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Operação no Alemão e Penha: O colapso da segurança pública no Rio

Com 121 mortos, a operação no Alemão e Penha revela o colapso da segurança pública e a urgência de repensar o modelo de enfrentamento no Rio.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Atualizado às 14:33

A cidade do Rio de Janeiro testemunhou, nos dias 28 e 29 de outubro, a operação policial mais letal da história do Brasil.

Realizada nos Complexos do Alemão e da Penha, a ação mobilizou cerca de 2.500 agentes, resultou em 121 mortes até agora, dezenas de feridos e a apreensão de 91 fuzis - além da trágica morte de quatro policiais.

Não foi apenas mais um dia de violência. Foi o dia em que o Estado falhou - falhou em proteger seus agentes, seus cidadãos e sua própria autoridade.

Por sinal, ensina o festejado Dalmo de Abreu Dallari: "o Estado é a "ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território.1

Sob uma perspectiva teológica, pode-se afirmar que o objetivo do Estado é promover o bem comum para todos. Simples assim.

Direito fundamental à segurança

A crise na segurança pública do Rio de Janeiro viola o art. 144 da CF/88, que diz:

"A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos"

Ou seja, todos têm o direito fundamental subjetivo à segurança pública, porque é um dever do Estado.

A propósito, os direitos fundamentais existem para que todos tenham uma convivência digna, livre e igual, como ensina o mestre de todos nós, José Afonso da Silva.2

Tiro e bomba

Esse episódio escancara o esgotamento de um modelo de enfrentamento que há décadas aposta no confronto armado como resposta à criminalidade.

Como já alertava o então chefe de Polícia Civil do Rio, delegado Hélio Luz, nos anos 1990:

"A política de segurança no Rio é dar um sacode"

A frase, crua e direta, sintetiza a lógica de incursões violentas, sem planejamento estratégico, que visam mais o espetáculo do que a eficácia.

Os policiais também sangram

Triste: Entre os mortos estão Cleiton Serafim Gonçalves. PM (42), Heber Carvalho da Fonseca. PM (39), Marcos Vinícius Carvalho (Policial Civil) e Rodrigo Cabral, recém-ingresso na Polícia Civil, há dois meses.

Suas mortes revelam que o modelo de confronto extremo cobra um preço alto também dos que o executam.

O Hospital Estadual Getúlio Vargas foi transformado em unidade de guerra, com agentes feridos sendo atendidos em meio ao caos.

Quem vai mandar flores? E a dor das famílias? Qual o acolhimento do Estado?    

A morte de agentes públicos em serviço não pode ser naturalizada. São profissionais que atuam sob risco extremo, muitas vezes sem estrutura adequada, e que merecem respeito, memória e responsabilização institucional.

Da mesma forma, a morte de inocentes sem confronto direto não pode ser tratada como efeito colateral.

Quando não há troca de tiros, quando não há ameaça concreta, vale dizer, legítima defesa- o que se configura é execução sumária - ou o que se convencionou chamar de "falso auto de resistência".

A morte de inocentes: A face mais cruel da falência estatal

A tragédia se agrava quando civis inocentes - crianças, trabalhadores, moradores - são mortos em meio a confrontos armados.

Essas mortes representam não apenas falhas operacionais, mas violações diretas de direitos fundamentais, como o direito à vida (art. 5º, caput, CF), à segurança (art. 5º, I), e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).

Essas vítimas não são "efeitos colaterais". São o resultado de um modelo de segurança pública que negligencia planejamento, inteligência e respeito aos direitos humanos.

A ausência de protocolos rigorosos, de perícia técnica e de responsabilização efetiva transforma o luto em rotina - e a impunidade em política de Estado.

O crime organizado ocupa o vácuo estatal: "Pedágio social"

O domínio territorial de facções criminosas no Rio de Janeiro é uma realidade consolidada. Barricadas em vias expressas, escolas cercadas por tiroteios, comunidades sob regras paralelas.

O crime ocupa o espaço deixado pelo Estado. E quando operações policiais resultam em emboscadas e mortes, evidencia-se a perda de controle territorial por parte do Poder Público.

Fato: Em muitas comunidades do Rio de Janeiro, o tráfico de drogas exerce controle territorial que vai além da venda de entorpecentes.

Ele impõe uma espécie de "pedágio social" sobre serviços essenciais e atividades econômicas locais.

Ou seja, cobrando taxas ou exigindo submissão para permitir o funcionamento de negócios e até o acesso a serviços básicos como: gás de cozinha, internet e TV por assinatura, mototáxi, comércio local e eventos e festas, violando direitos dos moradores.

A inteligência policial que nunca chega

Governos sucessivos prometeram investir em inteligência. Agora, vai... No entanto, a ausência de planejamento estratégico, a fragmentação entre corporações e o sucateamento das estruturas de investigação transformam cada operação em um salto no escuro.

O uso de drones por criminosos, por exemplo, revela uma assimetria tecnológica que deveria ser impensável em um Estado democrático de Direito.

De onde vêm os fuzis?

É verdade que foram apreendidos 91 fuzis. Não são bíblias. Uma coisa: A presença de armamento pesado não justifica eventual violação de garantias legais, como a preservação do local de crime, a realização de perícia técnica, e o respeito à vida e à dignidade humana.

A exibição de armas em coletivas de imprensa não substitui a investigação técnica sobre o uso da força, a legalidade das mortes. Funciona assim na democracia.

A propósito, o CPP é claro: o local de crime deve ser preservado, os corpos periciados in loco, e a cadeia de custódia respeitada.

