MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Finitude da vida: Eutanásia, ortotanásia, distanásia e mistanásia

Finitude da vida: Eutanásia, ortotanásia, distanásia e mistanásia

Este artigo tem a finalidade de trazer à discussão, no campo bioético, jurídico e social, o direito do paciente em estado de terminalidade.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Atualizado às 09:47

Introdução

O avanço da medicina moderna, ao prolongar a vida por meio de tecnologias cada vez mais sofisticadas, trouxe à tona dilemas éticos e jurídicos sobre o momento e as condições da morte. A finitude da vida, antes vista como um evento natural, passou a ser frequentemente mediada por decisões clínicas e familiares complexas. 

Neste contexto, termos como a eutanásia, ortotanásia, distanásia e mistanásia emergem no debate jurídico e bioético como expressões de diferentes atitudes diante do processo de morrer.      

O presente artigo busca examinar cada uma dessas práticas, situando-as no panorama da bioética contemporânea e do direito brasileiro, de modo a contribuir para a reflexão sobre o direito à morte digna, a autonomia da vontade e os limites da intervenção médica.

Eutanásia: entre o alívio da dor e a violação da vida

 A eutanásia, etimologicamente derivada do grego eu (bom) e thanatos (morte), significa "boa morte". Trata-se da prática de provocar intencionalmente a morte de um paciente com o objetivo de evitar sofrimento extremo e irreversível.

Do ponto de vista jurídico, a eutanásia continua sendo proibida no Brasil, enquadrando-se como homicídio (art. 121 do Código Penal), ainda que com possível atenuação de pena em razão do motivo de piedade. Mas mesmo que se entenda como privilegiado - conforme art. 121, parágrafo 1º do Código de Penal - não deixa de ser um homicídio.

Ética e religiosamente, a prática suscita debates sobre a inviolabilidade da vida versus o respeito à autonomia e à dignidade do indivíduo. 

Apesar de sermos um país laico, a influência religiosa sobre este assunto tem pesado sobremaneira. A ideia de que a vida é um presente dado por uma divindade e que, portanto, não nos pertence ainda é muito forte e impede a criação de leis que reconheçam a autonomia do paciente com doença terminal.

A relação do ser humano com a sua própria vida determina, ao redor do mundo, a compreensão de que seja um direito "a vontade de morrer". Países com culturas mais laicas tendem a aceitar que a vida é um direito e que o individuo que padece de uma doença terminal deve ter a opção de escolher entre continuar sofrendo, ou de abreviar a vida com dignidade. Esse é o caso de países como a Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Canadá, Nova Zelândia e alguns territórios australianos.

Outros Países, com Suíça, Colômbia, Espanha, Portugal e alguns estados dos Estados Unidos, também reconhecem essa autonomia, mas restringem o seu exercício. 

Já no Brasil, predomina o entendimento de que o médico deve agir para preservar a vida, salvo em situações em que a intervenção apenas prolonga o sofrimento de forma desumana.

Ortotanásia: o direito de morrer com dignidade

O termo ortotanásia é um termo usado nas línguas latinas para designar a morte no tempo certo, ou seja, aquela em que não há abreviação da vida - como na eutanásia - nem prolongamento da vida - como na distanásia.

No Brasil, a ortotanásia ganhou manchetes de jornal e passou a fazer parte das discussões bioéticas e jurídicas com a edição da Resolução nº 1.805 de 28 de novembro de 2006 pelo Conselho Federal de Medicina(CFM). 

ortotanásia consiste na abstenção de procedimentos desproporcionais ou inúteis quando a morte é inevitável, permitindo que o processo natural de morrer ocorra sem intervenções artificiais.

Diferentemente da eutanásia, não há ação direta para provocar a morte, mas sim uma omissão terapêutica consciente e ética. 

Como acima ventilado, no Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece a ortotanásia como prática ética, conforme a resolução CFM 1.805/06, reafirmada pelo Código de Ética Médica (resolução CFM 2.217/18).

Juridicamente, a ortotanásia não configura crime, pois não há dolo ou intenção de matar, mas o respeito à vontade do paciente e aos limites da medicina. Ela concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88) e o direito à autonomia previsto na lei 10.241/99 (lei dos direitos dos usuários dos serviços de saúde).

