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Ilegalidade da Instrução Normativa Ibama 08/2024 e suspensão de embargo

A IN Ibama 08/24 é ilegal: Exige CAR validado, desrespeita o federalismo cooperativo, impõe requisitos impossíveis e transforma embargo cautelar em punição perpétua.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Atualizado às 10:16

A Instrução Normativa Ibama 08/24, representa marco negativo no sistema administrativo sancionador ambiental brasileiro. A norma, além de extrapolar os limites do poder regulamentar, cria obstáculos materialmente intransponíveis para o desembargo rural, transformando medida cautelar em punição de difícil solução.

Violação ao princípio da legalidade e extrapolação do poder regulamentar

O art. 15-B do decreto 6.514/08 estabelece que a cessação dos efeitos do embargo depende da apresentação, por parte do autuado, de documentação que regularize a obra ou atividade. A redação original do decreto, marcada pela abertura semântica, deixa margem discricionária à administração. A IN 08/24, contudo, não se limitou a regulamentar o dispositivo dentro dos parâmetros constitucionais e legais, mas criou requisitos manifestamente incompatíveis com a legislação hierarquicamente superior.

O exame técnico do art. 4º da IN 08/24 revela seu aspecto mais problemático: a exigência de certificado de inscrição do imóvel rural no CAR - Cadastro Ambiental Rural, aprovado/validado pelo órgão ambiental competente. A norma extrapola manifestamente do poder regulamentar ao criar requisitos legais inexistentes. O art. 29, § 1º, do Código Florestal, quando instituiu o CAR, determinou apenas que a inscrição perante os estados ou municípios, sem condicionar sua eficácia à aprovação administrativa.

O decreto 7.830/12, que regulamenta o CAR, foi expresso ao conferir natureza autodeclaratória ao cadastro em seu art. 6º. O § 2º do art. 7º estabelece que enquanto não houver manifestação do órgão competente acerca de pendências ou inconsistências, a inscrição produz efeitos para todos os fins previstos em lei. Esta eficácia imediata do cadastro, ainda que pendente de análise, demonstra que o legislador optou por conferir presunção de veracidade às declarações do proprietário.

A exigência de validação do CAR como condição para o desembargo viola frontalmente o art. 51, § 1º, do Código Florestal, que estabelece com precisão que o embargo deve restringir-se aos locais onde efetivamente ocorreu a infração. Não se afirma que o empreendimento possa prescindir de estar integralmente regular, tampouco que a Administração esteja impedida de exigir tal condição. O ponto central é que o procedimento de regularização de um embargo localizado, com dano específico, não se presta à exigência de regularidade integral da propriedade.

O embargo recai especificamente sobre a área em que ocorreu o dano ambiental, sendo suficiente a formalização de um termo de compromisso para aquele local específico. A verificação da conformidade global do imóvel deve ocorrer por ocasião da análise do CAR, momento adequado para que o Estado imponha obrigações que extrapolem os limites do polígono objeto do embargo.

Entende-se, portanto, que é o caso de sustação legislativa da referida norma, por exorbitar o poder regulamentar, encontrando sólido fundamento constitucional no art. 49, inciso V, que estabelece competência exclusiva do Congresso Nacional para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. A Instrução Normativa 08/24 exorbita manifestamente do poder regulamentar ao criar requisitos legais inexistentes, estender efeitos além do objeto da sanção, estabelecer critérios subjetivos de regularidade, violar o federalismo cooperativo e criar óbices à análise.

Impossibilidade material de validação do CAR

E mais: a exigência de CAR validado constitui impossibilidade operacional. Dados oficiais do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (https://consultapublica.car.gov.br/publico/imoveis/index) revelam que, dos oito milhões imóveis inscritos, apenas 27,8% foram analisados e somente 4% validados até outubro de 2025. Este cenário evidencia que a efetividade da proteção ambiental fica comprometida não pela resistência dos produtores rurais à regularização, mas pela própria inoperância estatal.

Configura-se um dos mais graves paradoxos do sistema de embargos ambientais no Brasil: a criação, pelo próprio legislador, de mecanismos de regularização que são inviabilizados pela ineficiência administrativa. O Código Florestal estabeleceu sofisticado sistema de adequação ambiental das propriedades rurais, com instituições, prazos e procedimentos claramente definidos, mas que não encontrou correspondência na capacidade operacional dos órgãos ambientais, transformando o que deveria ser instrumento de regularização em entrave perpétuo à atividade rural sustentável.

