Abandono afetivo digital: A responsabilidade parental na era do ECA Digital
A lei 15.240/25 amplia a responsabilidade parental ao ambiente online, integrando-se ao ECA Digital e impondo novos deveres às famílias, escolas e órgãos protetivos.
terça-feira, 4 de novembro de 2025
Atualizado às 14:32
1. Introdução
A lei 15.240/25, recentemente sancionada, trouxe para o cenário jurídico brasileiro um tema sensível e contemporâneo: a configuração do abandono afetivo como ato ilícito civil, inclusive quando manifestado por negligência digital.
Em tempos em que a infância e a adolescência se desenvolvem tanto nas redes quanto no convívio físico, a ausência de orientação e acompanhamento parental no ambiente virtual pode gerar efeitos tão nocivos quanto o abandono tradicional.
A norma surge em harmonia com o ECA Digital (lei 15.211/25), consolidando a ideia de que a proteção integral da criança e do adolescente abrange também a dimensão tecnológica. Assim, o cuidado afetivo inclui o dever de educar, supervisionar e proteger os filhos no uso da internet, prevenindo riscos como cyberbullying, exposição indevida, assédio virtual e exploração digital.
Este artigo analisa a intersecção entre o ECA, o ECA Digital e a nova lei 15.240/25, discutindo os papéis da família, escola, Conselho Tutelar e Ministério Público na proteção dos menores diante do abandono afetivo - agora também configurado no mundo digital.
2. Da afetividade tradicional à afetividade digital
A afetividade, enquanto valor jurídico, foi reconhecida há mais de uma década pela jurisprudência do STJ como elemento essencial do poder familiar (REsp 1.159.242/SP, rel. min. Nancy Andrighi).
Com a lei 15.240/25, o legislador deu um passo adiante: tipificou o abandono afetivo como ato ilícito civil, definindo-o como a omissão injustificada do dever de cuidado, atenção e presença emocional, incluindo a falta de acompanhamento digital.
O abandono afetivo digital ocorre quando pais ou responsáveis:
- ignoram o comportamento online dos filhos;
- não supervisionam conteúdos acessados ou compartilhados;
- negligenciam sinais de violência, assédio ou exposição indevida;
- permitem, por omissão, que a criança se torne vítima de crimes cibernéticos.
Ao reconhecer essa forma de omissão como ilícito civil, a lei reafirma que o dever de cuidado ultrapassa o espaço físico - a afetividade é também uma prática digital responsável.
3. O ECA e o ECA Digital: a base da proteção integral
O Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990) continua a ser o alicerce da proteção infantojuvenil, impondo à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com prioridade absoluta, todos os direitos fundamentais (art. 4º).
Já o ECA Digital (lei 15.211/25) expande essa proteção para o ambiente online, reconhecendo expressamente a internet como espaço de convivência e risco, onde crianças e adolescentes podem sofrer violações de igual gravidade.
A convergência das duas leis estabelece um novo paradigma:
A negligência digital é forma contemporânea de violação dos deveres previstos no ECA, e o abandono afetivo digital é sua consequência civil mais grave.
Assim, o ECA Digital e a lei 15.240/25 formam um binômio legislativo de proteção afetiva e tecnológica, que redefine a atuação preventiva de pais, escolas e instituições públicas.
4. O papel da escola: prevenção, formação e cooperação institucional
As escolas, diante desse novo contexto normativo, tornam-se agentes corresponsáveis pela educação digital e emocional.
Além da formação acadêmica, devem incluir no currículo a educação para o uso ético da internet e a prevenção do cyberbullying e da violência digital, conforme previsto no art. 8º do ECA Digital.
Também lhes cabe:
- promover ações de conscientização junto aos pais sobre riscos e responsabilidades digitais;
- identificar sinais de abandono ou negligência digital - como isolamento, cyberagressões ou superexposição - e comunicar o Conselho Tutelar;
- manter protocolos de proteção de dados e uso responsável de plataformas educacionais.
A omissão da instituição diante de casos de abandono ou violência digital pode caracterizar falha institucional, sujeita à responsabilização administrativa e civil.
5. O Conselho Tutelar e o Ministério Público: guardiões da proteção digital
5.1. Conselho Tutelar
O Conselho Tutelar, órgão autônomo previsto no art. 131 do ECA, tem papel essencial na proteção imediata de crianças e adolescentes em situação de risco digital.
Com o advento da lei 15.240/25, ele passa a receber e apurar denúncias de abandono afetivo digital, podendo:
- Notificar responsáveis;
- Requisitar acompanhamento psicológico;
- Encaminhar o caso ao Ministério Público quando houver indícios de omissão grave.
5.2. Ministério Público
O Ministério Público, por sua vez, reforça sua função de fiscal da lei e defensor dos direitos infantojuvenis, especialmente quando há descumprimento dos deveres parentais ou institucionais.
Pode instaurar inquérito civil, propor ação de responsabilidade civil por danos morais coletivos e exigir TACs - termos de ajustamento de conduta (TACs) de escolas, empresas e provedores.
Sua atuação ganha relevo no combate à omissão digital, pois o MP atua na fronteira entre o direito de família, a proteção de dados e o direito digital.
6. A família e a corresponsabilidade digital
A família continua sendo o núcleo central da proteção.
Com a nova lei, o dever parental inclui:
- Orientar o uso de redes sociais e aplicativos;
- Acompanhar a vida digital dos filhos;
- Zelar para que não pratiquem nem sofram cyberviolência;
- Cooperar com escola e órgãos públicos na resolução de incidentes.
A ausência de acompanhamento, quando comprovada, pode ensejar indenização civil, conforme art. 2º da lei 15.240/25, e até intervenção do Conselho Tutelar em casos de reincidência.
A legislação, portanto, não criminaliza o distanciamento, mas responsabiliza a omissão afetiva e digital quando ela coloca o menor em situação de risco comprovado.
7. Desafios e perspectivas
A efetividade da nova legislação depende da integração entre educação, tecnologia e política pública.
Os desafios imediatos incluem:
- Capacitação de conselheiros tutelares em temas de cibersegurança e psicologia digital;
- Campanhas de orientação a famílias sobre o "abandono afetivo digital";
- Criação de fluxos rápidos entre escolas, MP e conselhos;
- Fortalecimento de parcerias entre o setor público e plataformas tecnológicas para remoção de conteúdos abusivos.
A longo prazo, será necessário transformar a cultura de reação em cultura de prevenção, onde o cuidado afetivo também se traduza em presença digital ativa e consciente.
8. Conclusão
A lei 15.240/25, ao reconhecer o abandono afetivo como ato ilícito civil, inaugura uma nova etapa na tutela dos direitos infantojuvenis: a da responsabilidade digital afetiva.
Aliada ao ECA Digital, a norma impõe um dever de cuidado estendido - do lar às telas.
A proteção integral da criança e do adolescente, princípio consagrado desde 1990, agora exige empatia conectada: presença, diálogo e supervisão no ambiente virtual.
Famílias, escolas, conselhos e o Ministério Público devem agir de forma articulada, assegurando que o desenvolvimento tecnológico não seja acompanhado por novos tipos de negligência humana.
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Bibliografia
BRASIL. Lei nº 15.240, de 29 de outubro de 2025. Dispõe sobre a responsabilização civil por abandono afetivo de criança e adolescente.
BRASIL. Lei nº 15.211, de 5 de outubro de 2025. Institui o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital).
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 1.159.242/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 24 ago. 2011.
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (CNMP). Manual de Atuação em Crimes Digitais contra Crianças e Adolescentes. Brasília, 2024.
M&A SEGURANÇA DIGITAL. Nova Lei 15.240/2025: o abandono afetivo digital e a corresponsabilidade familiar. Disponível em: https://masegurancadigital.com.br/. Acesso em: out. 2025.


