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"Naquela mesa": Uma homenagem a Sergio Bermudes

Tive a oportunidade de assistir as sustentações orais memoráveis de Sergio Bermudes, daquelas que cativavam a todos e enchiam a sala de curiosos em busca de ouvir o professor.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Atualizado às 14:23

Conheci Sergio Bermudes primeiramente pelos livros, ainda durante a graduação em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Sua recuperação histórica do processo romano serviu de base para algumas das aulas que tive sobre teoria geral do processo. Naquele momento, percebi de pronto a magnitude intelectual de Bermudes.

No início do sétimo semestre do bacharelado, tive a sorte de ser selecionado e ingressar como estagiário de seu escritório. Nosso primeiro contato pessoal foi memorável. Sergio estava na sua sala esparramado na cadeira, com os óculos de leitura na ponta do nariz e com um livro no regaço. Era o Navio negreiro, de Castro Alves. Elogiei o livro, ao que ele retrucou com sua característica voz anasalada e olhando por cima dos óculos: "Você gosta de literatura?". Deu-me o livro e me desafiou a iniciar a leitura de qualquer verso, ao que ele seguiria recitando de cor o restante do poema épico. Duvidei, em vão. Após algumas horas conversando sobre livros, Sergio me convidou para jantar com ele e dois advogados do escritório. Tornamo-nos amigos.

Passei a ser o seu estagiário pessoal em Brasília. Almoçávamos na sala de reunião 3 do escritório (sempre o bacalhau do Dom Francisco, com sorvete de pistache e café coado - servido para ele em copo americano, nunca em xícaras).

Frequentemente, eu o apressava para que não perdêssemos o horário do julgamento, ao que ele, impaciente, me respondia com algum impropério, alguma "espinafrada", como ele mesmo apelidou as suas frequentes chamadas de atenção a seus pupilos. Quando chegávamos ao tribunal no exato minuto em que chamavam por seu nome para subir à tribuna, ele pedia ajuda para vestir sua beca e sorria como para se desculpar pela "espinafrada".

Íamos ao STF e ao STJ com bastante frequência. Tive a oportunidade de assistir a sustentações orais memoráveis dele, daquelas que cativavam a todos e enchiam a sala de curiosos em busca de ouvir o professor Bermudes.

Seu estilo de escrita - erudito, direto, jornalístico e, por vezes, ácido - é inconfundível. Valendo-se dele ao longo de décadas, tantas vezes encantou clientes, seduziu magistrados e aterrorizou adversários. Digitei algumas dessas petições e cartas, que ele ditava impacientemente, cobrando do digitador o mesmo impossível vigor intelectual.

Quando completou 70 anos, em 2016, Sergio fez uma viagem a Paris e convidou alguns sócios do escritório para acompanhá-lo, dentre eles, eu, à época recém efetivado. No dia exato do seu aniversário, 2/10, a turma toda foi jantar em um estrelado restaurante e me colocaram na enrascada de discursar para o aniversariante em nome dos advogados mais novos. Não sabia o que falar para alguém daquela magnitude e só me veio à mente naquele momento recitar a estrofe de Fernando Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos, que tão bem representa o Sergio:

Há sem dúvida quem ame o infinito / Há sem dúvida quem deseje o impossível / Há sem dúvida quem não queira nada / Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles / Porque eu amo infinitamente o finito/ Porque eu desejo impossivelmente o possível / Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser/ Ou até se não puder ser. Sergio Bermudes foi tudo e conquistou tudo. Foi jornalista, professor e advogado por quase seis décadas. Ainda jovem, enfrentou a ditadura militar no famoso caso Herzog, quando mostrou que não se dobrava (como, de fato, nunca se dobraria) aos poderosos de momento, fossem que fossem.

Mas, para além dessa faceta mais notória de grande e combativo jurista, é preciso destacar aqui a sua generosidade, sobretudo com os iniciantes. Quando publiquei a versão comercial da minha dissertação de mestrado, em 2018, mandei um e-mail convidando a todos os advogados e estagiários do nosso escritório para o lançamento em Brasília. No dia do evento, cheguei pela manhã ao escritório e topei com ninguém menos do que Sergio Bermudes na recepção. Perguntei se teria algum compromisso na cidade, ao que ele retrucou dizendo que somente um lançamento de livro à noite. Ele era assim, apesar de um dos advogados mais requisitados do país, cancelava a concorrida agenda para prestigiar os amigos.

Desde que Sergio parou de vir a Brasília por problemas de saúde, conto nos dedos de uma das mãos as vezes em que tornei a almoçar na sala de reunião 3 do escritório, pois, sempre que por lá passo, me lembro daqueles longos almoços regados a bacalhau, risadas e "espinafradas", em que nós, seus sócios e estagiários, nos divertíamos tanto e tentávamos aprender por osmose. Como você faz falta, meu amigo! Seguiremos firmes o seu legado e, toda vez que eu passar na frente da sala de almoço, lembrarei do refrão de Nelson Gonçalves: "Naquela mesa, tá faltando ele / E a saudade dele tá doendo em mim".

*** Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense.

Mateus Rocha Tomaz

Mateus Rocha Tomaz

Professor Adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Sócio do Bermudes Advogados.

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