Portanto, a ortotanásia deve ser encarada como prática terapêutica, garantidora da dignidade do paciente em estado de terminalidade e não como uma conduta criminosa. Até porque, analogicamente, a manutenção da vida a qualquer custo poderia configurar o crime de tortura.

Distanásia: a obstinação terapêutica e o prolongamento do sofrimento  

distanásia, ou "má morte", é o oposto da ortotanásia. Trata-se do prolongamento artificial da vida, por meio de tratamentos fúteis, que mantêm o paciente em sofrimento, sem expectativa de recuperação.

Embora movida pela intenção de preservar a vida, a distanásia frequentemente resulta em sofrimento físico e psicológico desnecessário, configurando uma forma de violação da dignidade humana.

É conhecida também como futilidade terapêutica, esforço terapêutico. Em quaisquer destas nomenclaturas, estamos falando da mesma situação: uma prática comum na Medicina contemporânea ocidental que faz com que pessoas que apresentam quadros clínicos irreversíveis e incuráveis, as quais teoricamente já poderiam ter morrido em razão da doença da qual sofrem, tenham suas vidas clinicamente prolongadas

Do ponto de vista bioético, essa prática fere o princípio da beneficência e o princípio da não maleficência, pois o prolongamento da vida biológica não significa preservação da vida em sentido pleno.

Mistanásia: a morte pela injustiça social

mistanásia refere-se à morte causada por fatores sociais, econômicos e políticos, como a falta de acesso a serviços de saúde, medicamentos ou condições básicas de sobrevivência.

É a "morte miserável" ou "morte da injustiça", expressão que remete à responsabilidade coletiva pela violação do direito à vida e à saúde. A mistanásia é especialmente visível em contextos de desigualdade, onde populações vulneráveis morrem por causas evitáveis.

Do ponto de vista jurídico, revela-se como uma falha estrutural do Estado em garantir os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, em especial o art. 196, que assegura o direito à saúde como dever do Estado.

 A finitude da vida e o papel do Direito e da Bioética

O debate sobre a finitude da vida exige uma abordagem interdisciplinar, que una a ética médica, o direito constitucional e a filosofia da existência. A vida humana não deve ser reduzida a um dado biológico, mas compreendida em sua dimensão existencial e relacional.

O direito deve, portanto, assegurar instrumentos que permitam ao indivíduo decidir sobre seu próprio morrer, dentro dos limites éticos e legais. Nesse sentido, as diretivas antecipadas de vontade (testamento vital) representam um avanço no respeito à autonomia e à dignidade do paciente.

Conclusão

A finitude da vida é uma realidade inescapável que desafia a medicina, o direito e a ética contemporânea. A análise das práticas de eutanásia, ortotanásia, distanásia e mistanásia revelam a complexidade do tema e a necessidade de equilíbrio entre o respeito à vida e à dignidade da pessoa humana.

Enquanto a eutanásia permanece juridicamente vedada no Brasil, a ortotanásia desponta como uma prática ética e humanizadora, que reconhece o direito de morrer com dignidade. Já a distanásia e a mistanásia representam, sob perspectivas distintas, formas de desrespeito à vida plena - a primeira por excesso de intervenção e a segunda por negligência estrutural.

O desafio contemporâneo consiste em humanizar o morrer, garantindo que a vida, em sua plenitude e dignidade, seja respeitada até o último instante.

___________

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.805/2006. Dispõe sobre a ortotanásia.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.217/2018. Código de Ética Médica.

PESSINI, Leo. Eutanásia, ortotanásia e distanásia: até onde prolongar a vida? São Paulo: Loyola, 2001.

DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KOVÁCS, Maria Júlia. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.

SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo; SCHRAMM, Fermin R. "Eutanásia, distanásia e ortotanásia: os limites éticos do viver e do morrer." Revista Bioética, v. 13, n. 2, 2005.

APOSTILA, Inicio e fim da vida. ALBERT EINSTEN Ensino e Pesquisa. 

Tacito Alexandre de Carvalho e Silva

VIP Tacito Alexandre de Carvalho e Silva

Advogado. Pós graduado em Processo Civil. Pós graduado em Direito Médico pelo instituto Albert Einstein. Professor de Processo Civil (Faculdade São Paulo). Procurador M 2009/2016. Vereador 2021/2024.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca