Controle judicial do mérito administrativo nos processos disciplinares
O artigo analisa o MS 38.542/SC e discute os limites do controle judicial sobre o mérito administrativo.
quinta-feira, 30 de outubro de 2025
Atualizado às 12:20
O presente estudo tem por objeto promover a análise da decisão judicial proferida pelo STF no mandado de segurança 38.548/SC, que, à luz de consolidada jurisprudência da Suprema Corte, denegou a ordem sob o principal fundamento de que não cabe controle judicial do mérito administrativo em processos administrativos sancionadores.
O STF possui entendimento pacífico no sentido de que não cabe ao Judiciário controlar o mérito administrativo, mas somente aspectos relativos à legalidade do procedimento e da observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, descabendo incursão no mérito, ressalvadas hipóteses de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada.
Muito embora consolidado o tema em sede jurisprudencial perante a Suprema Corte brasileira, é indiscutível a existência de verdadeiro embate doutrinário a respeito do controle judicial do mérito administrativo. Isso porque, diante do fenômeno do neoconstitucionalismo, os temas de Direito Administrativo passaram a estar expressamente previstos na CF/88, o que, por sua vez, favoreceu para a diminuição da discricionariedade administrativa.
Além do mais, conquanto o STF tenha entendimento no sentido de ser descabido o controle judicial do mérito administrativo, verifica-se, inclusive no presente julgado, que o Tribunal promove a análise do mérito administrativo para confirmar a decisão prolatada pela Administração Pública.
O referido julgado se trata de mandado de segurança impetrado por servidora pública contra ato do procurador-Geral de Justiça que indeferiu o recurso administrativo e manteve a aplicação da sanção disciplinar. No julgamento, a Corte manteve a decisão da Administração e reforçou o entendimento da Suprema Corte quanto ao exame de legalidade do procedimento e da observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, conforme ementa abaixo:
Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. SERVIDORA PÚBLICA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DEMISSÃO. REGULARIDADE. VÍCIO FORMAL NÃO CONFIGURADO. DESPROPORCIONALIDADE DA PENA. AUSÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I. CASO EM EXAME 1. Mandado de segurança impetrado por servidora do MPF contra ato do Procurador-Geral da República que, ao indeferir recurso administrativo, manteve a aplicação da penalidade de demissão. 2. A impetrante foi responsabilizada, em processo administrativo disciplinar, por descumprimento de norma regulamentar (Lei n. 8.112/1990, art. 116, III), falta de pontualidade (Lei n. 8.112/1990, art. 116, X), inserção de dados falsos no sistema eletrônico, conduta tipificada no art. 313-A do CP, e ato de improbidade administrativa (Lei n. 8.429/1992, arts. 10 e 11). 3. Com o mandado de segurança, pretende-se a anulação do ato de demissão, ante arguida ilegalidade na imposição da sanção disciplinar. Alega-se que as condutas atribuídas à impetrante não configuram crime nem ato de improbidade administrativa, e que a penalidade aplicada é desproporcional, dada a ausência de prejuízo à Administração. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 4. A questão em discussão consiste em saber se o processo administrativo disciplinar que culminou na demissão da servidora observou as normas procedimentais respectivas, bem como se há ilegalidade manifesta ou desproporcionalidade evidente no ato impugnado, passível de controle por meio de mandado de segurança. III. RAZÕES DE DECIDIR 5. O STF tem jurisprudência consolidada no sentido de que o controle judicial de atos administrativos disciplinares se limita à verificação da legalidade do procedimento e da observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, descabendo incursão no mérito, ressalvadas hipóteses de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada. 6. O processo disciplinar observou os trâmites legais, desde a apuração preliminar até a decisão final da autoridade competente, não se verificando vício formal. 7. A aplicação da pena de demissão fundamentou-se em incongruências entre os registros manuais de ponto e as imagens do sistema de videomonitoramento da unidade, bem como em indícios de inserção de dados falsos no sistema de frequência institucional. 8. As alegações de que não houve dolo nem obtenção de vantagem indevida, bem assim de que os fatos não caracterizam crime ou ato de improbidade administrativa, demandam dilação probatória, providência incompatível com a via estreita do mandado de segurança. 9. Uma vez não evidenciada desproporcionalidade manifesta, mostra-se inadequada a revisão da pena em sede de ação mandamental. IV. DISPOSITIVO 10. Ordem denegada.
(MS 38542, Relator(a): NUNES MARQUES, Segunda Turma, julgado em 25-08-2025, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25-09-2025 PUBLIC 26-09-2025)
Em voto condutor, o relator ministro Nunes Marques iniciou a análise do caso ressaltando a jurisprudência da Corte a respeito do controle judicial do mérito administrativo:
O STF possui entendimento consolidado no sentido de que, ao apreciar processo administrativo disciplinar, compete ao Poder Judiciário apenas a análise da legalidade do ato impugnado e a verificação da ocorrência de eventuais vícios formais ou de afronta aos postulados constitucionais do contraditório e do devido processo legal, descabendo incursão no mérito, ressalvadas hipóteses de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada (RMS 40.113 AgR, 2ª turma, relator ministro Dias Toffoli, DJe 3.4.25; RMS 34.004 ED-AgR, 1ª turma, relator ministro Luiz Fux, DJe 11.12.17; e RMS 27.934 AgR, 2ª turma, relator ministro Teori Zavascki, DJe 3.8.15)
Cabe, portanto, a esta Suprema Corte verificar se a legislação aplicável foi devidamente observada, ou seja, se o processo administrativo transcorreu em conformidade com as normas legais pertinentes, sem vícios que comprometessem sua validade, bem como se a sanção imposta não é manifestamente desproporcional. Ressalte-se que, nesse contexto, não se admite o reexame do mérito administrativo pelo Poder Judiciário. Sob essa perspectiva, constata-se que o processo administrativo disciplinar 1.33.000.00570/2019-11 tramitou de forma regular, com observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, desde a fase inicial de apuração de eventual falta funcional (autos 1.33.000.002409/2018-00), passando pela instauração do PAD, até a prolação da decisão sancionatória.
No entanto, em continuidade, promoveu a análise da valoração das provas produzidas no processo administrativo e sua proporcionalidade à sanção aplicada, o exame do elemento subjetivo do dolo na conduta da servidora, ressaltou a independência entre as esferas administrativa, penal e cível e discorreu sobre a dosimetria da pena aplicada.
Com isso, dentro da impossibilidade de valoração da prova na via estreita do mandado de segurança, a Corte adentrou no mérito administrativo da sanção aplicada para confirmar a decisão tomada pela Administração Pública.
Assim, diante da posição adotada pela Corte no mandado de segurança 38.548/SC e de seu entendimento a respeito do tema, é imperioso lançar luz à doutrina específica no tocante ao controle judicial do mérito administrativo nos processos administrativos sancionadores pós movimento de constitucionalização do Direito Administrativo.
A constitucionalização do Direito Administrativo autoriza repensar o alcance do controle jurisdicional em processos administrativos sancionadores no geral, não apenas disciplinares.
Se, no modelo tradicional, o Judiciário se limitava a aferir legalidade estrita, forma e observância do contraditório e da ampla defesa, a paulatina conversão da legalidade em juridicidade amplia o parâmetro de sindicabilidade para incluir a compatibilidade material do ato com princípios como proporcionalidade, razoabilidade, moralidade e segurança jurídica.
Nesse novo cenário, juridicidade significa submeter a Administração não apenas às leis editadas pelo legislador, mas a todo o sistema normativo, incluindo os princípios expressos e implícitos da Constituição. Trata-se de uma legalidade material, que exige não só a conformidade formal dos atos com a lei, mas também sua adequação a valores principiológicos.
Nesse sentido, Lon Fuller em sua obra "The Morality of Law", destaca requisitos como clareza, publicidade, congruência e estabilidade normativa como condições para um sistema jurídico legítimo. Aplicados ao Direito Administrativo Sancionador, tais requisitos impõem que as sanções não sejam apenas legais, mas também compreensíveis, estáveis e justificadas, de forma a preservar a confiança dos administrados e limitar a arbitrariedade estatal.
