O Tema 70 do TST e a rescisão indireta no futebol
O artigo analisa como o Tema 70 do TST fortalece o direito do atleta de futebol de rescindir o contrato por falta de FGTS, permitindo a baixa imediata no BID por meio da tutela de evidência.
quarta-feira, 29 de outubro de 2025
Atualizado às 14:07
Introdução
A especialização das atividades profissionais, como a do atleta de futebol, demanda uma legislação específica que contemple suas peculiaridades, sob pena de a ordem normativa ignorar a realidade social vigente. No âmbito do Direito Desportivo, uma das questões mais sensíveis reside na rescisão indireta do contrato especial de trabalho desportivo, especialmente quando motivada pelo descumprimento de obrigações financeiras pelo clube empregador.
Historicamente, o debate sobre a efetivação dos direitos do atleta, sobretudo em caso de mora salarial (incluindo FGTS), levou à busca de medidas extraordinárias, como o habeas corpus, para garantir o direito à liberdade de locomoção e o livre exercício da profissão. A legislação recente, contudo, e a pacificação jurisprudencial buscam conferir maior segurança e celeridade ao processo judicial, conforme evidenciado pela tese vinculante do TST (Tema 70).
1. O cenário histórico e o uso do habeas corpus
A Antes da consolidação de ferramentas processuais mais céleres e da pacificação jurisprudencial, a efetivação dos direitos do atleta em casos de mora salarial (incluindo FGTS) era marcada pela necessidade de medidas extraordinárias:
1.1. O regime da lei Pelé (lei 9.615/1998)
O art. 31 da antiga lei Pelé autorizava a rescisão indireta do contrato quando caracterizada a mora salarial (abrangendo FGTS, férias, 13º salário, gratificações, prêmios e demais verbas) por período igual ou superior a três meses. Na prática, contudo, mesmo com a mora comprovada, não era fácil caracterizar a rescisão, e o atleta frequentemente dependia do ajuizamento da reclamação trabalhista.
1.2. O habeas corpus
Diante do indeferimento de antecipação de tutela na reclamação trabalhista em primeiro grau, e considerando que a carreira do atleta é notoriamente curta, a saída encontrada foi o uso do habeas corpus para a efetivação do direito de ir e vir.
A medida se baseava na alegação de que a impossibilidade de o atleta exercer livremente sua profissão em qualquer localidade e para qualquer empregador configurava uma coação à sua liberdade de locomoção.
Nesse ínterim, o TST veio a conceder habeas corpus ao jogador Oscar dos Santos Emboaba Júnior em abril de 2012, e, a partir deste precedente, inúmeros habeas corpus foram concedidos.
Mais tarde, a SBDI-II - Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do TST firmou posição no sentido de afastar o cabimento do habeas corpus em tais casos, o que passou a dificultar a garantia do atleta de futebol quanto ao seu direito fundamental de escolha e o livre exercício da profissão.1
2. A Tese vinculante do TST (IRR-70) e o enquadramento da falta grave
O Tribunal pleno do TST, ao julgar o RRAg-1000063-90.2024.5.02.00322, instituiu o IRR - Incidente de Recurso Repetitivo - Tema 70 para a reafirmação de jurisprudência. A necessidade de reafirmar essa tese surgiu devido à resistente divergência entre os TRTs - Tribunais Regionais, que, em alguns casos, entendiam que a falta de FGTS não configurava falta grave suficiente para a rescisão indireta, pois o problema seria passível de correção via judicial e não romperia a fidúcia.
Este incidente foi instaurado devido à elevada recorribilidade, o que colocava em risco a segurança jurídica e a unidade do direito nacional, apesar de a matéria já estar pacificada nas oito turmas e na SBDI-1 - Subseção 1 de Dissídios Individuais do TST.3
O TST superou essa divergência, consolidando que a irregularidade no FGTS constitui falta grave patronal. A tese fixada, de natureza obrigatória, é cristalina:
"A ausência ou irregularidade no recolhimento dos depósitos de FGTS caracteriza descumprimento de obrigação contratual, nos termos do art. 483, "d", da CLT, suficiente para configurar a rescisão indireta do contrato de trabalho, sendo desnecessário o requisito da imediatidade".
