MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Holdings familiares "fakes"

Holdings familiares "fakes"

Muitas holdings familiares fracassam por ignorar fundamentos sucessórios e societários. Este artigo demonstra, com base na lei e na jurisprudência, por que tais estruturas não afastam o inventário.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Atualizado às 13:46

1. Introdução

Nos últimos anos, a disseminação do conceito de holding familiar levou inúmeras famílias a acreditarem que bastaria "colocar o patrimônio em um CNPJ" para resolver definitivamente o problema do inventário. Essa simplificação, popularizada por profissionais sem base jurídica sólida, gerou um fenômeno preocupante: as chamadas holdings fakes, estruturas que oferecem aparência de proteção patrimonial, mas que, na prática, mantêm a família presa ao mesmo rito sucessório judicial que pretendiam evitar. O presente artigo tem como objetivo demonstrar, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, por que essas estruturas falham e quais são os fundamentos legais que impedem a eficácia sucessória de uma holding constituída apenas formalmente.

2. O problema da mera "pejotização" do patrimônio

A transferência de bens imóveis de pessoas físicas para pessoas jurídicas, prática comum nas holdings familiares, não elimina o inventário por si só. O CC é claro ao dispor, em seu art. 1.784, que a sucessão se dá com a morte, transmitindo-se automaticamente o patrimônio do falecido aos herdeiros. Já o art. 1.791 estabelece que a herança constitui um todo unitário, cabendo aos herdeiros, após a partilha, a individualização dos bens que lhes tocarem. Assim, qualquer bem ou direito que integre o patrimônio do falecido no momento do óbito, inclusive cotas sociais, compõe o monte hereditário. As cotas sociais recebidas na integralização de bens são bens móveis, conforme o art. 83, II, do CC, e possuem valor econômico. Quando ocorre o óbito, essas cotas são transmitidas aos herdeiros e devem ser partilhadas, sendo regidas ainda pelo art. 1.997 do CC, que define que os herdeiros respondem pelas obrigações até o limite da herança. Dessa forma, ainda que o imóvel deixe de pertencer à pessoa física, o falecido passa a deter cotas sociais que representam aquele valor. No momento do falecimento, tais cotas integram a herança e devem ser inventariadas. A jurisprudência é pacífica nesse sentido. O TJ/SP, por exemplo, já reconheceu que "a constituição de sociedade com a integralização de bens imóveis não afasta a necessidade de inventário das cotas sociais, que permanecem no patrimônio do de cujus" (TJ/SP, apelação cível 1000704-06.2020.8.26.0011, relator desembargador Cesar Ciampolini, j. 20/7/21). Outro equívoco recorrente decorre da confusão entre valor nominal e valor patrimonial das cotas. O art. 1.031 do CC e o art. 45 da lei 6.404/1976 estabelecem que as cotas ou ações devem refletir o patrimônio líquido da sociedade, o que significa que, para fins sucessórios e tributários, o valor considerado será o real valor de mercado dos bens integralizados. Dessa forma, o inventário das cotas pode gerar custos elevados, equivalentes ou até superiores àqueles que ocorreriam caso os imóveis fossem inventariados diretamente.

3. A ineficácia da chamada "cláusula de sobrevida"

Outro artifício recorrente nas holdings familiares mal estruturadas é a inclusão de uma cláusula contratual prevendo que, no falecimento do sócio majoritário, a sociedade continuará automaticamente com os herdeiros, dispensando o inventário. Embora essa disposição tenha apelo prático, ela é juridicamente ineficaz. Nos termos do art. 1.028, parágrafo único, do CC, o falecimento de sócio implica a resolução da sociedade em relação a ele, salvo disposição contratual em contrário. Entretanto, para que essa continuidade seja efetivada, é necessária a alteração contratual que formalize a entrada dos herdeiros no quadro societário. De acordo com a lei 8.934/1994, art. 35, e com a IN DREI 81/20, nenhum ato societário pode ser arquivado sem assinatura de todos os sócios ou seus representantes legais. A Junta Comercial, portanto, não pode registrar alteração contratual em nome de pessoa falecida, exigindo a apresentação de alvará judicial ou formal de partilha expedido em processo de inventário. A jurisprudência confirma essa impossibilidade. Em julgado paradigmático, o TJ/RS decidiu que "não há como registrar alteração contratual em nome de sócio falecido sem autorização judicial, sendo imprescindível o inventário para regularizar a sucessão das cotas" (TJ/RS, apelação cível 70084378249, relator desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 15/5/20). Portanto, a chamada cláusula de sobrevida não dispensa o inventário, pois sua execução depende de autorização judicial, o mesmo procedimento que se buscava evitar.

