A "nova" usucapião familiar: Diálogos prospectivos com o PL 4/25
Objetivando maior segurança jurídica, o PL 4/25 densifica a disciplina do "abandono do lar" previsto pelo art. 1.240-A do CC, possibilitando conexões sistemáticas com o regime jurídico da posse.
quarta-feira, 29 de outubro de 2025
Atualizado às 14:17
Em texto anterior publicado neste portal1, tivemos a oportunidade de examinar proposições do PL 4/25 no tratamento dado à posse. Especificamente, pudemos enfatizar os avanços e possibilidades de melhorias do projeto quanto ao novo regime jurídico proposto à precariedade da posse e à interversio possessionis.
Destacou-se, naquela ocasião, que o PL veicula proposta de recodificação em matéria de posse. São vários os dispositivos normativos do CC cuja atualização é guiada pela jurisprudência consolidada do STJ e pela literatura majoritária. Esta, em muitos momentos, faz-se representada em enunciados das Jornadas de Direito Civil do CJF, que acabaram, em grande parte, vertidos em dispositivos normativos acrescentados pelo PL.
Ponto que se enquadra nesse contexto é o (novel) tratamento que o projeto confere à "usucapião familiar", também reconhecida como "usucapião por abandono do lar", prevista no art. 1.240-A do CC. Propõe-se, além de modificações ligeiras na redação do caput, o acréscimo de quatro parágrafos ao referido dispositivo (§§2º-A a 5º). O objetivo das alterações, consoante declarado na justificação do PL, é enaltecer "a proteção da família que resiste no imóvel, e não o foco punitivo naquele que abandonou o imóvel, o que se mostrava de todo equivocado" - declaração que nutre clara afinidade com o enunciado 595 da VII Jornada de Direito Civil do CJF2.
Reconhecida por seus requisitos particulares e característicos, a usucapião familiar ganha posição de destaque em nosso ordenamento jurídico, contando com o menor prazo para consumação - dois anos - dentre as modalidades de usucapião admitidas pelo Direito brasileiro. Mas é justamente em razão dessa "particularidade" dos seus pressupostos que essa modalidade de usucapião tem gerado dúvidas sobre sua incidência. Afinal, o que configura o "abandono do lar"? Estar-se-ia falando em uma simples derelicção? Ou se trata de um abandono qualificado, que exige mais requisitos? E mais: como provar em juízo tal abandono? São questionamentos pendentes que, fatalmente, conduzem a certa insegurança jurídica sobre o instituto.
O PL, desse modo, vem para positivar, no texto normativo, soluções que têm sido aplicadas pela jurisprudência e pela doutrina, além de efetuar certas correções. Uma primeira retificação já é observada no caput do art. 1.240-A: substitui-se a expressão "posse direta, com exclusividade" por "posse com intenção de dono, com exclusividade".
A solução tem duplo efeito.
Em primeiro lugar, elimina-se uma contradictio in terminis: como se sabe, quando há posse direta, necessariamente há uma posse indireta, já que ambas resultam do fenômeno do desmembramento da posse (art. 1.197 do CC). Logo, se a posse exigida fosse a "direta", logicamente ela não poderia ser exercida "com exclusividade", já que convive, necessariamente, com a indireta. A intenção do legislador original fora, possivelmente, destacar que tal posse deveria ser exercida mediante apreensão fática do bem, sendo, de todo modo, atécnico o uso do termo "direta" nesse sentido.
Em segundo, o texto proposto pelo PL deixa claro que o animus domini também é um pressuposto para essa modalidade de usucapião. Por mais que, em tese, fosse uma especificação prescindível, a alteração reforça o que os Tribunais têm enfatizado casuisticamente. Se há "atos de dono" - por exemplo, pagamento de impostos ou de despesas do imóvel - praticados por outra pessoa que não o usucapiente (como, por exemplo, o próprio ex-cônjuge ou ex-convivente que saiu do imóvel), este não terá cumprido requisito essencial para a aquisição do direito de propriedade por essa via, por lhe faltar o animus domini.
Passando-se aos parágrafos propostos pelo PL, tem-se, no §2º-A, a sugestão de um ponto de segurança: a estipulação de um marco temporal objetivo para deflagração do prazo da usucapião. Consistirá ele na "data do fim da composse existente entre os ex-cônjuges ou os ex-conviventes". O projeto explicita a ligação entre o "abandono do lar" e a perda da posse, o que enseja conexões importantes com outros dispositivos do CC, como se verá adiante.
Feita a delimitação do termo a quo do prazo de dois anos, o PL então prevê, no §3º, a presunção de ocorrência desse marco temporal: "presume-se como cessada a composse quando, a partir do fim da posse com intenção de dono, em conjunto, o ex-cônjuge ou ex-convivente deixa de arcar com as despesas relativas ao imóvel". Esclarece-se, então, um elemento específico cuja presença faz presumir o abandono do lar (resultado do fim da composse): a interrupção, pelo abandonante, do pagamento das despesas do imóvel.
É, sem dúvida, uma opção plausível, pois a ausência de contribuição do abandonante evidencia que este não mais tem interesse no bem e que o possuidor remanescente assumiu integralmente os encargos do imóvel e age como seu único titular, caracterizando de forma inequívoca o animus domini.
Por outro lado, o uso do termo "presume-se" conduz à possibilidade de se considerar outras causas de fim da composse. A perda da posse, de forma genérica, é tratada no art. 1.223, que a prevê "quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196". Em complementação, o art. 1.224 dispõe que "só se considera perdida a posse para quem não presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a coisa, ou, tentando recuperá-la, é violentamente repelido".
Logo se percebe que o fim da composse e a manutenção da posse exclusiva e com animus domini pelo ex-cônjuge ou ex-convivente abandonado são configurados a partir do comportamento dos sujeitos envolvidos. A interrupção do pagamento das dívidas referentes ao imóvel é, como já pontuado, um marco seguro para tanto. Porém, é plenamente possível que a cessação da composse decorra de outras circunstâncias igualmente objetivas.
Uma notificação extrajudicial remetida pelo abandonado ao abandonante, explicitando que aquele se contrapõe a qualquer ato possessório deste, excluindo-o integralmente da posse do imóvel e assumindo todos os encargos do bem, é um ato inequívoco de oposição - de alteração da causa da posse e de possível provocação da interversio possessionis - que, se não prontamente repelido, ocasionará a concentração da posse exclusiva em nome do notificante e perda de posse pelo notificado, nos termos do art. 1.224 do CC. Pode-se enxergar, aqui, uma espécie de abandono por omissão, isto é, uma renúncia voluntária à posse evidenciada pela inércia do ex-possuidor notificado. Trata-se de leitura possível a partir de outras inovações legislativas do próprio PL, como o novel §1º do art. 1.1983 e o parágrafo único acrescido ao art. 1.2034-5. Essa notificação, ainda, pode servir para afastar qualquer alegação de que a desocupação do bem por um dos ex-cônjuges ou ex-conviventes foi acordada entre eles ou que se trata de atos de mera permissão ou tolerância (art. 1.208, ab ovo, do CC), convenção que naturalmente descaracterizaria o abandono do lar e o animus domini daquele que permanece no imóvel6.
O importante, como o texto proposto pelo PL identifica, é que se trate de um ato volitivo de derelicção pelo abandonante, isto é, que haja um comportamento inequívoco no sentido de desvincular-se do imóvel. É o que fica claro em excerto específico do §3º proposto pelo PL, que registra: "a partir do fim da posse com intenção de dono".
Para esclarecer ainda mais a animosidade do ato de abandono, o §5º proposto pelo projeto enfatiza que "o requisito do abandono do lar deve ser interpretado como abandono voluntário da posse do imóvel, não importando em averiguação da culpa pelo fim da sociedade conjugal, do casamento ou da união estável". Esclarecendo, ainda, o uso do prefixo "ex" em "ex-cônjuge" e "ex-convivente", o PL indica, no §4º, que "as expressões ex-cônjuge e ex-convivente, contidas neste dispositivo, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio ou de dissolução da união estável". Evidencia-se, assim, a valorização da realidade fática da separação em detrimento de formalidades, assegurando que a incidência da usucapião familiar se dê com base na situação concreta de dissolução da vida em comum.
A adoção dessas definições pelo PL segue a jurisprudência dos Tribunais, que têm afastado a configuração de abandono de lar em situações em que há: acordo entre as partes para permanência de uma delas no imóvel7; atos de mera permissão ou tolerância quanto à estadia no imóvel8 (art. 1.208, ab initio, do CC); saída do imóvel como mera decorrência natural da separação de fato do casal9; manutenção do pagamento do financiamento imobiliário e de outras despesas do bem pelo pretenso "abandonante"10; e até mesmo quando a saída do imóvel é consequência de medida protetiva concedida à mulher11. Em síntese, o abandono do lar configura-se como um ato volitivo, comissivo ou omissivo, do ex-cônjuge ou ex-convivente.
Em conclusão, de lege ferenda, parecem recomendáveis alguns aperfeiçoamentos pontuais ao art. 1.240-A, em diálogo sistemático com os arts. 1.198, §1º, 1.202, parágrafo único, e 1.203, parágrafo único, propostos pelo PL. Mostra-se útil a positivação de um rol exemplificativo de indicadores objetivos de abandono voluntário da posse (por exemplo, a recusa expressa ou tácita em reassumir encargos após interpelação), assim como a previsão da interpelação como mecanismo de deflagração do termo inicial do prazo da usucapião.
Espera-se, com isso, auxiliar o PL no cumprimento do propósito por ele enunciado quanto à usucapião familiar - propósito ao qual, a esta altura, tem atendido bem: recentrar o foco do instituto na proteção da família que permanece no imóvel, fornecer critérios objetivos para a fixação do termo a quo do prazo bienal, precisar os elementos caracterizadores do abandono voluntário e reduzir a insegurança jurídica decorrente de interpretações díspares da atual redação do art. 1.240-A, ainda lacônica ante a complexidade dessa modalidade de usucapião.
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1 SIMÕES, Eduardo Figueiredo. Precariedade e interversão da posse na reforma do Código Civil. Migalhas, São Paulo, 2025.
2 Enunciado 595 da VII Jornada de Direito Civil do CJF: "o requisito 'abandono do lar' deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499".
3 Art. 1.198. .... § 1º Nos termos deste artigo, presume-se permanecer como detentor perante o proprietário, o possuidor e terceiros aquele que desde sempre se comportou como tal, até que ele demonstre, ou contra ele fique demonstrado, ter consigo a coisa em razão de outra causa.
4 Art. 1.203. .... Parágrafo único. Haverá modificação da causa da posse quando o então possuidor direto comprovar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto.
5 Ambos os dispositivos e outros propostos pelo PL 4/2025 são examinados detidamente no nosso: SIMÕES, Eduardo Figueiredo. Precariedade e interversão da posse na reforma do Código Civil. Migalhas, São Paulo, 2025.
6 TJRS - Apelação Cível, Nº 50045256720188210027, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Ricardo dos Santos Costa, Julgado em: 28-08-2025; e TJSP - Apelação Cível 1015410-83.2022.8.26.0625; Relator (a): Eduardo Francisco Marcondes; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Taubaté - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 02/10/2025; Data de Registro: 02/10/2025.
7 TJRS - Apelação Cível, Nº 50045256720188210027, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Ricardo dos Santos Costa, Julgado em: 28-08-2025.
8 TJSP - Apelação Cível 1015410-83.2022.8.26.0625; Relator (a): Eduardo Francisco Marcondes; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Taubaté - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 02/10/2025; Data de Registro: 02/10/2025.
9 TJSP - Apelação Cível 1007147-47.2021.8.26.0609; Relator (a): Theodureto Camargo; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro de Taboão da Serra - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2025; Data de Registro: 29/09/2025; TJMG -Apelação Cível1.0000.25.264570-0/001, Relator(a): Des.(a) Ângela de Lourdes Rodrigues , 8ª Câmara Cível Especializada, julgamento em 11/10/2025, publicação da súmula em 13/10/2025; TJMG - Apelação Cível 1.0000.25.309174-8/001, Relator(a): Des.(a) Teresa Cristina da Cunha Peixoto , 8ª Câmara Cível Especializada, julgamento em 25/09/2025, publicação da súmula em 26/09/2025; e TJMG - Apelação Cível 1.0000.25.061838-6/001, Relator(a): Des.(a) Carlos Roberto de Faria , 8ª Câmara Cível Especializada, julgamento em 28/08/2025, publicação da súmula em 28/08/2025.
10 TJMG -Apelação Cível1.0000.25.051626-7/001, Relator(a): Des.(a) Paulo Rogério de Souza Abrantes (JD Convocado), Câmara Justiça 4.0 - Especializada, julgamento em 07/10/2025, publicação da súmula em 08/10/2025.
11 TJRS - Apelação Cível, Nº 50008821320188214001, Primeira Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luis Gustavo Pedroso Lacerda, Julgado em: 27-08-2025.


