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Viés fiscalista na reforma administrativa: Introdução

O artigo analisa a proposta de reforma administrativa. Apresenta-se a percepção do viéis fiscalista na proposta. Apontado o uso da austeridade como instrumento.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Atualizado às 12:17

1. Introdução: A constitucionalização da austeridade

A proposta de reforma administrativa apresentada ao público em 2/10/25 é herdeira da PEC 32/20. A proposta representa uma tentativa de inscrever no texto constitucional uma "arquitetura da austeridade", isto é, um conjunto de regras fiscais limitadoras da capacidade de gasto e de atuação do Estado, consolidando um viés fiscalista no corpo da Constituição da República de 1988.

Sob a narrativa de eficiência, meritocracia e combate a privilégios, oculta-se um projeto de redefinição do pacto social de 1988. Tal projeto subordina a prestação de serviços públicos e a garantia de direitos sociais a um imperativo de contenção fiscal de longo prazo.

O debate em torno da reforma administrativa atraiu críticas de instituições de pesquisa, como o Dieese - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos2, e de entidades como o Fonacate - Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado3. Vamos ao artigo.

2. O paradigma fiscalista e a doutrina da austeridade.

Para compreender a proposta de reforma administrativa, é necessário analisar o quadro teórico e ideológico que a sustenta: o viés fiscalista e sua principal ferramenta, a política de austeridade.

2.1. Definição do viés fiscalista

O "viés fiscalista" pode ser definido como uma abordagem de política econômica que subordina funções do Estado como a indução do crescimento econômico, a redução das desigualdades e a promoção do bem-estar social à prioridade do equilíbrio das contas públicas, da geração de superávits primários e da garantia de sustentabilidade da dívida pública.

A política fiscal abandona sua vocação de ser instrumento de gestão macroeconômica, capaz de responder a ciclos de recessão com investimentos públicos (efeito crowding in), acabando por se tornar uma política cujo principal objetivo é conter despesas e sinalizar "credibilidade" aos mercados financeiros.

2.2. A austeridade como instrumento

A austeridade é o principal instrumento do fiscalismo, podendo ser entendida como uma política de ajuste econômico fundada na redução drástica dos gastos públicos e, consequentemente, do papel do Estado na economia e na sociedade4. O argumento é que cortes de despesas, ao demonstrarem "responsabilidade fiscal", melhoram a confiança dos agentes econômicos, estimulando o investimento privado e a retomada do crescimento.

Contudo, a experiência demonstra que tais políticas acabam por não atingir o efeito esperado. Ao invés de estimular o crescimento, a contração do gasto público em períodos de recessão tende a aprofundar a crise: o gasto de um agente (o governo) é a renda de outro (setor privado).

A queda na atividade econômica reduz a arrecadação de impostos, prejudicando o resultado fiscal. Já atravessamos a experiência dessa doutrina. Quem não se lembra da EC 95/16 ("Teto de Gastos")? Sancionada sob a justificativa de reequilibrar as contas, a medida congelou as despesas primárias por vinte anos, resultando em um subfinanciamento de áreas essenciais.

A narrativa de uma crise fiscal persistente e a necessidade de um "ajuste" estrutural servem como premissa para legitimar a introdução de reformas. Sob o pretexto de resolver um problema conjuntural (o desequilíbrio das contas), a reforma visa alterar o modelo de Estado.

A crise fiscal torna-se a justificativa para uma mudança de regime fiscal de longo prazo, onde a austeridade deixa de ser uma política de governo para se tornar uma estrutura permanente do Estado, inscrita na própria Constituição.

3. A narrativa da eficiência: Análise do discurso oficial da reforma

A proposta de reforma administrativa é apresentada por meio de uma narrativa construída, centrada nos conceitos de modernização, eficiência e combate a privilégios. Essa operação de enquadramento discursivo busca apresentar as profundas mudanças fiscais como uma atualização técnica e apolítica da máquina pública, ocultando sua lógica fiscalista subjacente.

3.1. Os quatro eixos da "modernização"

O "Fichário da Reforma Administrativa"5, documento que detalha a proposta, estrutura-a em quatro eixos principais, cada um associado a um objetivo de modernização:

a) Estratégia, governança e gestão: Foco em planejamento estratégico, acordos de resultados e bônus por desempenho, com o objetivo de criar uma gestão pública orientada para o cidadão e para a entrega de valor.

b) Transformação digital: Visa à digitalização de processos e serviços, promovendo agilidade e transparência.

c) Profissionalização do serviço público: Propõe a reestruturação de carreiras, a adoção de uma tabela remuneratória única e a valorização da meritocracia.

d) Extinção de privilégios: Apresentado como o eixo central do combate às desigualdades e excessos no serviço público.

A retórica apresentada busca despolitizar o debate, tratando a redução do Estado e a contenção de gastos não como uma escolha ideológica, mas como uma necessidade técnica para alcançar uma gestão mais "produtiva" e "menos onerosa".

3.2. O combate aos "privilégios" como legitimador social

A proposta de reforma apoia-se em dados de opinião pública, como pesquisa Datafolha que mostra rejeição majoritária aos "supersalários". Ao classificar direitos históricos dos servidores como privilégios, busca-se apoio popular para restringir esses direitos. A "extinção de privilégios" funciona como recurso retórico para justificar medidas fiscais.

Embora o discurso prometa melhorar a entrega de serviços públicos, o real propósito é conter gastos, o que reproduz contradições já verificadas em experiências passadas. Podemos citar a EC 95 ("teto de gastos"), que reduziu investimentos em saúde e educação.

Assim, o objetivo fiscal se sobrepõe à retórica de eficiência e foco no cidadão, usada apenas para legitimar a agenda de austeridade.

4. Conclusão

A análise do viés fiscalista da reforma administrativa revela que ela ultrapassa a simples reestruturação, consolidando constitucionalmente a austeridade permanente. Ao priorizar o equilíbrio fiscal sobre os direitos sociais, a proposta reconfigura o pacto de 1988.

A narrativa de "modernização" e "combate a privilégios" atua como estratégia retórica para legitimar essa agenda, que, na essência, é uma "reforma de Estado". Trata-se de uma mutação constitucional silenciosa que subordina a política social à disciplina fiscal, tendendo a aprofundar desigualdades e a enfraquecer a capacidade estatal.

________

1 Gustavo Roberto Januário. Procurador Federal. Especialista em Processo Civil pela USP. Especialista em Advocacia Pública pela ESAGU

2 Estudos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) (2025).

3 Anais do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate).

4 Duran, C. V. (2021). Tristes tropicalizações: austeridade fiscal e sua constitucionalização no Brasil. Direito Público, 18(97). https://doi.org/10.11117/rdp.v18i97.4987

5 BRASIL. Câmara dos Deputados. Grupo de Trabalho da Reforma Administrativa. Fichário da Reforma Administrativa. Brasília

Gustavo Roberto Januário

VIP Gustavo Roberto Januário

Procurador Federal desde 2015. Especialista em Processo Civil pela USP e em Advocacia Pública pela ESAGU. Aluno especial do Mestrado em Constitucionalismo e Democracia pela FDSM.

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