4. A falácia da "transferência automática" de cotas

A tentativa de criar efeitos sucessórios automáticos por meio de cláusula contratual viola princípios estruturantes do Direito Civil. O art. 1.784 do CC consagra que a transmissão causa mortis ocorre apenas com a abertura da sucessão, enquanto os atos inter vivos exigem manifestação de vontade e título hábil, nos termos do art. 104. Nenhum contrato social pode gerar transferência de propriedade sem título translativo válido. Do ponto de vista registral, o art. 1.227 do CC estabelece que a propriedade de bens imóveis somente se adquire com o registro do título no cartório de registro de imóveis. Por analogia, no âmbito societário, a transferência de cotas exige ato formalmente arquivado na Junta Comercial. Assim, qualquer cláusula que pretenda conferir efeitos automáticos após a morte carece de suporte jurídico, por violar o princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF/88). O STF, ao julgar o RE 562.276/PR, reafirmou que "a transmissão da propriedade exige ato jurídico perfeito e título hábil, não podendo decorrer de cláusulas contratuais com efeitos automáticos sem observância da forma legal". Portanto, sem um ato de doação registrado em vida, qualquer tentativa de automatizar a sucessão societária esbarra em nulidade formal.

5. A estrutura juridicamente eficaz: Transferência em vida com reserva de controle

O único modelo que elimina efetivamente o inventário é aquele em que a transferência das cotas ocorre em vida, por meio de doação com reserva de usufruto ou cláusulas restritivas, nos termos dos arts. 538 e seguintes do CC. Nessa hipótese, os herdeiros tornam-se titulares das cotas, enquanto os pais mantêm o usufruto vitalício, preservando o controle, a administração e a fruição dos frutos, como aluguéis e dividendos. Trata-se de solução que respeita o princípio da autonomia privada (art. 421-A, CC) e da legalidade tributária, garantindo a ocorrência do fato gerador do ITCMD apenas no momento da doação, com segurança jurídica. Além disso, a CF/88 (art. 156, §1º, I) e o CTN (art. 35) delimitam o fato gerador da transmissão causa mortis e da doação, permitindo planejamento lícito e transparente, conforme reconhece o STF no julgamento da ADIn 2.446, que distingue elisão de evasão fiscal. Com essa estrutura, a sucessão é tecnicamente concluída em vida, restando aos herdeiros a propriedade plena das cotas após a extinção do usufruto, sem necessidade de abertura de inventário. É a concretização do princípio da continuidade jurídica e da segurança patrimonial, pilares que justificam a existência da holding familiar enquanto instrumento legítimo de planejamento sucessório.

6. Conclusão

As chamadas holdings fakes são construções formais que ignoram a essência jurídica da sucessão e da transferência de propriedade. Elas nascem do equívoco de acreditar que um contrato social pode substituir os atos jurídicos de disposição inter vivos exigidos pela lei. A mera pejotização do patrimônio não evita o inventário; as cláusulas de sobrevida e de transferência automática são inócuas perante o sistema registral e sucessório brasileiro. Somente a transferência efetiva em vida das cotas, com reserva de usufruto e controle, concretiza a intenção de proteger o patrimônio familiar e evitar a burocracia pós-morte. Portanto, a verdadeira holding familiar não é uma ficção jurídica, mas o resultado da aplicação consciente da lei, da técnica societária e do respeito às formas legais que sustentam a segurança das relações patrimoniais.

________________

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as sociedades por ações.

BRASIL. Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994. Dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.

BRASIL. Instrução Normativa DREI nº 81, de 10 de junho de 2020.

BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.

STF. Recurso Extraordinário nº 562.276/PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 13/08/2009.

STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2446/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 15/09/2005.

TJSP. Apelação Cível nº 1000704-06.2020.8.26.0011, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 20/07/2021.

TJRS. Apelação Cível nº 70084378249, Rel. Des. Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 15/05/2020.

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.

PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

Bruno Couto Rocha

VIP Bruno Couto Rocha

Advogado especialista em Planejamento Patrimonial e Holding Familiar, membro diamante do Time Holding Brasil, atua na defesa do contribuinte e proteção do patrimônio.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca