"Lavagem de provas": O poder punitivo no estreito caminho da nulidade e a simulação da legalidade
No processo penal moderno, provas anuladas são refeitas para manter autoridade do Estado, simulando legitimidade e controlando a verdade.
sexta-feira, 31 de outubro de 2025
Atualizado em 30 de outubro de 2025 11:20
Introdução - o sintoma de uma racionalidade punitiva
O processo penal, em sua forma contemporânea, abriga uma tensão insolúvel entre limite e poder. De um lado, a Constituição erige a garantia como fundamento da jurisdição; de outro, o Estado insiste em afirmar sua capacidade de punir como se o texto constitucional fosse apenas contingência política. É nesse campo de fricção que surge um fenômeno sintomático: a chamada "lavagem de provas".
O termo pode soar pejorativo, mas descreve, com precisão incômoda, a prática pela qual órgãos de persecução (especialmente Ministérios Públicos) reconstroem provas já declaradas ilícitas, reproduzindo seu conteúdo sob nova roupagem formal. A nulidade, em vez de produzir "esquecimento", torna-se o ponto de partida para uma purificação simbólica.
Esse expediente revela uma patologia da racionalidade jurídica. A decisão que anula um meio de prova deveria representar o reconhecimento de que a violação às garantias processuais tem consequências irreversíveis. No entanto, o que se vê é a tentativa de neutralizar o efeito dessa (por assim dizer) "derrota". O Estado aceita a nulidade apenas para esvaziá-la de sentido, tal como o burocrata que cumpre uma ordem para demonstrar obediência, enquanto, no mesmo ato, assegura sua ineficácia. O processo penal converte-se em palco da simulação: cumpre-se a forma, mas desrespeita-se o conteúdo.
A dogmática tradicional, moldada sob o paradigma da neutralidade, ainda insiste em tratar a prova como simples instrumento epistemológico (há quem divirja, é natural). Essa concepção ignora que a prova, antes de ser um meio de conhecimento, é um ato de poder.
A anulação de uma prova não destrói apenas um dado informativo; abala a própria estrutura que legitima o discurso de verdade produzido pelo Estado. Por isso, o poder reage. Ele refaz, reitera, substitui (como quem não admite a falha de seu próprio mecanismo). Nesse gesto, o Estado não busca a verdade, mas a reafirmação de sua autoridade simbólica.
Há, nessa conduta, uma dimensão filosófica que escapa à pura técnica. Heidegger advertia que a modernidade transformou o ser em disponibilidade, e a técnica em modo de revelação do mundo. O processo penal, capturado por essa lógica, transforma o direito em instrumento e a verdade em resultado operacional. Tudo passa a ser questão de método. Se a prova foi anulada, basta "refazê-la" (como se o problema residisse apenas na forma de obtenção, e não na contaminação do próprio ato de conhecer). A ilicitude é tratada como vício reparável, quando deveria significar interrupção do poder.
Nietzsche talvez sorrisse com ironia diante dessa moralidade jurídica que insiste em "purificar" seus próprios pecados. A vontade de punir disfarça-se de vontade de verdade. O Estado, incapaz de aceitar a limitação imposta pelo princípio da legalidade, encena arrependimento formal para retomar o curso de sua vontade de poder. "Lava-se" a prova como quem lava a alma: não para mudar, mas para continuar fazendo o mesmo com aparência de pureza. A nulidade converte-se em confissão estética, não em transformação ética.
Foucault compreenderia essa prática como reconfiguração do dispositivo disciplinar. Toda vez que o poder é contrariado, ele se reinventa. A decisão judicial que anula uma prova não é, para o Estado, o fim de um percurso; é apenas a ocasião de desenvolver novas técnicas de controle, mais sutis e mais legitimadas. A nulidade, que deveria significar a interrupção do fluxo punitivo, transforma-se em seu motor. A Constituição deixa de ser o limite do poder e passa a ser seu manual de instruções. Assim, o processo penal realiza o paradoxo contemporâneo: um Estado que respeita a Constituição justamente para poder violá-la. No mínimo, curioso.
A prova como tecnologia de poder
A prova é o eixo simbólico do processo penal. Tudo converge para ela: a narrativa da acusação, a expectativa social de punição e o discurso legitimador da sentença. Contudo, sua função excede o mero papel epistemológico de reconstrução dos fatos. A prova é, antes de tudo, um artefato de poder, um instrumento por meio do qual o Estado produz e administra a verdade. Ela não se limita a descrever a realidade; ela a institui (veja-se o perigo disso!).