Esta tese resolve duas questões centrais:
a) Falta Grave: O descumprimento habitual e reiterado da obrigação de recolher o FGTS constitui falta grave apta a ensejar a rescisão indireta, conforme o art. 483, 'd', da CLT. O TST superou o entendimento de alguns TRTs (como o TRT da 12ª, 3ª, 21ª e 2ª regiões) que alegavam que a ausência do FGTS não possuía gravidade suficiente, por ser reparável judicialmente, ou que não rompia a fidúcia;
b) Imediatidade: O requisito da imediatidade (o ajuizamento imediato da ação) foi relativizado em observância aos princípios da continuidade laboral e da proteção ao hipossuficiente, garantindo que o empregado que suporta a mora patronal não seja penalizado.
3. A rescisão indireta na lei geral do esporte e a liberdade de escolha
O contrato do atleta profissional possui particularidades que potencializam a gravidade da falta de FGTS. A lei geral do esporte (LGE - lei 14.597/23) detalha a rescisão contratual para este profissional:
a) Prazo reduzido: O art. 90, § 1º, da LGE, prevê a rescisão indireta do contrato especial de trabalho desportivo por inadimplemento de obrigações relativas à remuneração ou FGTS, se a mora for por período igual ou superior a dois meses. Este prazo foi reduzido em relação à antiga lei Pelé (lei 9.615/1998), que previa três meses;
b) Mora Contumaz: O art. 90, § 3º, da LGE, estabelece que a mora contumaz se configura pelo não recolhimento do FGTS e das contribuições previdenciárias;
c) Efeito imediato: A rescisão do contrato na forma do art. 90, § 1º, autoriza o atleta a transferir-se para qualquer outra entidade de prática desportiva, nacional ou estrangeira, sem a exigência da cláusula compensatória desportiva.
A relevância da rescisão para o atleta reside no fato de que, enquanto o contrato permanece ativo e registrado no BID - Boletim Informativo Diário, ele não pode se ativar por outra entidade de prática desportiva, sofrendo prejuízos em sua carreira e perdendo oportunidades de competir. O direito de rescindir decorre da ?autonomia da vontade e de sua liberdade fundamental de escolha.
4. A aplicação do Tema 70 na concessão da tutela de evidência
A decisão interlocutória proferida pelo TRT da 2ª região (ATOrd 1001189-83.2025.5.02.0601)4, no caso do atleta Franco Delgado Curbelo x Sport Club Corinthians Paulista, ilustra perfeitamente a aplicação combinada da jurisprudência vinculante e da lei específica.
O atleta comprovou documentalmente a falta de recolhimento para sete competências do FGTS (maio, junho e dezembro de 2024, e janeiro a abril de 2025), tendo a entidade desportiva confessado estar inadimplemente com tal verba.
O juízo utilizou o art. 311, II, do CPC para conceder a tutela de evidência, independentemente do periculum in mora, por estarem presentes os seguintes requisitos:
a) Prova documental dos fatos: O descumprimento habitual e reiterado foi comprovado pelo extrato do FGTS;
b) Tese vinculante: O caso se enquadrou na tese firmada no IRR-70 do TST, que considera o inadimplemento do FGTS como falta grave (art. 483, 'd', da CLT).
A concessão da tutela, nesse contexto, foi essencialmente voltada para a liberação do atleta a fim de competir em outros clubes, diferindo de casos comuns onde se busca apenas o saque do FGTS ou o seguro-desemprego. O juízo reconheceu, de forma precária, a rescisão indireta, e determinou que a CBF realizasse a baixa do contrato e do vínculo desportivo do reclamante no BID, sob pena de multa diária.
