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As comissões legislativas na defesa dos direitos coletivos

As comissões permanentes têm legitimidade para propor ações coletivas, amparadas por base legal, decisões do STJ e pelo fortalecimento da democracia participativa

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Atualizado às 10:31

Introdução

A atuação do Poder Legislativo não se limita à elaboração de leis. As casas legislativas - em especial por meio de suas comissões permanentes - também exercem papel essencial na fiscalização, no controle e na proteção de direitos de natureza coletiva.

Nas últimas décadas, o debate jurídico tem evoluído no sentido de reconhecer que tais Comissões Permanentes possuem legitimidade ativa para ajuizar ações civis públicas e outras demandas de tutela coletiva, sempre que a matéria versar sobre temas vinculados às suas finalidades institucionais. Essa interpretação amplia o alcance do controle social e reforça a dimensão republicana da representação parlamentar.

Fundamentos legais e interpretação sistemática

O art. 82, inciso III, do CDC (lei 8.078/90) dispõe que são legitimados para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos "os órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código".

Esse dispositivo revela uma orientação clara: a ausência de personalidade jurídica não impede a legitimidade ativa quando o órgão é dotado de atribuições finalísticas voltadas à tutela coletiva.

De modo convergente, a lei da ação civil pública (lei 7.347/85), em seu art. 5º, confere legitimidade ao Ministério Público, à Defensoria Pública, à União, aos Estados, aos Municípios, às autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista, bem como a associações que representem interesses coletivos. Embora as comissões legislativas não figurem expressamente nesse rol, a interpretação sistemática do ordenamento - à luz do princípio da simetria federativa e do art. 129, III, da Constituição Federal - permite concluir que entes públicos despersonalizados também podem propor ações, desde que a matéria guarde pertinência temática com sua função institucional.

Já a Lei da Ação Popular (lei 4.717/65), embora restrinja a legitimidade ao cidadão-eleitor, reforça o caráter participativo da tutela jurisdicional coletiva e evidencia o movimento histórico de democratização do acesso à Justiça. Nesse contexto, a ampliação da legitimidade das comissões legislativas não representa ruptura, mas continuidade e evolução do espírito da ação popular, ao permitir que o próprio Parlamento - enquanto representante legítimo da cidadania - atue na defesa dos interesses difusos que motivam sua criação.

Jurisprudência e precedentes do STJ

O STJ tem reconhecido reiteradamente a legitimidade ativa de órgãos legislativos para defesa de seus direitos e prerrogativas institucionais. A Súmula 525 consolida esse entendimento ao afirmar que "a Câmara de Vereadores pode ajuizar ação para defesa de seus direitos institucionais".

Mais do que isso, o STJ já reconheceu a legitimidade da Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro para propor ações coletivas em defesa dos consumidores, em precedentes como os REsp nº 1.874.643/RJ; AgInt no AREsp nº 953.199/RJ; REsp nº 1.658.568/RJ; REsp nº 1.428.801/RJ; AgRg no REsp nº 928.888/RJ; AgRg no REsp nº 1.299.255/RJ; REsp nº 1.075.392/RJ; REsp nº 1.098.804-RJ.

Além do STJ, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região também já posicionou nesse mesmo sentido. Vejamos o julga que ilustra o entendimento da Corte Federal:

PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO LIMINAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELA COMISSÃO DE DEFESA DO CONSUMIDOR DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - EMPRÉSTIMOS A APOSENTADOS E PENSIONISTAS DO INSS - PROPAGANDA ENGANOSA - INTERESSE DIFUSO, COLETIVO OU INDIVIDUAL HOMOGÊNEO - LEGITIMAÇÃO CONCORRENTE - VIOLAÇÃO DE NORMA LEGAL - ARTS. 6º, 31, 36, 37, 81, PARÁGRAFO ÚNICO, I, II, III E 82 - LEI Nº 8.078, DE 1990 (CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR) - OBRIGAÇÃO DE FAZER - MULTA - REDUÇÃO. 

1 - A Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, tem legitimidade para figurar no polo ativo de ação civil pública visando discutir vícios na propaganda relativa a empréstimos consignados em folha para aposentados e pensionistas do INSS. Sendo um órgão da administração pública, destinado especificamente à defesa dos direitos e interesses previstos no CDC, cumprindo os requisitos do parágrafo único do art. 81, do Código Consumerista, há de ser considerada parte legítima para figurar no polo ativo de demandas coletivas de consumo, na qualidade de substituto processual.

2 - O perigo de dano irreparável por demora da concessão da tutela, bem como a verossimilhança do direito alegado, na hipótese, afiguram-se patentes, tendo em vista que as propagandas veiculadas, ostensiva e massivamente, em diversos meios de comunicação, sem atender ao estipulado no Roteiro Técnico e Instrução Normativa referentes ao empréstimo consignado, bem como em flagrante desrespeito ao CDC, encerram a probabilidade de lesionar um enorme contingente de cidadãos. 

3 - A lei 8.078/90 (CDC) arrola e define no parágrafo único, I, II e III, os direitos (interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo) que poderão ser tutelados através das ações coletivas de consumo.  

4 - Há que se reconhecer, na hipótese, que os consumidores (aposentados e pensionistas do INSS) foram induzidos a erro na aquisição dos produtos e serviços oferecidos, o que caracteriza flagrante ofensa às regras contidas nos arts. 31 e 37 do CDC

5 - A multa tem o objetivo de inibir o inadimplemento da obrigação determinada pelo Juízo, uma vez que se constitui em meio intimidatório ao cumprimento da obrigação, pois basta que seja cumprida a determinação para que o pagamento da multa seja interrompido. Sendo o seu valor excessivo, impõe-se a sua redução. 

6 - Agravo de instrumento provido parcialmente. 

(TRF-2 - AG: 200602010030930 RJ 2006.02.01.003093-0, Relator: Desembargador Federal FREDERICO GUEIROS, Data de Julgamento: 04/07/2007, SEXTA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: E-DJF2R - Data: 07/10/2010 - Página: 184/185)

Esses julgados consolidam a compreensão de que a pertinência temática e institucional é o critério decisivo para a legitimidade ativa, e não a personalidade jurídica do órgão.

Instrumento de cidadania e fortalecimento institucional

Permitir que as comissões legislativas atuem judicialmente em defesa de direitos coletivos é fortalecer o controle social, a transparência e a fiscalização democrática. Essas comissões são compostas por representantes eleitos e possuem atribuições temáticas definidas, o que lhes confere autoridade técnica e legitimidade política para tutelar interesses difusos, como o meio ambiente equilibrado, o acesso à saúde, a educação pública de qualidade e a defesa do consumidor.

Essa ampliação de legitimidade não invade a competência do Executivo, mas, ao contrário, reforça a harmonia e a independência entre os Poderes - elementos essenciais do Estado Democrático de Direito.

Conclusão

O reconhecimento da legitimidade ativa das Comissões Permanentes do Poder Legislativo em ações coletivas representa um passo importante na evolução da tutela jurisdicional dos direitos difusos e coletivos.

Ao lado do Ministério Público, da Defensoria e das associações civis, o parlamento - por meio de suas comissões - se afirma como protagonista na defesa do interesse público, concretizando o ideal de uma democracia participativa, em que a representação política e a cidadania compartilham o mesmo compromisso: a proteção dos direitos fundamentais e da coletividade.

Gustavo Bottós de Paula

VIP Gustavo Bottós de Paula

Advogado formado pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Pós-graduado em Direito Público, Civil e Processual Civil. Diretor-Geral do Hospital e Maternidade Dona Regina, em Palmas, Tocantins.

Dorema Costa

Dorema Costa

Dorema Costa é advogada graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO); reside em Palmas/TO,; pós graduada em Ciências Políticas; Subprocuradora Geral da Assembleia Legislativa/TO

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