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Caso Flamengo: Nexo causal e a responsabilidade penal da empresa

O texto debate a absolvição dos réus do Ninho do Urubu pela ausência de nexo causal.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Atualizado às 14:54

1. O fato e a resposta judicial

O incêndio ocorrido em 8/2/19 no Centro de Treinamento George Helal (Ninho do Urubu), do Clube de Regatas do Flamengo, ceifou a vida de dez jovens atletas e causou lesões em outros três, expondo, de forma trágica, as fragilidades das estruturas corporativas brasileiras. A subsequente ação penal buscou responsabilizar 11 pessoas físicas - entre dirigentes e funcionários do clube e de empresas terceirizadas - pelos crimes de homicídio culposo, lesão corporal culposa e incêndio culposo. A decisão judicial proferida pela 36ª vara criminal da comarca da Capital do Rio de Janeiro em outubro de 2025, no entanto, culminou na absolvição de todos os réus, fundamentada primariamente na ausência de comprovação do nexo causal e da culpa penal.

Este texto visa analisar a decisão de absolvição, enfatizando o papel da causalidade no Direito Penal brasileiro, e, subsequentemente, debater a problemática da impunidade da pessoa jurídica em crimes dessa natureza, propondo uma solução dogmática a partir da tese da causalidade corporativa.

2. O nexo de causalidade e a absolvição dos réus

A absolvição dos réus (art. 386, III, do CPP) baseou-se na premissa de que o conjunto probatório foi insuficiente para estabelecer o nexo de causalidade entre as condutas omissivas ou comissivas dos acusados e a ignição do incêndio.

No Direito Penal brasileiro, a responsabilidade pressupõe o binômio conduta e resultado, unidos pelo nexo de causalidade (art. 13 do CP). Nos crimes culposos, a imputação exige a violação de um dever objetivo de cuidado e a previsibilidade do resultado (ex ante) A decisão judicial apontou a limitação metodológica do laudo pericial em definir, com a certeza necessária, a causa exata do foco de ignição (fenômeno termoelétrico no ar-condicionado). Embora tenha reconhecido que a omissão de providências estruturais por parte dos acusados (como a inadequação dos contêineres, a inflamabilidade do material e a ausência de saídas de emergência) contribuiu significativamente para o agravamento do resultado (as mortes), o juízo entendeu que tais condutas eram distintas da causa da ignição.

O cerne da absolvição reside na máxima in dubio pro reo e na impossibilidade de se saltar da análise das condições de risco (omissões administrativas) diretamente para o resultado morte, sem a comprovação do elo causal da ignição. Em outras palavras, a falha estrutural, embora tenha potencializado a tragédia, não foi considerada a causa penalmente relevante do incêndio em si.

3. O "paraíso penal da pessoa jurídica" e a impunidade corporativa

A absolvição de todos os indivíduos do quadro diretivo/operacional do clube, sem que a própria instituição (o Clube de Regatas do Flamengo) tenha sido processada criminalmente pelos homicídios, lança luz sobre a grave omissão do sistema penal brasileiro: a quase absoluta impunidade da pessoa jurídica em crimes de resultado.

O Brasil se torna um verdadeiro paraíso penal da pessoa jurídica, pois a responsabilidade penal dos entes corporativos é legalmente restrita aos crimes ambientais (art. 225, § 3º, da CF, e lei 9.605/98). Crimes contra a vida, mesmo que decorrentes de negligência ou decisão empresarial (culposa), não são passíveis de imputação penal à empresa.

No caso do Ninho do Urubu, a decisão que determinou a permanência dos atletas em alojamentos precários e inseguros, expondo-os a um risco inaceitável, foi uma decisão corporativa, refletindo uma cultura de negligência institucional. Essa decisão, que é o verdadeiro cerne da culpa, escapa à sanção penal, reforçando a percepção de que grandes corporações podem ser responsabilizadas civil e administrativamente, mas permanecem intocáveis na esfera criminal por delitos de resultado que não sejam ambientais.

4. Proposta de solução: A causalidade corporativa

Diante da falha do modelo de imputação individual e da blindagem da pessoa jurídica, é imperativo buscar novos modelos dogmáticos. A causalidade corporativa oferece uma via sofisticada para a imputação no caso concreto, pois propõe um modelo de causalidade para a pessoa jurídica que a desvincula da necessidade de identificar a conduta de uma pessoa física específica, focando na ação significativa e no seguimento de normas e regras da própria corporação.

Aplicação do modelo proposto ao caso concreto:

Reconhecimento da ação corporativa: A pessoa jurídica (o Flamengo) é capaz de ação, entendida como um significado extraído da sua práxis (sua maneira de operar) e dos seus processos internos, independentemente do indivíduo que apertou o botão.

Causalidade corporativa: No Ninho do Urubu, a causa corporativa do resultado morte não é a ignição em si, mas sim a produção do risco vedado por meio da decisão institucional de:

  • Utilizar contêineres/módulos habitacionais em desconformidade com normas de segurança.
  • Omitir a instalação de sistemas eficazes de prevenção e combate a incêndios (ex.: sprinklers).
  • Ignorar avisos e requisitos de segurança, priorizando o benefício (custo/operacionalização) da empresa em detrimento da vida.

Imputação do resultado: O resultado morte (10 homicídios) e a lesão são imputáveis à pessoa jurídica, pois foram a consequência direta e previsível da violação sistêmica e institucional dos deveres de cuidado, incorporada nas regras e práticas corporativas do clube. Não é necessário provar quem ligou o ar-condicionado defeituoso, mas sim que a empresa, através de sua estrutura, criou e manteve o contexto de risco fatal que transformou a falha elétrica de um equipamento em uma tragédia coletiva.

A ideia da causalidade corporativa permitiria ao Brasil superar a limitação dogmática da imputação de resultado punível, com a responsabilização da pessoa jurídica por crimes em que sua natureza seja capaz de produzir, o que seria uma resposta e um mecanismo de prevenção mais eficaz contra a impunidade corporativa.

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1. Autos n. 000-88.2021.8.19.0001. 36ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Rio de Janeiro.

2. Sobre a causalidade corporativa, ver RAMOS, Samuel Ebel Braga. Causalidade corporativa: a possibilidade de atribuição de resultados puníveis à pessoa jurídica. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito. Orientador: Paulo César Busato - Curitiba, 2024. Disponível em < https://acervodigital.ufpr.br/xmlui/handle/1884/94051>.

3. Sobre o termo "paraíso penal", ver: https://www.conjur.com.br/2024-set-10/brasil-o-paraiso-penal-da-pessoa-juridica/

Samuel Ebel Braga Ramos

VIP Samuel Ebel Braga Ramos

Advogado em Curitiba/PR - Samuel Ebel Braga Ramos Advogados. Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Mestre em Direito (2019). Membro da Comissão de Direito Penal e Advocacia Criminal da OAB/SC.

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