Dessa forma, a segurança jurídica proporcionada pela tese vinculante do TST (Tema 70) permitiu que o juízo conferisse celeridade e efetividade ao direito do atleta de exercer livremente sua profissão, superando a necessidade histórica de recursos extraordinários e garantindo a aplicação do art. 483, 'd', da CLT.
5. Conclusão
A reafirmação da jurisprudência pelo TST no Tema 70, em conjunto com o rigor da lei geral do esporte (art. 90, § 1º e § 3º), eliminou as dúvidas remanescentes nas instâncias ordinárias sobre a gravidade da ausência de recolhimento do FGTS.
O entendimento consolidado de que a ausência ou irregularidade no FGTS configura falta grave (art. 483, "d", CLT) e a possibilidade de se valer da tutela de evidência, quando demonstrada a mora de FGTS, garantem a efetividade do direito do atleta profissional de se desvincular imediatamente para exercer livremente sua profissão em outra agremiação.
Este movimento jurisprudencial e legal confere maior segurança jurídica e celeridade processual ao Direito do Trabalho Desportivo, afastando a necessidade da discussão do habeas corpus para a efetivação de direitos já consolidados.
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1 Mais sobre a questão histórica do uso do Habeas Corpus na liberação de atletas de futebol em: SOUZA, Fabrício Trindade de. Rescisão Indireta do Contrato de Trabalho do Atleta Profissional. Habeas Corpus. Lei Geral do Esporte. A Celeuma Continua... In: FELICIANO, Guilherme Guimarães; OLIVEIRA, Leonardo Andreotti Paulo de; COSTA, Elthon José Gusmão da (Org.). Direito do trabalho desportivo: panorama, crítica e porvir. estudos em homenagem aos ministros Pedro Paulo Teixeira Manus e Walmir Oliveira da Costa in memoriam. 1. ed. Campinas, SP: Lacier Editora, 2024. p. 182-192.
2 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Tribunal Pleno. Acórdão no Incidente de Recurso Repetitivo (IRR-70) no Recurso de Revista Agravo n. TST-RRAg-1000063-90.2024.5.02.0032. Recorrente: Silvania Aparecida Batista Ramalho. Recorrida: Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Tese vinculante: A ausência ou irregularidade no recolhimento dos depósitos de FGTS caracteriza descumprimento de obrigação contratual, nos termos do art. 483, "d", da CLT, suficiente para configurar a rescisão indireta do contrato de trabalho, sendo desnecessário o requisito da imediatidade. Disponível em: https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/55634cd21cf4eab40a53d3c69f1464da. Acesso em: 25/10/25.
3 Com o CPC/2015, percebe-se que a intenção do legislador foi justamente criar uma cultura de precedentes, ao privilegiar a doutrina do stare decisis, quando elabora uma estrutura normativa contendo conceitos da common law - integridade, coerência e estabilidade (art. 926) -, e a determinação para que os juízes e tribunais observem decisões que tenham efeitos vinculantes (art. 927). Deixa-se evidente que os tribunais devem observar os seus próprios precedentes (stare decisis horizontal, art. 926), e os juízes e tribunais a eles vinculados têm o dever de observância às decisões advindas das cortes de vértice (stare decisis vertical, art. 927). MELO, Gabriela Fonseca de. Precedente judicial: formação e aplicação. 2. ed. rev. atual. Curitiba: Juruá, 2025, p. 51
[4] BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. 2º Núcleo de Justiça 4.0. Decisão Interlocutória na Ação Trabalhista - Rito Ordinário n. 1001189-83.2025.5.02.0601. Reclamante: Franco Delgado Curbelo. Reclamado: Sport Club Corinthians Paulista. Juiz: Rodrigo Rocha Gomes de Loiola. São Paulo, 30 jun. 2025. Disponível em: https://pje.trt2.jus.br/jurisprudencia/26e9d894e1775790035723cad1e7058e. Acesso em: 25/10/25.