Com isso, o controle judicial do mérito não consiste em substituir a discricionariedade técnica do administrador pela do julgador, mas de submeter a decisão administrativa a um juízo constitucionalmente orientado à ideia de juridicidade, valendo-se do seu resultado e sua motivação.
Verifica-se, assim, que há verdadeiro deslocamento do foco, que deixa de ser o mero controle da vontade de administrador, e passa a ser o controle da juridicidade dos resultados, de maneira que o desempenho administrativo seja medido por parâmetros constitucionais de eficiência e efetividade, com accountability substantiva sobre quem responde, quando e como pelos resultado.
A racionalidade exposta não elimina a deferência técnica, mas exige que a Administração explicite o nexo entre fatos, normas e consequências esperadas, permitindo ao julgador verificar, à luz da Constituição, se a sanção é materialmente adequada, necessária e proporcional ao caso concreto, sobretudo em matéria disciplinar.
Em processos administrativos sancionadores, isso implica que a discricionariedade sancionatória só é legítima quando acompanhada de motivação que demonstre o nexo entre fatos provados, finalidade pública e critérios de dosimetria aplicados com isonomia. Dessa forma, onde há o dever de expor razões públicas controláveis, por consequência, há espaço de controle jurisdicional do conteúdo dessas razões, sob pena de transformar a discricionariedade em imunidade. Esse controle decorre diretamente dos arts. 5º, LIV e LV, e 37, caput, da Constituição, que não se esgotam em rito, mas alcançam a racionalidade do resultado para assegurar a devida aplicação dos direitos e garantias fundamentais.
O STF, ao julgar o MS 38.542/SC, denegou a segurança, assentando que aferir a adequação da sanção às balizas de proporcionalidade e razoabilidade exigiria reabrir o acervo probatório, providência incabível na via estreita do mandado de segurança.
Trata-se, cumpre frisar, de uma negativa com exame de congruência material mínima, uma vez que o Tribunal registra a regularidade do processo administrativo, a coerência entre os fatos incontroversos e a pena aplicada, e conclui pela inexistência de exorbitância manifesta.
Nessa medida, o STF realiza um reexame do mérito de baixa intensidade para confirmar a decisão administrativa, controle material calibrado pela via processual eleita, o mandado de segurança, e pela necessidade de evitar dilação probatória.
Em um Estado com múltiplos centros decisórios dotados de autonomia técnica, os controles tendem a ser mais finalísticos que hierárquicos, e, ao Judiciário incumbe zelar pela conformidade constitucional do resultado e pela racionalidade da motivação.
Logo, o controle judicial do mérito em processo administrativo sancionador é possível e devido quando exercido em intensidade proporcional, havendo espaço para um escrutínio denso dos critérios de dosimetria, da isonomia sancionatória e da coerência com padrões normativos e precedentes administrativos.
Contudo, ressalta-se que para que esse controle material seja legítimo e não derive em decisionismo ad hoc, é crucial atender ao ônus de prestação racional de contas ao invocar consequências. Cabe ao julgador promover a análise do mérito administrativo apoiado em uma base empírica minimamente verificável e em uma justificativa normativa transparente.
Em síntese, a experiência constitucional brasileira impõe reconhecer que o mérito administrativo em processos administrativos sancionadores é passível de controle sob parâmetros de juridicidade material. Ao confirmar decisões bem motivadas e rechaçar punições arbitrárias, o Judiciário não invade a discricionariedade, antes a qualifica, assegurando que a sanção disciplinar seja produto de racionalidade pública, eficiente, impessoal e proporcional, isto é, constitucionalmente adequada.
Portanto, considerando o atual modelo adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, calcado na constitucionalização do Direito Administrativo, com diminuição da discricionariedade e aumento dos deveres de atuação, o controle judicial do mérito administrativo encontra amparo na CF/88 para tutelar o comando normativo constitucional, assegurando aos jurisdicionados a devida tutela de direitos e garantias fundamentais.
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ARAGÃO, Alexandre Santos de. Administração Pública pluricêntrica. Revista de Direito Administrativo, n. 227, 2002.
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MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novo referencial no Direito Administrativo: do controle da vontade ao do resultado. Fórum Administrativo: Direito Público (FA), n. 67, 2006.
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