional aos agentes policiais e controle externo democrático. Mas, sem ela, permaneceremos com um modelo de segurança pública que tem endereço errado: policiamento subsidiado pelo Executivo, investigação submetida à política, justiça comprometida.

Assim, conclui-se que a segurança pública brasileira só alcançará sua plenitude no momento em que a investigação criminal - por meio das polícias civis - sair da condição de "órgão auxiliar do Executivo" e ascender à condição de "função essencial à justiça". E, nessa travessia, reafirma-se o compromisso com a dignidade humana, com a imparcialidade, com o Estado de Direito e com a construção de uma sociedade justa. Que esse ensaio seja um convite à reflexão, ao debate e à ação institucional transformadora.

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BOTELHO PEREIRA, Jeferson. Livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia e vetos a direitos fundamentais. Jus.com.br, 2023.

BOTELHO PEREIRA, Jeferson. Tráfico e uso ilícito de drogas: atividade sindical complexa e ameaça transnacional. Editora JH Mizuno, 2016.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689/1941 - Código de Processo Penal.

BRASIL. Lei nº 13.964/2019 - Pacote Anticrime.

BRASIL. Lei nº 14.735/2023 - Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis.

BRASIL. Lei Complementar nº 80/1994 - Lei Orgânica da Defensoria Pública.

BRASIL. ADI 7206 - Supremo Tribunal Federal.

CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO PARÁ, de 05 de outubro de 1989, e Emenda Constitucional nº 46/2010.

Jeferson Botelho

VIP Jeferson Botelho

Delegado Geral aposentado da PCMG; prof. de Direito Penal e Processo Penal; autor de obras jurídicas; advogado em Minas Gerais. Jurista. Mestre em Ciência das Religiões - Faculdade Unida Vitória/ES;

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