O processo penal, longe de ser um mecanismo neutro de verificação, é um dispositivo que fabrica realidades juridicamente válidas. Como lembra Foucault, o poder não se limita a reprimir: ele cria, organiza e distribui discursos de verdade.
Sob essa perspectiva, a anulação de uma prova não é apenas a invalidação de um dado técnico. É a ruptura de uma cadeia discursiva que sustenta a pretensão de verdade do Estado. O reconhecimento judicial da ilicitude implica reconhecer que o próprio modo de produção da verdade estatal foi corrompido. É por isso que o poder reage: o sistema punitivo não tolera o vazio epistemológico que a nulidade cria. Assim, surgem as tentativas de reconstrução (aí vão elas: diligências repetidas, oitivas refeitas, novos documentos "independentes" que reproduzem o conteúdo do ilícito originário, dentre outros). Uma verdadeira "operação" (talvez até mesmo no sentido pirotécnico dos últimos tempos) de continuidade simbólica: muda-se o corpo da prova, preserva-se sua alma.
A dogmática processual tradicional, ainda presa a um positivismo tardio, tenta resolver esse problema pela via da forma. Sustenta-se que, se o novo ato respeitou os requisitos legais, a contaminação desaparece. Essa leitura ignora que a ilicitude não reside apenas no modo de obtenção da prova, mas na gênese do conhecimento que ela produz. Uma vez revelada uma informação por meio ilícito, ela passa a integrar o horizonte cognitivo do julgador e da acusação. Não há neutralização possível. O conhecimento não pode ser "desconhecido". A tentativa de refazê-lo apenas disfarça a contaminação original com a aparência de pureza. Pensar o contrário, para não se dizer um ato de pequena monta jurídica, é no mínimo ingenuidade.
Fato é que a prova deixa de ser acontecimento e torna-se instrumento. A nulidade, então, não é mais compreendida como limite ontológico, mas como falha técnica a ser corrigida. O direito esquece sua dimensão de acontecimento e reduz-se à lógica da operação: um sistema que se autocorrige para continuar igual.
Nietzsche, por sua vez, identificaria nesse movimento o mesmo impulso moral que ele denunciava nos sacerdotes da verdade. O sistema punitivo, incapaz de aceitar o erro, mascara sua vontade de poder sob o disfarce da pureza formal. Quando lava a prova, o Estado encena arrependimento técnico para preservar a dominação. Há, nesse gesto, um ressentimento institucional: a necessidade de afirmar a superioridade moral da legalidade, mesmo quando ela serve apenas para perpetuar o controle. A "prova nova" é a confissão de que o poder não consegue lidar com a perda, e por isso transforma a nulidade em purificação ritual.
O resultado é a simulação da legitimidade. O poder judicial e o poder acusatório passam a operar em cumplicidade simbólica: reconhecem a nulidade para, logo em seguida, reafirmar a autoridade da prova reconstituída. O processo penal converte-se em espaço de recodificação: o ilícito é recoberto pela forma, o abuso se disfarça de legalidade, e o limite se torna ferramenta de reafirmação do poder. Nesse sentido, a prova não é apenas um meio de conhecer, mas um modo de governar. Sua função política é manter o equilíbrio entre aparência e controle - entre a promessa constitucional e a necessidade prática de punir.
Nulidade e o medo de perder
A nulidade processual representa, no Estado Democrático de Direito, um dos momentos mais elevados da juridicidade. É o instante em que o poder reconhece a própria falibilidade, aceitando que o respeito às garantias é mais importante do que o resultado. No entanto, essa aceitação é rara. O poder punitivo não sabe perder; ele se define pela obstinação em transformar toda limitação em obstáculo técnico. A nulidade, que deveria significar o término de um ciclo, é reinterpretada como intervalo, um hiato necessário para reorganizar a narrativa. Nesse deslocamento, a Constituição deixa de funcionar como limite ontológico e se converte em barreira provisória (uma fronteira móvel que o Estado atravessa tão logo reorganize seus meios).
A nulidade deveria ser um acontecimento de verdade: o momento em que o ser do processo se revela, impondo o limite como condição de sentido. O problema é que a modernidade processual opera sob o domínio da técnica, e o técnico não reconhece o ser. A nulidade é, então, interpretada como disfunção, não como revelação. É um "erro" a ser corrigido, e não um evento que exige reflexão. O Estado, dominado pela lógica da eficiência, não suporta o vazio que a nulidade introduz. Ele precisa preencher esse espaço com nova produção, novo rito, nova forma (ainda que o conteúdo permaneça o mesmo).
Essa recusa de aceitação é, em última instância, uma recusa de alteridade. A nulidade é a alteridade do poder, o espelho que lhe mostra que há algo fora de si. O poder, entretanto, resiste a esse encontro.
É dizer: a nulidade passa a ser um elemento da racionalidade punitiva, não sua negação.
No plano dogmático, esse fenômeno manifesta-se em práticas processuais cada vez mais frequentes. Provas anuladas são refeitas sob o argumento de que a nova coleta respeitou os ritos legais; colaborações premiadas são desmembradas para preservar partes "válidas"; informações obtidas ilicitamente são reinterpretadas como meros "indícios" que justificam novas investigações. Em todas essas situações, a nulidade é tratada como fase processual, não como sanção jurídica. O efeito de anulação é substituído por uma política de recomposição: o sistema corrige o erro para garantir a estabilidade de seu próprio discurso.
Essa dinâmica revela a dimensão autopoética do poder punitivo. O sistema penal, ao reconhecer uma falha, não interrompe seu funcionamento; antes, reafirma sua capacidade de autorregulação. A nulidade é absorvida como etapa de aperfeiçoamento institucional, e não como manifestação de falibilidade. Assim, o Estado não apenas sobrevive ao reconhecimento de sua ilicitude, mas sai dele fortalecido, como se a confissão da culpa reforçasse sua autoridade moral. É a técnica jurídica a serviço da vontade de poder - a domesticação do erro em benefício do controle.
Do ponto de vista hermenêutico, a nulidade deveria produzir silêncio. Deveria interromper o discurso e obrigar o intérprete a refletir sobre o sentido da Constituição. Mas, em lugar disso, gera ruído: o sistema fala mais, produz mais, repete mais. O poder reage à nulidade com hiperatividade institucional. O resultado é a banalização do limite: o reconhecimento do vício deixa de ter densidade simbólica e passa a ser apenas mais um episódio no fluxo contínuo da administração da culpa. O processo penal deixa de ser espaço de contenção e torna-se laboratório de recomposição do poder.
O dispositivo da "lavagem de provas"
Aqui o ponto nodal do que se pretender expor em xeque: a "lavagem de provas" é mais do que um desvio pontual, ela revela um dispositivo de poder. É o conjunto de práticas e discursos que asseguram a continuidade do domínio sob a aparência de respeito às formas jurídicas.
Toda vez que a prova ilícita é substituída por outra de mesmo conteúdo, o Estado reafirma a sua capacidade de recriar a verdade, de transformar o ilícito em lícito pela via da reencenação processual. Essa simulação não é um acidente da técnica; é o próprio modo de ser do poder que se quer racional e legítimo, ainda quando viola o limite.
Dogmaticamente, a "lavagem" se sustenta em uma leitura estreita da teoria das nulidades: bastaria repetir o ato sob nova forma, respeitando-se os requisitos procedimentais, para que a mácula se dissipasse. Esquece-se que a ilicitude da prova é também cognitiva: o conhecimento ilícito, uma vez produzido, impregna a racionalidade do processo. Não se trata apenas de desconsiderar um documento, mas de reconhecer que o Estado já internalizou um saber proibido. Repetir o ato não apaga a contaminação; apenas disfarça o vício sob a máscara da legalidade.
A nulidade é apenas um obstáculo operacional, e o novo ato, a reconfiguração do mesmo dispositivo. A Constituição, em vez de limite transcendental, é tratada como repertório de comandos utilitários que orientam o aperfeiçoamento da máquina punitiva.
Em verdade, o Estado, incapaz de suportar o próprio erro, precisa reafirmar sua pureza formal. A lavagem da prova é a confissão de culpa transformada em virtude. O poder lava-se a si mesmo, exorcizando a ilegalidade pela repetição de um rito purificador. Sob o manto da moral jurídica, persiste a mesma vontade de poder: dominar, controlar, reafirmar-se. A nulidade é convertida em liturgia, e o processo, em cerimônia de absolvição do Estado.
No plano institucional, esse comportamento gera uma cultura de normalização do ilícito. O Ministério Público, ao refazer provas nulas, não se vê como agente de violação, mas como defensor da verdade. O Judiciário, ao admitir a nova prova, acredita estar protegendo o sistema de impunidade. Forma-se, assim, uma aliança simbólica entre poder e moral: a crença de que o bem maior - a punição do culpado - justifica a reconfiguração das formas. O resultado é o enfraquecimento da ética constitucional, substituída por uma estética da correção técnica.