Magistrados de primeiro grau têm adotado interpretação teleológica que dispensa a comprovação de termo de compromisso do PRA para suspensão de embargos em áreas consolidadas, bastando a demonstração da adesão ao programa, já que a assinatura do termo é ato que depende da administração. Como fundamentou a 1ª vara Federal de Sinop, se não havia serviço, não se podia exigir do administrado o que ele está impossibilitado de fazer, o que ele não pode obter1. Esta solução judicial preserva a coerência entre o instituto do embargo e sua finalidade legal, evitando que deficiências estruturais do Estado transformem medida temporária em restrição perpétua à propriedade.

Reposição florestal como requisito incompatível

Aspecto igualmente problemático da IN 08/24 reside na exigência de comprovante, emitido pelo órgão competente, de efetivação da reposição florestal obrigatória, constante do inciso VI do art. 4º. Há confusão conceitual significativa entre regularidade ambiental do imóvel e obrigações acessórias decorrentes da utilização de recursos florestais. A reposição florestal, disciplinada no art. 33, § 1º do Código Florestal, constitui obrigação de natureza distinta da reparação do dano ambiental, não guardando relação direta com a regularidade ambiental do imóvel rural.

IN 08/24 apresenta grave inadequação ao estabelecer requisitos genéricos e uniformes para suspensão de embargos, desconsiderando a diversidade de situações fáticas que podem ensejar a aplicação desta medida administrativa. Nas hipóteses de embargo decorrente de uso irregular do fogo, a exigência de reposição florestal demonstra completa desconexão com a realidade fática, pois não houve retirada de madeira. Em casos de fogo acidental ou provocado por terceiros sem participação do proprietário, não há supressão dolosa de vegetação que justifique a imposição de obrigação compensatória florestal.

Situação igualmente problemática ocorre nos embargos aplicados por exercício de atividade sem licença ambiental. Nestas hipóteses, a irregularidade é meramente formal e reside na ausência de autorização administrativa, não necessariamente em dano à vegetação nativa. A IN 08/24, ao exigir uniformemente a comprovação de reposição florestal, desconsidera que muitas atividades sujeitas a licenciamento ambiental não envolvem supressão vegetal. A imposição de requisitos relacionados à compensação florestal para estas atividades configura desproporcionalidade e extrapolação dos limites normativos.

Prevalência da finalidade sobre requisitos formais

O art. 108 do decreto 6.514/08 estabelece que a penalidade de embargo é imposta com o objetivo de impedir a continuidade do dano ambiental, propiciar a regeneração do meio ambiente e dar viabilidade à recuperação da área degradada. A verificação do cumprimento da finalidade constitui fundamento suficiente para a suspensão do embargo, independentemente de formalidades adicionais.

Precedente administrativo do Ibama, consubstanciado na decisão Interlocutória 30/20-SUPES-MT, esclareceu que cabe o levantamento do embargo mediante a comprovação da regularização na área embargada. Restou comprovado que a área encontra-se regenerada, atingindo a finalidade desta medida, não merecendo mais a permanência da penalidade imposta de embargo.2

Jurisprudência recente tem confirmado esta perspectiva. O TRF da 5ª região reconheceu expressamente que o embargo ambiental se trata de medida administrativa, com função preventiva e corretiva, e não deve ser confundida com sanção de caráter meramente punitivo. No caso concreto, o administrado havia comprovadamente regularizado a situação ambiental da área embargada através de PRAD - Plano de Recuperação de Área Degradada aprovado pelo órgão estadual competente, mas o Ibama se recusava a suspender o embargo sob o pretexto de que o CAR ainda não estava homologado. O Tribunal afirmou que a inscrição do imóvel rural no CAR é condição para a apresentação de PRA - Plano de Recuperação Ambiental e aprovação do PRAD, não sendo exigida a sua homologação para o levantamento do embargo3.

A Instrução Normativa 08/24, ao impor requisitos não ligados com a finalidade do embargo ambiental, contraria a instrumentalidade que caracteriza as medidas cautelares. A instrumentalidade do embargo decorre de sua vinculação a uma finalidade específica, conforme estabelece o art. 108 do decreto 6.514/08. Como observa Flávio Garcia Cabral, as medidas cautelares administrativas não constituem um fim em si mesmas, sendo adotadas para garantir a eficácia do provimento administrativo final ou para proteger o bem jurídico tutelado4.

Quando o embargo deixa de servir ao propósito específico para o qual foi concebido, seja porque o dano cessou, seja porque a área já se encontra em processo de regeneração ou recuperação, seja porque a atividade foi regularizada ou é regularizável, sua manutenção perde o fundamento jurídico que a legitimava. Alice Voronoff, em sua análise sobre o Direito Administrativo sancionador, destaca que as sanções administrativas devem ser enxergadas como instrumentos da administração para implementação de fins públicos e não somente como forma de punição do particular5.

Violação ao federalismo cooperativo e preponderância do ente licenciador

A prática de exigir documentação além daquela requerida pelo ente licenciador configura violação ao sistema cooperativo estabelecido pela LC 140/11. Se o órgão estadual considera regularizada determinada propriedade rural mediante apresentação de PRAD, ou mediante formalização de Termo de Compromisso, não cabe ao órgão federal condicionar o levantamento do embargo a requisitos adicionais como reposição florestal ou regularidade fiscal.

Como estabelece a Orientação Jurídica Normativa 49/2013/PFE-Ibama, em nenhuma hipótese deve-se admitir a prevalência da opinião técnica do órgão fiscalizador supletivo sobre a do órgão licenciador-fiscalizador primário. Esta orientação estabeleceu importante interpretação sobre a prevalência da manifestação técnica do órgão licenciador, ressaltando que não é função do Ibama discutir, em sede administrativa, os aspectos fáticos e jurídicos que embasaram a expedição de atos administrativos pelos demais órgãos da Administração Pública.

A regra de preponderância do ente licenciador deve sempre ser prestigiada, afastando-se normativas sobre regularidade ou suspensão de embargos de outros entes, como a Instrução Normativa Ibama 08/24, quando o ente licenciador já reconheceu a regularidade ambiental do imóvel ou ele mesmo aplicou medida de embargo. Diante da distribuição de competências estabelecida pela LC 140/11, é imperativo reconhecer que a IN 08/24 não se aplica aos casos em que o ente licenciador competente já atestou formalmente a regularidade ambiental da propriedade ou atividade. Nessas situações, o Ibama deve cancelar imediatamente qualquer embargo incidente sobre a área, sem submeter o administrado ao procedimento burocrático e aos requisitos adicionais previstos na instrução normativa.

Requisitos formais não podem se sobrepor à verdade material

O regime jurídico administrativo impõe que a aplicação de sanções e medidas acautelatórias observe o princípio da proporcionalidade, que se desdobra nas dimensões de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Quando o Estado cria um procedimento de regularização, mas não o torna acessível ao administrado por suas próprias limitações operacionais, a manutenção da sanção (embargo) torna-se desproporcional, pois impõe ao particular um ônus que ele não tem meios de afastar, mesmo estando disposto a cumprir as exigências legais.

A manutenção do embargo após comprovado o alcance de seus objetivos legais configura desvio de finalidade, transformando instrumento legítimo de proteção ambiental em restrição desproporcional e juridicamente insubsistente. A finalidade específica do embargo ambiental representa garantia fundamental de efetividade e proporcionalidade desta importante medida de proteção ambiental. Ao vincular o embargo a objetivos concretos e tecnicamente determinados, o legislador assegurou que este instrumento cumpra sua função sem incorrer em restrições desproporcionais aos direitos dos administrados.

Quando aplicado com rigorosa observância de sua finalidade específica, o embargo ambiental harmoniza a efetiva proteção do meio ambiente com o respeito às garantias constitucionais do devido processo legal, da proporcionalidade e da segurança jurídica. Por outro lado, quando desvirtuado desta finalidade, transforma-se em medida arbitrária e ineficaz, comprometendo não apenas direitos fundamentais, mas a própria credibilidade e legitimidade do sistema de proteção ambiental.

A efetividade da proteção ambiental não se mede pela perpetuação de restrições administrativas, mas pela real recuperação dos ecossistemas degradados. Quando o embargo cumpre sua finalidade, proporcionando a regeneração do ambiente, sua suspensão não representa retrocesso ecológico, mas reconhecimento da eficácia do próprio sistema de proteção ambiental.

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1. Justiça Federal de Sinop/MT. Processo nº 1000857-21.2020.401.3603. Juiz Federal Murilo Mendes.

2. Decisão Interlocutória nº 30/2020-SUPES-MT, no processo SEI 02054.000665/2013-46.

3. TRF-5, Apelação/Remessa Necessária 0804654-26.2023.4.05.8500, Rel. Des. Federal Leonardo Augusto Nunes Coutinho, j. 14/02/2025

4. CABRAL, Flávio Garcia. Medidas cautelares administrativas: regime jurídico da cautelaridade administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 121.

5. VORONOFF, Alice. Direito administrativo sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Forum, 2018.

Diovane Franco Rodrigues

VIP Diovane Franco Rodrigues

Advogado especialista em direito sancionador ambiental, sócio Farenzena Franco Advogados. Pós-graduado em Direito Administrativo. Mestrando - UNIVALI e ex-servidor da Justiça Federal.

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