É a pergunta de um milhão de dólares. Pois é. A comunidade não fabrica o fuzil. A maioria entra no país por meio de rotas de contrabando internacional, vindos de países vizinhos como Paraguai, Bolívia e Venezuela, ou até de zonas de conflito como o Leste Europeu.

O Brasil tem fronteiras extensas e pouco fiscalizadas, o que facilita a entrada ilegal de armamentos

É importante destacar que os Estados Unidos lideram a produção mundial na indústria de armamentos, seguidos por países como França, Rússia, China e Alemanha.

É a "indústria da morte".

Segurança pública não é apenas repressão - e não é privatizável

A criminalidade não nasce apenas da ausência de repressão. Ela é alimentada pela escancarada desigualdade estrutural, exclusão social e ausência de políticas públicas eficazes.

Enquanto jovens enxergarem no tráfico a única via de ascensão econômica, o ciclo da violência se perpetuará. Segurança pública é também política social, educação, cultura, emprego e urbanização.

A omissão do Estado em garantir direitos fundamentais - como educação (art. 205, CF), saúde (art. 6 e 196, CF), trabalho e moradia digna - contribui diretamente para o fortalecimento de organizações criminosas que se apresentam como "autoridades paralelas".

A polícia prende e a Justiça solta

O querido jornalista Octavio Guedes, da GloboNews, sintetizou com precisão o perigo por trás da frase "a polícia prende e a Justiça solta".

A pesquisa Quaest confirma que 86% da população acredita nessa frase.

Segundo Guedes: "o discurso de 'não adianta prender' significa 'não adianta Estado' e alimenta a barbárie.

"Quando é fixado na mente da população a mensagem de que a polícia prende e a Justiça solta, abre-se a oportunidade de surgimento de outro tipo de barbaridade, que são esses grupos de justiceiros.

O que precisa mudar?

  • Reestruturação das polícias com foco em inteligência, valorização profissional e controle interno;
  • Investimento contínuo em políticas sociais nas áreas mais vulneráveis;
  • Combate efetivo à corrupção policial, com fortalecimento das corregedorias e controle externo;
  • Superação da lógica bélica e adoção de estratégias baseadas em prevenção, direitos humanos e justiça restaurativa;

O sucateamento das polícias

A precarização das forças de segurança compromete a capacidade investigativa e operacional do Estado.

Precisamos de uma policial: bem-preparado, bem-educado e bem-pago.

A ausência de recursos, equipamentos, formação continuada e integração entre corporações reduz a eficácia do sistema e favorece a impunidade.

A militarização excessiva, aliada à falta de mecanismos de responsabilização, contribui para a perda de legitimidade institucional. A segurança pública, como função indelegável do Estado, não pode ser tratada como política de governo - exige continuidade, planejamento e compromisso republicano.

A inteligência policial como política de Estado

Apesar dos anúncios de investimentos, a inteligência policial segue fragilizada por entraves estruturais.

E se a inteligência não chega, o crime avança com estratégia, velocidade e tecnologia Vejamos:

  • Descontinuidade administrativa;
  • Burocracia na liberação de recursos;
  • Foco em ações ostensivas em detrimento da análise de dados;
  • Carência de profissionais especializados;
  • Sistemas de informação fragmentados e não interoperáveis.

Corrupção policial

A corrupção policial mina a confiança da população e compromete qualquer política de segurança. No Rio de Janeiro, a infiltração de agentes em milícias e facções é um fenômeno documentado e persistente.

Aliás, a querida jornalista Vera Araujo, do O Globo, foi pioneira em cunhar o termo milicia, no Rio de Janeiro.

A responsabilização efetiva exige corregedorias independentes, controle externo pelo Ministério Público (art. 129, CF) e fortalecimento da Ouvidoria das Polícias.

Criminalidade e desigualdade: Uma equação histórica

A criminalidade é multifatorial, mas sua relação com a desigualdade é inegável. O Sul da Itália, por exemplo, historicamente mais pobre, apresenta índices mais altos de criminalidade e forte presença mafiosa.

A ausência do Estado em áreas vulneráveis, combinada com desemprego crônico e baixa escolaridade, cria um terreno fértil para o crime organizado.

Polícia + Política Social = Combate real

A criminalidade não é apenas um problema de polícia, mas também de política social e presença do Estado.

Onde há abandono, o crime se organiza. O enfrentamento da criminalidade exige uma abordagem integrada:

  • Polícia: Presença qualificada, com inteligência, respeito aos direitos humanos e foco na desarticulação de redes criminosas.
  • Política social: Educação de qualidade, geração de emprego, cultura, esporte, saúde e urbanização das áreas vulneráveis.

Sem essa combinação, o combate à criminalidade será sempre paliativo. Como você disse, o crime sempre vai existir - mas a criminalidade pode ser reduzida com ações estruturantes e contínuas.

Conclusão: O pacto constitucional está em risco

O Estado falhou. A inteligência não chegou. A morte de policiais, de inocentes e de moradores em áreas conflagradas não pode ser tratada como estatística.

Ela representa o colapso de um modelo de segurança pública que fracassou em proteger vidas, garantir direitos e preservar a autoridade do Estado.

O enfrentamento da criminalidade exige mais do que operações pontuais. Exige um pacto federativo real, com políticas públicas integradas, respeito à Constituição e compromisso com a dignidade humana.

Porque quando o Estado falha, quem morre é a esperança...mas há um futuro possível se as mudanças forem implementadas.

A ver.

_______________________

1-DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado, 2016

2- DA SILVA, José Afonso, Curso De Direito Constitucional Positivo, p.180, 2018

Renato Otávio da Gama Ferraz

VIP Renato Otávio da Gama Ferraz

Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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