A "lavagem de provas" não é, portanto, uma anomalia do sistema. É a manifestação pura de sua racionalidade instrumental. O poder não se apresenta mais como violência aberta, mas como legalidade recombinada. A ilicitude é incorporada como elemento funcional, e a nulidade, como procedimento de "recalibração". O Estado de Direito torna-se autolavável: limpa-se a cada violação, conserva-se em cada simulação. A prova, enquanto signo de verdade, é substituída pelo signo da pureza formal - e o processo penal se transforma em o que Nietzsche chamaria de moralização da aparência: o domínio do simulacro sob o nome de justiça.
Conclusão - quando a legalidade se converte em simulacro
O processo penal contemporâneo exibe uma sofisticada capacidade de autopreservação. Mesmo diante do reconhecimento judicial de nulidades graves, o sistema não se desorganiza; ele se reinventa. A "lavagem de provas" é, nesse sentido, a expressão mais acabada dessa racionalidade autossustentada. O Estado cumpre a decisão que o desautoriza apenas para reafirmar-se. O limite constitucional deixa de funcionar como barreira e passa a integrar o mecanismo de manutenção do poder. A nulidade, que deveria significar o silêncio da jurisdição, torna-se seu novo modo de enunciação.
Essa mutação revela um deslocamento profundo do sentido de legalidade. O Estado de Direito, que se fundamenta na submissão do poder à norma, passa a funcionar como sistema de autorreferência, em que a forma jurídica é utilizada para confirmar a eficiência da punição. A legalidade converte-se em simulacro: uma imagem de respeito à Constituição que, no fundo, esconde o exercício autônomo da vontade de poder. A "lavagem" é o rito de purificação dessa contradição. A cada nova prova reconstituída, o Estado reafirma a crença de que pode corrigir o ilícito por meio do próprio ilícito - como se a moralidade da intenção bastasse para redimir a imoralidade do ato.
Heidegger diria que o ser do Direito foi esquecido no turbilhão da técnica. O processo penal tornou-se máquina de decisão, orientada pela eficiência e pela aparência de correção formal. A nulidade, reduzida a obstáculo procedimental, perde o estatuto ontológico de acontecimento. O resultado é um Direito sem ser, um processo sem acontecimento e uma verdade sem ética. O limite perde densidade metafísica e passa a ser mera variável funcional. O poder já não teme a nulidade; ele a administra.
Há, nesse comportamento, uma dimensão de tragédia. O Estado, tomado por sua vontade de pureza, torna-se prisioneiro da aparência. Ao buscar incessantemente reafirmar a legitimidade da punição, acaba por construir um moralismo processual: uma fé no rito, na liturgia da legalidade, que substitui a substância ética do Direito. A "lavagem de provas" é, assim, o gesto da culpa institucional transformada em virtude.
Hermeneuticamente, a superação dessa patologia só pode vir da revalorização do sentido. O processo precisa voltar a ser espaço de escuta e de linguagem, não de reprodução mecânica de resultados.
O intérprete que decide precisa ser capaz de ouvir o texto constitucional em sua historicidade, e não apenas de aplicá-lo como instrumento. A nulidade é a fala da Constituição exigindo reconhecimento. Quando o Estado se recusa a ouvi-la, substitui o diálogo pela tautologia, e a hermenêutica pela administração.
Por fim, o papel da defesa emerge como o último resquício de resistência ontológica. Mesmo isolada, ela mantém viva a possibilidade de sentido. A defesa não representa apenas o indivíduo, mas a própria condição de existência do Direito. É ela que lembra ao poder que a justiça não é atributo de quem decide, mas qualidade do modo como se decide. Se o Estado pode lavar a prova, pode também lavar a verdade e, nesse gesto, lavar a si mesmo de toda responsabilidade. O dever hermenêutico é impedir que isso aconteça. O Direito só permanece vivo enquanto o poder puder perder, e o processo penal só é legítimo enquanto a verdade não for produto, mas acontecimento. Quando a técnica suplanta o sentido e a legalidade se torna simulacro, resta apenas o eco vazio de um Estado que continua a falar em nome da justiça, mas já esqueceu o que ela significa.
Pablo Domingues Ferreira de Castro
Advogado criminalista, consócio do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Doutor em Direito pelo IDP(DF), Mestre em Direito pela UFBA, especialista pelo IBCCRIM, pós-graduado pela UFBA, professor de cursos de pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito, professor universitário.


