A Constituição não vale para Tavinho?
Reformas da previdência e administrativa punem quem sustenta o Estado. A Constituição? Não vale para o Tavinho. Estado mínimo para o povo, máximo para os privilegiados.
terça-feira, 28 de outubro de 2025
Atualizado em 29 de outubro de 2025 10:06
Na arena dos grandes embates constitucionais, há sempre um personagem silencioso que paga a conta: o servidor público.
O "Tavinho", como poderíamos chamá-lo, é aquele servidor que dedicou décadas ao serviço do Estado, acreditando nas regras do jogo, contribuindo religiosamente para a previdência, e confiando que, ao final da jornada, teria o que lhe foi prometido.
Mas, na hora da dividida, quando os interesses econômicos e políticos entram em campo, é ele quem sai perdendo. Aparecem os predadores do Direito: economia e política.
E o árbitro, o STF, tem assinalado pênaltis duvidosos - quase sempre contra o Tavinho.
Pode-se afirmar - com base em análises jurídicas e históricas - que todas as reformas da Previdência realizadas implicaram em subtração de direitos dos servidores públicos. Aqui está um panorama crítico:
- Redução de garantias: Cada reforma trouxe restrições ou reduções nos benefícios previdenciários dos servidores, seja por meio de idade mínima, cálculo de proventos, ou tributação pós-aposentadoria;
- Violação da proteção à confiança: Servidores que ingressaram sob determinadas regras viram essas regras mudarem ao longo do tempo, comprometendo expectativas legítimas;
- Desconstitucionalização: A EC 103/19 retirou da Constituição diversos parâmetros previdenciários, facilitando futuras alterações por lei ordinária - o que fragiliza a segurança jurídica.
Por exemplo: A pensionista do servidor Federal recebe 50% da pensão, acrescida de 10% por filho. Pense-se em uma viúva idosa, com 80 anos, e sem filhos...
Em resumo, o servidor público foi, sistematicamente, o alvo preferencial das reformas - sob o argumento de equilíbrio fiscal - mas sem a devida contrapartida em proteção constitucional.
Tudo isso com impacto direto sobre quem já estava prestes a se aposentar ou já havia se aposentado.
A promessa feita pelo Estado foi quebrada. E o STF, em vez de proteger o princípio da proteção à confiança - um dos pilares da segurança jurídica - preferiu endossar a narrativa da austeridade.
A previdência como direito fundamental
O art. 6º da CF/88 estabelece a previdência social como direito social. Para os servidores públicos, esse direito foi estruturado com regras específicas, reconhecendo a natureza estatutária da relação com o Estado.
A previdência é uma expressão da dignidade humana e da segurança jurídica.
O princípio da proteção à confiança
A proteção à confiança é um princípio implícito na Constituição, derivado da segurança jurídica no seu aspecto subjetivo e da boa-fé.
Logo, ela é direito fundamental!
Ela garante que o Estado não altere, de forma abrupta e prejudicial, regras que orientaram decisões de vida dos cidadãos - especialmente em sistemas previdenciários, onde o planejamento é de longo prazo.
A doutrina constitucional reconhece esse princípio como limite à atuação estatal, sobretudo em reformas que afetam direitos em formação ou já consolidados, para que não haja retrocesso social.
Postura do STF
- O STF tem adotado uma postura, em regra, de deferência ao Executivo e ao Legislativo em temas econômicos, como reformas da Previdência:
- Em vez de exercer um papel contramajoritário (defendendo direitos fundamentais mesmo contra a maioria política), o Supremo frequentemente valida medidas que sacrificam expectativas legítimas dos servidores.
Isso inclui:
- Mudanças abruptas nas regras de aposentadoria;
- Cobrança de contribuições sobre aposentadorias já concedidas;
- Alíquotas progressivas que penalizam quem ganha mais, mesmo após décadas de contribuição.
O paradoxo constitucional
- A Constituição garante direitos adquiridos, segurança jurídica e proteção à confiança.
- Mas na prática, o STF tem relativizado esses princípios em nome da responsabilidade fiscal, mesmo quando isso afeta diretamente quem já contribuiu por décadas - como o Tavinho.
Cortesia com o chapéu do Tavinho
Mais grave ainda é a manutenção da chamada bitributação dos aposentados.
Servidores que recebem acima do teto do INSS continuam pagando contribuição previdenciária mesmo após a aposentadoria.
Ora, como justificar que alguém contribua para um benefício que já conquistou? A resposta oficial é o equilíbrio atuarial.
Mas a resposta real parece ser outra: o Estado precisa de caixa, e o caminho mais fácil é cobrar de quem não tem como escapar: o coitado do Tavinho.
É a cortesia com chapéu dos outros. Ou melhor, cortesia com o chapéu do Tavinho!
O STF, que deveria ser o escudo dos direitos fundamentais, tem se mostrado complacente com esse tipo de violação.
Em vez de exercer seu papel contramajoritário, tem se alinhado ao discurso do "ajuste necessário", mesmo que isso signifique sacrificar a dignidade de quem sustentou o serviço público por décadas.
Mas, o STF lavou as mãos como Pilatos...
Essa lógica perversa transforma o servidor aposentado em fonte de arrecadação, não em sujeito de direitos.
E reforça a ideia de que o Estado, em vez de proteger quem o sustenta, prefere penalizar quem já deu sua contribuição.
O que diz a doutrina?
Importa, sim, o que a doutrina diz: a doutrina majoritária, capitaneada por ninguém menos que José Afonso da Silva - mestre de todos nós no Direito Constitucional -, sustenta que a cobrança de contribuição previdenciária de aposentados é inconstitucional e injusta, violando à proteção a segurança que o aspecto subjetivo da segurança jurídica.
De outro modo: É evidente que violou um direito fundamental, não é STF?
De mais a mais: O benefício foi adquirido após anos de contribuição, mas a cobrança atual desconsidera a vedação ao confisco (art. 150, IV, CF)
Aposentados continuam pagando sobre valores acima do teto do INSS sem perspectiva de contraprestação futura, caracterizando confisco indireto.
Além disso, é fundamental considerar o princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º, da CF), especialmente em relação aos aposentados.
A cobrança desconsidera o fato de que eles já contribuíram por muitos anos e frequentemente possuem sua renda comprometida com despesas médicas, familiares e necessidades básicas.
Realizar uma nova tributação, sem oferecer benefícios em troca, contraria esse princípio.
Cadê a eticidade?
Quando a força normativa da Constituição cede à conveniência política e econômica
A Constituição de 1988 não é um documento de intenções: é um pacto civilizatório que assegura direitos fundamentais, inclusive previdenciários, como expressão da dignidade humana.
Não é uma folha de papel, na reflexão de Ferdinand Lassalle.
A relativização do princípio da proteção à confiança, especialmente nas reformas que impõem bitributação aos aposentados, representa não apenas um desvio hermenêutico, mas uma ruptura institucional.
Tudo isso fragiliza a força normativa da Constituição, no ensinamento de Konrad Hesse, transformando-a em uma carta de intenções sujeita à conveniência política e econômica.
Por que a Constituição parece não proteger quem mais precisa dela?
Essa pergunta de um milhão de doláres ecoa entre os milhões de servidores públicos e militares como o "Tavinho", que dedicou décadas ao serviço estatal, acreditando que a aposentadoria seria o reconhecimento de sua trajetória.
No entanto, com a EC 41/03, Tavinho passou a contribuir novamente para a previdência - mesmo já aposentado. A justificativa? O princípio da solidariedade.
Mas será que essa solidariedade não se transformou em sacrifício unilateral?
A bola da vez: A reforma administrativa
A bola da vez é a Reforma administrativa. A PEC 38/25 foi protocolada no dia 24 de outubro, na Câmara dos Deputados.
Tenta fazer um desmonte silencioso da Constituição em vários artigos. Na verdade, a reforma promove uma desconstitucionalização do serviço público.
A reforma administrativa não é neutra. Ela carrega um projeto de Estado. E esse projeto não é o da CF/88. É contra o cidadão. É o da racionalidade gerencial, da flexibilização neoliberal e da blindagem institucional do topo.
O Tavinho é o bode expiatório. E, como de costume, o servidor público virou vilão. Lento, caro, resistente - dizem.
Esquecem que ele trabalha em escola sem ventilador, hospital sem insumo, delegacia sem colete. O salário? Defasado. A jornada? Exaustiva. A culpa? Sempre dele.
A narrativa é conveniente: pinta-se o servidor como obstáculo à modernização do Estado, enquanto se ignora que é ele quem sustenta os serviços públicos que chegam à população.
A reforma usa essa caricatura para justificar cortes, precarização e flexibilização.
Mas quem carrega o Estado nas costas é o servidor Tavinho - aquele que está no posto de saúde, na sala de aula, no cartório, nas delegacias.
Sem enfermeiro e médico, não há atendimento. Sem professor, não há futuro. Sem servidor nos cartórios, o processo não anda.
A máquina pública não se move por decreto, mas por gente. E essa gente está sendo desvalorizada, invisibilizada e culpabilizada.
Reforma administrativa, como está posta, não corrige distorções - apenas aprofunda desigualdades. E faz isso mirando justamente em quem mantém o Estado de pé.
Estado mínimo para o povo, Estado máximo para os privilegiados
O Estado de bem-estar social não é um inimigo a ser desmontado - é uma estrutura que precisa funcionar melhor.
E, para isso, precisa de servidores valorizados, bem formados, bem-educados, bem equipados e, claro, bem pagos.
O que se vê, no entanto, é um projeto de Estado mínimo para a população e Estado máximo para os de sempre - com todas as mordomias, privilégios e blindagens.
Enquanto o servidor é demonizado, os altos escalões seguem intocados, imunes às reformas que cortam na base. O Estado mínimo não parece alcançar os que vivem das suas tetas - apenas os que sustentam sua estrutura.
Conclusão
O STF continua dizendo que defende a Constituição. O Tavinho, servidor público, continua pagando para ver com as reformas da previdência. E para pagar, mesmo depois de aposentado.
A bola da vez: Reforma administrativa. E o Supremo como guardião da Constituição vai falar o quê?
O Supremo diz que protege a Constituição. O governo diz que protege o equilíbrio fiscal. E o Tavinho, servidor público, segue pagando para trabalhar, pagando para se aposentar e pagando para existir.


